Marx & Keynes – Paul Mattick

É muito difícil encarar as teorias de Keynes como uma “revolução” do pensamento econômico. Porém, o termo pode ser usado sem problema, pois a teoria keynesiana é apelidada de doutrina revolucionária “no sentido em que produziu resultados teóricos inteiramente diferentes do corpo de pensamento econômico existente na época em que foi elaborada”[1]. Mas, uma vez que este corpo de pensamento era a teoria neoclássica do equilíbrio, a “revolta” de Keynes deve talvez ser considerada como um regresso parcial à teoria clássica. E isto não obstante a oposição de Keynes à teoria clássica, que, na sua definição peculiar, incluía todo o corpo de pensamento econômico desde Ricardo até aos seus contemporâneos.

Embora Keynes se considerasse anti-ricardiano, os seus críticos viram, evidentemente, que tentou “chegar à verdade econômica à maneira de Ricardo e dos seus seguidores[2]” através da sua análise em termos de agregados econômicos. Os amigos concluíram que, devido a Keynes, “o estudo dos agregados econômicos ocupou o seu lugar no centro da ciência econômica, e nunca mais poderá ser relegado para a periferia onde os economistas pré-keynesianos o deixaram – não podemos não descobrir a América[3]”. Mas Keynes não foi nenhum Colombo, pois o conceito de agregados econômicos remonta a duzentos anos antes, ao Tableau Economique de Quesnay, e depois a Ricardo e a Marx.

Foi a rejeição da “lei do mercado” de Say, que deu à sua teoria a conotação de “revolucionária”. Quase setenta e cinco anos antes, Marx sublinhara que só uma expansão acelerada do capital permite um aumento do emprego. Quanto a “J. B. Say, esse obtuso e cômico ‘príncipe da ciência’”, Marx nem considerou que valia a pena destruí-lo, embora “os seus admiradores do continente o tenham celebrado como o homem que desenterrou o tesouro do equilíbrio metafísico entre compras e vendas[4]”. Com efeito, para Marx, a lei do mercado de Say era um completo absurdo, dada a discrepância crescente entre as exigências produtivas da sociedade, num plano racional, entre a procura social no capitalismo e as necessidades sociais reais. E sublinhou que a acumulação do capital implica um exército de reserva industrial de desempregados.

Existe uma conexão necessária entre Marx e Keynes. O primeiro antecipou a crítica de Keynes da teoria neoclássica com a sua própria crítica da teoria clássica, e ambos reconheceram o dilema capitalista numa situação de baixa da taxa de formação de capital. Mas, enquanto Keynes apontou a sua causa como sendo uma carência de incentivo ao investimento, Marx identificou a raiz última do dilema: o caráter da produção enquanto produção de capital. É, pois, surpreendente ver Keynes relegar Marx para o “submundo do pensamento econômico, juntamente com Gesell e Major Douglas”[5]. Embora estivesse disposto a aprender o que viesse do “submundo”, como prova a sua afinidade com as ideias de Gesell, Keynes considerou “que o futuro extrairá mais ensinamentos de Gesell do que de Marx”. Pensava assim, disse ele, porque, ao contrário de Gesell, Marx baseou as suas teorias “numa aceitação da hipótese clássica e na liberdade da concorrência e não na sua abolição”[6].

Um mero estudo superficial de O Capital teria mostrado a Keynes que as teorias de Marx, que ele considerava “ilógicas, obsoletas, cientificamente erradas e sem interesse nem aplicação ao mundo moderno”[7], levavam a conclusões frequentemente muito semelhantes às que constituem o conteúdo “revolucionário” das suas próprias teses. Ele não estudou Marx a sério porque identificava as teorias deste com as dos clássicos. Numa carta a G. B. Shaw, referiu “ter feito outra tentativa de ler o velho Marx […] através da sua correspondência com Engels”, mas continuava sem descobrir nada para além de “uma polemização fora de moda”. Também disse a Shaw que ele próprio estava “a escrever um livro de teoria econômica que irá revolucionar fortemente – não no imediato, mas no decurso dos próximos dez anos – o modo como o mundo pensa os problemas econômicos. Haverá uma grande mudança, e, em particular, os fundamentos ricardianos do marxismo serão aniquilados[8]”. Ao combater a “teoria clássica”, Keynes pensava que estava a combater também o marxismo[9]. Na realidade, porém, não tratou de nenhuma destas teorias, mas atacou a teoria neoclássica do mercado, que já não tinha qualquer ligação significativa com as ideias de Ricardo.

