O Marxismo e as Tarefas Presentes da Luta de Classe Proletária – Karl Korsch

Primeira edição: Living Marxism, IV, 4, Agosto de 1938.

Deixemos os mortos enterrar os seus mortos. É preciso que a revolução proletária chegue enfim ao seu conteúdo próprio. (Marx)

Podemos dizer de Karl Heinrich Marx o que Étienne Geoffroy Saint-Hilaire disse de Darwin: que foi seu destino e sua glória ter tido, antes dele, apenas precursores e, depois dele, apenas discípulos. É certo que Marx pôde contar durante a sua vida com um amigo e colaborador do mesmo estofo, Friedrich Engels. Na geração seguinte houve os corifeus[1] teóricos das correntes “revisionista” e “reformista” do partido marxista alemão e, além destes pseudossábios, conhecedores tão avisados do marxismo como Antonio Labriola, o italiano, Georges Sorel na França e o filósofo russo Plekhanov. Por fim, veio a restauração aparentemente integral dos elementos revolucionários do pensamento marxista, há muito caídos no esquecimento, por Rosa Luxemburgo na Alemanha e Lênin na Rússia.

Durante este mesmo período, no mundo inteiro, milhões de operários fizeram do marxismo o seu guia para a ação prática. E as organizações sucederam-se, formando uma sequência impressionante: depois da clandestina Liga dos Comunistas de 1848, após a Associação Internacional dos Trabalhadores de 1864, surgiram em escala nacional poderosos partidos social-democratas, cujas reduzidas atividades no plano internacional foram finalmente coordenadas pela II Internacional de antes da Guerra, chamada a conhecer, após o seu afundamento, uma ressurreição em escala mundial sob a forma de Partido Comunista militante.

Ora, durante todo este tempo, a teoria marxiana propriamente dita, longe de se ver enriquecida proporcionalmente no interior, não chegou a ultrapassar asideias-força já presentes no primeiro esquema da nova ciência revolucionária que Marx tinha concebido.

Até ao fim do século XIX raros foram os marxistas que sequer sonharam que algo não ia bem neste plano. Mesmo quando os primeiros ataques dos “revisionistas” provocaram o que um sociólogo burguês de esquerda, o futuro presidente da República Checoslovaca, Tomáš Garrigue Masaryk, chamava então uma “crise filosófica e científica do marxismo”, os marxistas persistiram em considerar que o seu campo servia de palco apenas a um conflito que opunha a fé “ortodoxa” a uma deplorável “heresia” e nada mais. O que tinha de ideológico esta assimilação sumária à luta operária revolucionária de uma doutrina estabelecida aparecia ainda mais claro no fato de os principais representantes da ortodoxia marxista desta época, como Kautsky na Alemanha e Lênin na Rússia, negarem obstinadamente que alguma vez se pudesse gerar uma consciência revolucionária autêntica entre os próprios operários. Seria preciso, segundo eles, que os objetivos políticos revolucionários fossem importados “de fora” para a luta de classe econômica dos trabalhadores, graças aos esforços teóricos de pensadores burgueses radicais, “armados de toda a cultura da época”, tais como Lassale, Marx e Engels. Termos em que, a identidade de uma doutrina de extração burguesa e da futura luta distintamente revolucionária do proletariado se apresentava como um verdadeiro milagre. Os marxistas mais à esquerda, aqueles mesmos que se aproximavam mais da ideia de que a luta de classe proletária podia ir espontaneamente muito além dos objetivos restritos prosseguidos pelas burocracias dirigentes dos partidos e dos sindicatos social-democratas, jamais sonharam pôr em causa a realidade desta harmonia preestabelecida da doutrina marxista com o movimento proletário real.

“Cada fase nova e superior da luta proletária consegue tirar do arsenal inesgotável da teoria marxista tantas armas inéditas quantas exige o novo estágio da luta emancipadora da classe operária”.

Este artigo não pretende examinar a fundo os aspectos mais gerais desta teoria dos marxistas quanto à origem e desenvolvimento da sua própria doutrina, teoria que, em última instância, acaba por negar a possibilidade de uma cultura de classe proletária independente. Apenas a referimos, no presente contexto, como uma das múltiplas contradições em que se veem enleados aqueles que, em contraste flagrante com o princípio materialista e crítico de Marx, fazem do “marxismo” uma doutrina perfeitamente acabada doravante imutável.

Outra dificuldade, inerente a esta atitude quase religiosa para com o marxismo, deriva do fato de que a teoria de Marx nunca foi adotada no seu conjunto por nenhum grupo ou partido socialista. Com efeito, o marxismo “ortodoxo” não passou da atitude puramente formal com que os meios dirigentes do partido social-democrata alemão de antes da guerra escondiam de si mesmos a constante deterioração da sua anterior prática revolucionária. Só esta diferença de procedimento separava a forma de fachada “ortodoxa” da forma confessadamente revisionista, que visava adaptar a doutrina marxiana tradicional às “necessidades” novas do movimento operário saído das condições mudadas, próprias do novo período.