Keynes preferia Gesell a Marx, porque aquele apoiava políticas econômicas, particularmente nos campos monetário e fiscal, que considerava capazes de aliviar os males econômicos do capitalismo sem alterar a sua estrutura social básica. Marx, embora tivesse tratado exaustivamente das questões monetárias, enfatizou os aspectos extramonetários da economia. Na sua perspectiva, as questões monetárias só podiam ser compreendidas à luz das relações de produção capitalistas, das “diferentes condições econômicas fundamentais em que se confrontam comprador-vendedor, na sua relação de classe. A relação não está dada com a natureza do dinheiro; é antes a existência desta relação que pode transformar uma mera função de dinheiro numa função de capital”[10]. E só neste último sentido isto tem interesse atual.

Segundo Marx, o dinheiro é importante, não como medida de valor e meio de troca, mas porque é a “forma independente de existência do valor de troca”. No processo de circulação capitalista, o valor assume por vezes a forma de dinheiro e, outras vezes, a de outras mercadorias. Na forma de dinheiro, conserva-se e expande-se. A economia de mercado e a acumulação de capital defrontam-se com dificuldades que surgem sob a forma de perturbações monetárias. O processo de compra e venda, em si mesmo, ao dotar o dinheiro de duas funções diferentes, contém um elemento de crise, pois o vendedor não é forçado a comprar, mas pode conservar a sua riqueza em dinheiro. Se a quantidade de dinheiro existente não for suficiente para poder funcionar como capital adicional, pode exigir um período de entesouramento, o que é susceptível também de constituir um elemento de crise. Uma penúria relativa, tal como uma abundância relativa, de capital pode conduzir a dificuldades econômicas que se manifestarão como crise do sistema monetário.

A necessidade de entesourar para satisfazer as necessidades de acumulação de capital produtivo foi em grande medida eliminada pelo desenvolvimento do sistema bancário e de crédito. A junção de recursos monetários ajudou a expandir as operações industriais e comerciais. O caráter cada vez mais especulativo da produção de capital acentuou os aspectos irracionais da concorrência ao dar origem a uma carência ou excesso de investimentos. Evidentemente que estas atividades não eram consideradas “especulativas” em sentido pejorativo[11], uma vez que a função do capital financeiro devia ser precisamente “prever” os desenvolvimentos posteriores e “criar” as condições para uma formação acelerada de capital. Porém, pode existir uma crise estritamente monetária devida ao movimento relativamente autônomo do dinheiro na forma de capital financeiro. Assim, Keynes distinguiu a “finança” da “indústria”, apadrinhando esta última e definindo a primeira como a atividade ligada ao mercado do dinheiro, à especulação, às operações da bolsa e ao financiamento da produção. Embora tenha defendido que “os especuladores podem ser tão inofensivos como bolhas dentro de uma corrente empresarial estável”, considerou a situação “grave quando é a empresa que se converte numa bolha no meio do turbilhão especulativo”[12].

Esta distinção entre “indústria” e “finança”, entre capital “produtivo” e capital “parasitário” é tão velha como o capitalismo e deu origem a uma luta falaciosa contra o “jugo do juro” e os especuladores irresponsáveis. Este assunto, que se insere totalmente dentro das fronteiras do capitalismo, é agora em grande medida uma coisa do passado, pois a fusão entre a indústria e a finança é tão completa que exclui uma distinção “moral” entre elas. Mas, mesmo anteriormente, não só os financeiros como todos os capitalistas viam na produção “simplesmente um mal necessário para efeitos de fazer dinheiro”. E, embora o processo de produção gere lucros, sempre se fizeram tentativas de “fazer dinheiro sem que o processo de produção apareça como inevitável elo intermédio”[13]. Em particular, em épocas de capital “ocioso” e de estagnação da taxa de investimentos, os capitalistas redobram esforços para fazer dinheiro à custa de outros detentores de dinheiro e de títulos através de manipulações financeiras e operações na bolsa.