Logo que, no meio das tempestades e tensões do ano de 1917, face a uma “revolução proletária internacional nitidamente em vias de amadurecer”, Lênin se propôs enunciar de novo a teoria marxiana do Estado e o papel do proletariado na revolução, não se preocupou em defender como ideólogo uma interpretação ortodoxa supostamente estabelecida da verdadeira teoria marxista. Longe disso, ele iria partir da premissa de que o marxismo revolucionário tinha sido totalmente destruído e abandonado tanto pela minoria oportunista como pela maioria assumidamente social-chauvinista de todos os partidos e sindicatos “marxistas” da defunta II Internacional. Anunciando publicamente que o marxismo estava morto, proclamou a necessidade de uma restauração integral do marxismo revolucionário.

É inegável que este marxismo revolucionário, assim restaurado por Lênin, valeu à classe proletária a sua primeira vitória histórica. É um fato em que é preciso insistir, face aos detratores pseudomarxistas do comunismo bárbaro dos bolcheviques, como face ao socialismo “distinto” e “culto” do Ocidente. Todavia é preciso também fazer outro tanto face aos atuais beneficiários da vitória dos operários russos, esses dirigentes que passaram por etapas do marxismo revolucionário do princípio ao credo, já não comunista, mas simplesmente “socialista” e democrático, que dá pelo nome de stalinismo. Similarmente temos visto que uma coligação puramente “antifascista” de frentes únicas, frentes populares e frentes nacionais têm vindo a substituir por etapas a luta de classe revolucionária conduzida pelo proletariado contra todo o regime econômico e político da burguesia, e isto à escala internacional, nos Estados “democráticos” e nos Estados fascistas, nos Estados “pró-russos” e nos Estados antirrussos.

Face a estes prolongamentos da obra de Lênin, não é mais possível admitir que os princípios restaurados do marxismo, de que Lênin e Trotsky se instituíram os defensores durante a guerra e no imediato pós-guerra, conduziram a uma autêntica ressurreição do movimento revolucionário proletário, ao qual, no passado, tinha estado associado ao nome de Marx. É verdade que tudo parecia indicar durante algum tempo que o verdadeiro espírito do marxismo revolucionário se tinha implantado a Leste. Considerava-se que as contradições visíveis, que não tardaram a caracterizar as opções econômicas e políticas do partido dirigente da União soviética, eram uma simples consequência do triste fato de que a “revolução proletária internacional”, tão firmemente esperada por Lênin e Trotsky, não tinha amadurecido. Contudo, à luz do que se seguiu, não se pode duvidar que o marxismo soviético, como teoria e como prática do proletariado, acabou por partilhar a sorte do marxismo “ortodoxo” do Ocidente de que tinha saído e com o qual tinha cindido apenas por causa das condições de exceção da guerra na Rússia e da explosão revolucionária subsequente. Logo que o nacional-socialismo contrarrevolucionário triunfou decididamente sem disparar um tiro, em 1933, na praça forte do socialismo internacional, tornou-se manifesto que o julgamento “o marxismo falhou o seu papel” dizia respeito ao comunismo do Leste tanto como à Igreja social-democrata ocidental de rito marxista, e os irmãos separados viram-se enfim reunidos numa derrota comum.

A fim de tornar inteligível o real significado e os efeitos incalculáveis desta lição, de suprema importância, da história recente do marxismo, vamos deter-nos sobre o caráter dual da ditadura revolucionária do proletariado que os acontecimentos acabam de pôr tão largamente em evidência, tanto no seio da Rússia stalinista, como em escala internacional. Duplo caráter que se encontra na dualidade, desde a origem inerente aos procedimentos de Marx, na sua qualidade tanto de teórico proletário como de líder político do movimento revolucionário do seu tempo. Por um lado, vimos ele desde 1843 interessar-se atentamente pelas manifestações mais avançadas do socialismo e do comunismo franceses. Em 1847, fundou com Engels a Associação dos Operários Alemães de Bruxelas e começou a pôr de pé uma rede internacional de comitês de correspondência proletários. Pouco tempo depois, os dois homens filiaram-se na Liga dos Comunistas e, a pedido dos seus membros, redigiram o célebre Manifesto proclamando o proletariado “única classe revolucionária”.

Por outro lado, Marx, redator-chefe da Nova Gazeta Renana durante a explosão revolucionária de 1848, exprimiu antes de mais as reivindicações mais radicais da democracia burguesa. Esforçou-se por manter uma frente única entre o movimento revolucionário burguês da Alemanha e as formas mais avançadas sob as quais, nesta época, se prosseguia uma luta por objetivos imediatamente socialistas nos países industriais mais desenvolvidos do Ocidente. O seu artigo mais brilhante e vigoroso, escreveu-o para exaltar o proletariado parisiense, depois da esmagadora derrota de Junho de 1848. No entanto Marx não torna públicas as reivindicações específicas do proletariado alemão senão algumas semanas antes de a contrarrevolução vitoriosa de 1849 ter proibido definitivamente o seu jornal. Mesmo nesse momento, colocou a questão operária de forma algo abstrata, reproduzindo na Nova Gazeta Renana os debates sobre o tema Trabalho Assalariado e Capital que tinha promovido dois anos antes na Associação dos Operários de Bruxelas. Similarmente, nos artigos que escreveu durante os anos de 1850 e 1860 para o New York Tribune de Horace Greeley, a New American Cyclopedia publicada por Charles Dana, órgãos cartistas[2] da Inglaterra e diversos Jornais da Alemanha e da Áustria, Marx fez-se intérprete de uma política de esquerda que, esperava ele, acabaria por levar a uma guerra do Ocidente democrático contra a Rússia czarista.

Poderemos encontrar a explicação para este evidente dualismo no modelo jacobino da doutrina revolucionária adotada por Marx e Engels antes da revolução de Fevereiro de 1848, e ao qual permaneceram globalmente fiéis, mesmo depois de o desfecho desta revolução ter arruinado as suas entusiastas esperanças de há pouco. É certo que não lhes escapava a necessidade de adaptar a tática às condições mudadas, mas isso não impediu que a sua teoria da revolução, mesmo sob a forma materialista mais acabada que lhe deram depois, conservasse o caráter particular do período transitório, durante o qual o proletariado se via ainda constrangido a prosseguir a luta pela sua própria emancipação social, passando pelo estágio intermediário de uma revolução de dominação política.

É verdade que Marx deveria atribuir em seguida uma importância cada vez maior aos efeitos políticos revolucionários da guerra econômica conduzida pelos sindicatos e por outras formas de defesa dos interesses imediatos e específicos dos operários: veja-se o papel de organizador e de dirigente que assumiu nos anos de 1860 no seio da Associação Internacional dos Trabalhadores, e a sua participação, na década seguinte, na elaboração do programa e da tática de diversos partidos nacionais. Mas também é verdade, e a luta impiedosa que os marxistas travaram no quadro da Internacional contra os discípulos de Proudhon e de Bakunin prova-o eloquentemente, que Marx e Engels nunca abandonaram realmente as suas concepções anteriores sobre a importância da política, considerada a única forma consciente e plenamente desenvolvida da ação de classe revolucionária. Não há senão uma diferença de vocabulário entre o embrulhar circunspecto[3] da política, subordinada como um meio ao objetivo final da “emancipação econômica da classe operária”, que comportam os estatutos da A.I.T. de 1864, e a proclamação sem equívoco, no Manifesto Comunista de 1848, de que “toda a luta de classes é uma luta política” e que “a constituição dos proletários em classe” pressupõe a sua “constituição em partido político”. Assim, de uma ponta à outra da sua carreira, Marx definiu o seu conceito de classe em termos fundamentalmente políticos e, de fato senão mesmo em palavras, sempre subordinou as múltiplas atividades exercidas pelas massas na sua luta de classe cotidiana às atividades exercidas em seu nome pelos seus dirigentes políticos.

Esta opção deveria afirmar-se ainda mais distintamente quando das raras e extraordinárias ocasiões em que Marx e Engels, no decurso dos seus últimos anos, se viram chamados a tratar de novo tentativas reais de revolução europeia. Veja-se a reação de Marx à Comuna revolucionária dos operários parisienses em 1871. Veja-se também a atitude positiva e visivelmente contraditória que Marx e Engels adotaram face ao projeto perfeitamente idealista da Narodnaia Volia, que visava desencadear com expedientes terroristas “uma revolução política e logo uma revolução social” nas condições atrasadas próprias da Rússia czarista dos anos de 1870 e 1880. Tal como se mostrou detalhadamente em artigo anterior (A Ideologia marxista na Rússia — NT), Marx e Engels não se limitavam a pensar que a explosão revolucionária eminente na Rússia daria o sinal de uma revolução geral na Europa, e de uma revolução de tipo jacobino no quadro da qual “se romper o ano de 1789, o ano de 1793 chegará sem dúvida” (como Engels escrevia em 1885 a Vera Zassoulitch). Eles saudavam decididamente na revolução russa e pan-europeia uma revolução operária, ponto de partida de um desenvolvimento comunista.