A especulação pode acentuar situações de crise ao permitir a sobreavaliação fictícia do capital, que deixa então de poder corresponder às perspectivas de lucro que corporiza[14]. Mas os “ganhos monetários” especulativos representam outras tantas “perdas de dinheiro”. A menos que a especulação sirva como instrumento de concentração de capital, ela representa apenas uma redistribuição do valor de troca disponível. A concentração de riqueza é economicamente desprovida de significado, a menos que seja acompanhada de uma reorganização da estrutura do capital que conduza a uma nova expansão deste.

A repartição da mais-valia (lucros) entre os capitalistas “ativos” e “inativos” – em que Keynes muito insistia – é, para Marx, apenas um aspecto da concorrência geral pela parcela maior possível da mais-valia social entre todos os capitalistas e todos os que vivem do sobreproduto. Ele não duvidava de que, em determinadas condições, uma queda da taxa de juro afetaria positivamente os investimentos. Com efeito, se uma parte demasiado grande dos lucros realizados for para os mutuantes, os empresários terão menos possibilidades de expandir a produção. Mas nenhuma generalização respeitante ao comportamento e à importância da taxa de juro se pode basear nesta possibilidade. As altas taxas de juro não são incompatíveis com altas taxas de lucro. Quando tudo está bem na esfera da produção de lucro, uma taxa de juro relativamente elevada não refreará a formação de capital. Pode mesmo acelerar o seu ritmo, se a produtividade se desenvolver de um modo suficientemente rápido para satisfazer ao mesmo tempo o capital de empréstimo e o capital produtivo. Na realidade, a taxa de juro pode aumentar ou cair com uma diminuição dos lucros, bem como com um aumento da rendibilidade, pois em qualquer dos casos a procura de dinheiro pode exceder a oferta ou vice-versa.

Para Marx, o juro é apenas uma parte do lucro médio. Resulta do fato de o capital assumir dois papéis: enquanto capital gerador de juro em poder do mutuante e enquanto capital industrial em poder dos empresários. Porém, enquanto capital, funciona apenas uma vez, e só uma vez pode gerar lucro. Para além da renda fundiária, este lucro divide-se então em lucro e juro. Muitas vezes, a divisão é arbitrária e não afeta os problemas básicos da produção de capital. Estando geralmente limitada pela taxa de lucro, a taxa de juro não pode ter a importância que a teoria monetária lhe atribui.

No que respeita aos problemas da taxa de juro, não foi a tese de Keynes, mas sim a de Marx, que se confirmou na situação de crise. Na década de queda da taxa de juro que se seguiu a 1929, as decisões de investimento não foram seriamente afetadas. A manipulação da taxa de juro deixou de ser vista como um instrumento fundamental para a orientação da atividade econômica, e, “nos meios acadêmicos, parece vingar a ideia de que a importância da taxa de juro foi muito exagerada na teoria tradicional, e que, no fim de contas, Marx não estava assim tão errado ao desvalorizá-la completamente”[15]. A breve trecho tornou-se consensual que as decisões de investimento raramente se baseiam na taxa de juro do mercado[16] e que, “nas condições modernas, o fluxo de poupança parece ser pouco influenciado pelo nível das taxas de juro”[17].

Keynes foi finalmente forçado a reconhecer as limitações econômicas da manipulação das taxas de juro, e que “o colapso da eficiência marginal do capital pode ser tão acentuado que nenhuma redução efetiva da taxa de juro será suficiente[18]” para estimular os investimentos. “Com os mercados organizados e influenciados como estão”, escreveu ele, “a estimativa de mercado da eficiência marginal do capital está sujeita a flutuações grandes que não podem ser suficientemente compensadas por modificações correspondentes da taxa de juro”[19]. Concluiu daqui que pode ser necessário que o Estado controle e oriente diretamente os investimentos.

Em economia, antes de Keynes houve apenas duas escolas – a economia burguesa e a sua crítica marxista. Na realidade, a economia burguesa abrangia uma série de perspectivas sobre as dificuldades que têm origem no seio do sistema e os meios para as superar. Havia desvios teóricos relativamente à posição geralmente aceite do laissez-faire. Alguns deles estavam relacionados com as necessidades específicas e flutuantes de grupos capitalistas particulares, e outros com os problemas criados pelas diferenças entre os países capitalistas no quadro da economia mundial. Porém, todos eles consideravam o sistema capitalista de produção como um dado de fato. Não punham em causa a produção de lucro, nem a propriedade privada, nem a acumulação competitiva de capital. Enquanto as relações de mercado parecessem produzir algum tipo de ordem econômica real, a teoria do laissez-faire era capaz de resistir a este tipo de ataques.