Por conseguinte nada justifica a tese dos mencheviques e dos adeptos de outras escolas ligadas à ortodoxia marxista ocidental de tipo tradicional, segundo a qual o marxismo de Lênin não seria de fato senão um regresso a uma primeira forma do marxismo de Marx, que este último teria substituído em seguida por uma forma mais madura e mais materialista. É indiscutível que a própria similitude da situação histórica que surgia na Rússia do princípio do século XX, com as condições predominantes na Alemanha, Áustria, etc., na véspera da revolução europeia de 1848, dá conta do fato, de outro modo incompreensível, que tenha sido possível encarar de verdade a fase mais recente do movimento revolucionário do nosso tempo sob a forma paradoxal de um regresso ideológico ao passado. Apesar disso, como expusemos acima, o marxismo revolucionário “restaurado” por Lênin permanecia bem mais conforme, no seu conteúdo puramente teórico, ao verdadeiro espírito de todas as fases históricas da doutrina marxiana do que o marxismo social-democrata do período precedente, o qual, apesar da “ortodoxia” de que se vangloriava com ar de grande professor, nunca passou de uma forma mutilada e desfigurada da teoria marxiana, vulgarizando o real conteúdo desta e adocicando-lhe os princípios. É por esta mesma razão que a experiência de Lênin “restaurando” o marxismo revolucionário deveria demonstrar o mais claramente possível a absoluta vanidade de toda a tentativa de tirar a teoria da ação revolucionária da classe operária, não do seu conteúdo próprio, mas de um “mito”. Acima de tudo, esta experiência demonstrou a perversidade ideológica da ideia de suprir as deficiências presentes da ação por um retorno imaginário a um passado mitificado. Ainda que semelhante reativação de uma ideologia morta tivesse podido, por exemplo, encobrir durante certo tempo aos artífices do “Outubro” revolucionário as limitações históricas dos seus heroicos esforços, ela conduziu infalivelmente no fim de contas não a reencontrar o espírito do movimento precedente, mas apenas a evocar de novo o seu espectro. Nos nossos dias, acabou em uma forma nova e “marxista revolucionária” de esmagamento de movimentos revolucionários autênticos na Espanha e em todo o mundo.

Tudo isto prova claramente que não se pode hoje “restaurar” o marxismo na sua forma originária sem o transformar ao mesmo tempo em ideologia pura, desempenhando um objetivo absolutamente diferente, mesmo toda uma variedade de objetivos políticos diversos. É assim que esta ideologia serve neste preciso momento para camuflar o rebaixamento do papel preponderante até agora reservado ao partido dirigente e o reforço do poder pessoal, de tipo próximo do fascismo, exercido por Stálin e pelos seus subalternos de espinha flexível. Simultaneamente, no plano internacional, a política dita antifascista do Komintern “marxista” acaba por desempenhar, nas atuais lutas entre as diversas coligações de potências capitalistas, exatamente o mesmo papel que o seu contrário, a política estrangeira dos regimes de Hitler, de Mussolini e dos senhores da guerra japoneses.

Sublinhemos com força que toda a crítica acima expressa diz respeito exclusivamente aos esforços ideológicos desenvolvidos nos últimos cinquenta anos para “preservar” ou “restaurar”, com vista a uma aplicação imediata, uma “doutrina marxista revolucionária” completamente mitificada. Nada neste artigo visa os resultados científicos obtidos por Marx e Engels e por alguns dos seus discípulos, nos diversos campos da pesquisa social. Acima de tudo, nada neste artigo visa o que poderíamos chamar, num sentido muito amplo, o movimento marxista, isto é, o movimento revolucionário independente da classe operária. Para descobrir o que resta vivo ou pode ser trazido à vida no presente estágio de ponto morto em que se encontra o movimento operário revolucionário, seria bom voltarmos a esta abertura de espírito — prática e não apenas ideológica — que levou a primeira Associação internacional dos trabalhadores marxista (e ao mesmo tempo proudhoniana, blanquista, bakuniniana, sindicalista, etc.) a admitir nas suas fileiras todos os operários defensores do princípio da luta de classe independente do proletariado. Princípio enunciado nestes termos, na primeira linha dos seus estatutos, elaborados por Marx:

“A emancipação da classe trabalhadora deve ser obra dos próprios trabalhadores.”


[1] [N.T.] Pessoa de maior destaque ou influência em um grupo (especialmente em movimentos políticos, religiosos etc.), em uma arte, em uma profissão; líder, chefe.

[2] [N.T.] Partido cartista: uma das primeiras organizações dos trabalhadores que emergiu na Inglaterra. Cf.: Marx e Engels, Sindicalismo, p. 67, Ched Editorial, 1980.

[3] [N.T.] Que olha ou encara prudente e cuidadosamente todos os aspectos por que se apresenta uma questão, um fato etc.

O presente artigo foi retirado do seguinte site: https://www.marxists.org/portugues/korsch/1938/08/tarefas.htm. Revisado por Ádamo Soares.