Mas as grandes convulsões econômicas e sociais do capitalismo do século XX destruíram a confiança na validade do laissez-faire. A crítica de Marx da sociedade burguesa e da sua economia não podia continuar a ser desvalorizada. A sobreprodução de capital com a sua rendibilidade em queda, ausência de investimentos, sobreprodução de mercadorias e desemprego crescente, tudo previsto por Marx, eram a realidade inegável e a causa óbvia das convulsões políticas da época. Por mais que se quisessem ver nestes acontecimentos perturbações temporárias que rapidamente desapareceriam com a retomada da produção de capital, isso não eliminou a necessidade urgente de intervenções estatais para reduzir a profundidade da crise e assegurar em alguma medida a estabilidade social. A teoria de Keynes adaptava-se perfeitamente à situação. Aceitava as previsões econômicas de Marx, sem aceitar o próprio Marx, e representava, nos seus fundamentos e em termos burgueses, uma espécie de repetição mais fraca da crítica marxiana. E o seu objetivo era suster o declínio do capitalismo e evitar o seu possível colapso.


[1] L. R. Klein, The Keynesian Revolution, Nova Iorque, 1947, p. VII.

[2] A. F. Burns, Economic Research and the Keynesian Thinking of Our Time, Nova Iorque, 1946, p. 4.

[3] The Economist, Londres, 27 de Janeiro de 1951.

[4] K. Marx, A Contribution to the Critique of Political Economy, Chicago, 1904, p. 123.

[5] The General Theory, p. 32.

[6] Ibid., p. 355.

[7] J. M. Keynes, Laissez-Faire and Communism, p. 48.

[8] R. F. Harrod, The Life of John Maynard Keynes, p. 462.

[9] A própria lealdade de classe opunha Keynes a Marx: “Quando se trata da luta de classes enquanto tal”, escreveu ele, “o meu patriotismo local e pessoal […] está ligado ao meu meio circundante. Posso ser influenciado por aquilo que a mim me parece ser a justiça e o bom senso; mas a guerra de classes encontrar-me-á do lado da burguesia educada”, Essays in Persuasion, Londres, 1931, p. 324.

[10] O Capital, livro II, tomo IV, p. 41.

[11] O capitalista bem-sucedido, especulador e financeiro, mesmo quando as suas atividades são consideradas em sentido pejorativo, torna-se um benfeitor da nação. Por exemplo, S. H. Holbrook escreve que, de acordo com as leis atuais, quase todos os grandes magnatas americanos seriam condenados a uns bons cem anos de prisão. No entanto, considera “que, independentemente do modo como estes homens acumularam as suas fortunas, eles contribuíram enormemente para que os Estados Unidos ocupem presentemente uma posição incomparável no mundo dos negócios e da indústria”, The Age of the Moguls, Nova Iorque, 1953, p. X.

[12] The General Theory, p. 159.

[13] O Capital, livro II, tomo IV, p. 67.

[14] “Quando as pessoas puderem fazer dinheiro mais facilmente comprando ações da du Pont do que a companhia du Pont pode fazer produzindo nylon, dacron e produtos químicos, é altura de ficar alerta”. The Senate Banking Committee’s Report on its Stock Market Survey. The New York Times, 27 de Maio de 1955.

[15] J. Robinson, Na Essay on Marxian Economics, Londres, 1942, p. 84.

[16] Em Inglaterra, o Committee on the Working of the Monetary System (Radcliffe Report) chegou à conclusão de que os meios monetários que afetam a taxa de juro são em si mesmos absolutamente incapazes de estimular a economia e têm apenas significado no quadro de uma política econômica geral que inclui medidas fiscais e intervenções diretas da administração central. Cumd. 827, Londres, 1959.

[17] The Statist, Londres, 24 de Setembro de 1955.

[18] The General Theory, p. 316.

[19] Ibid., p. 320.

O presente artigo foi publicado originalmente no livro Marx & Keynes, Os Limites da Economia Mista, Paul Mattick, Antígona, 2010.