Carta de Anton Pannekoek ao anarquista australiano Kenneth Joseph Kenafick* (26 de maio de 1949) sobre as diferenças entre Marx e Bakunin, marxismo e anarquismo. Em anexo está a cópia do manuscrito de Pannekoek, no qual ele escreve que é “deel v brief aan Kenafick” (parte da carta a Kenafick), obtida do International Institute of Social History em Amsterdam. (IISG, Pannekoek Archives, F. 108 PP. 8)
* Observação: K. Kenafick publicou a obra Michael Bakunin and Karl Marx. Melbourne, 1948.
“Acho que estamos agora numa predisposição, determinada pelas condições atuais produzidas pelo desenvolvimento social, de olhar mais objetivamente, sem tomar lados, para aquela disputa entre dois grandes revolucionários que dominaram o movimento revolucionário no século XIX; de perceber que nós temos um pouco de cada e compreender sua diferença e oposição. Ambos tomaram parte na revolução de 1848 como militantes; mas depois seus caminhos se separaram; eles foram, com efeito, produtos de meios sociais completamente distintos. Bakunin vinha da Rússia, onde o absolutismo czarista restringia todo progresso social e mental; Marx foi formado pelo capitalismo industrial ocidental em ascensão. Para Bakunin, portanto, a liberdade era a grande ideia; ele via no poder estatal a base da escravidão e da penúria das massas.
Marx viu na exploração capitalista a causa da miséria e da escravidão; a liberdade política ele viu presente na Inglaterra, onde, no entanto, a miséria operária era maior; e uma vez que naquela época o capitalismo era uma massa de pequenas empresas separadas competindo entre si, desorganizadas, ele considerava a organização como a demanda principal, que só poderia ser verificada por um poder central dominante, um poder estatal democrático, dominado pela classe operária. Portanto, suas ideias fundamentais opuseram-se uma contra a outra; Marx via que a liberdade política de Bakunin não era suficiente (vide a Inglaterra); Bakunin disse que o poder de Estado organizado de Marx traria a pior escravidão. Bakunin, como muitos russos, havia estudado e assimilado a ciência e o conhecimento ocidentais, e, diferentemente de outros russos, os aplicava para tomar parte na luta das massas exploradas na Europa Ocidental, pensando que suas queixas eram iguais às suas. Marx revolucionou a ciência ocidental e colocou dessa forma, através do seu materialismo histórico e de sua teoria econômica do capitalismo, uma nova base para toda a luta de classes posterior.
Seu conflito na I Internacional foi tratado por ambos os lados, por socialistas e anarquistas, cada qual defendendo seus precursores, repetindo em sua maior parte todos os velhos argumentos e acusações. Você conhece a obra do autor suíço Brupbacher sobre Marx e Bakunin; quando o bem conhecido historiador e socialista alemão Franz Mehring depois confirmou o seu ponto de vista e expressou sua própria atitude crítica a muitas das afirmativas de Marx, encontrou muita reprovação entre seus camaradas do partido socialista; acho que lembro que Riazanov, certamente um dos melhores especialistas em História socialista, criticou Mehring a esse respeito.
Não foi simplesmente o conflito de duas personagens opostas, de um lado o espírito ardente que apelava aos sentimentos rebeldes para lutar pela liberdade, do outro o cientista fundamental que tentava organizar o despertar da classe operária. Tratava-se do problema de como unir organização e liberdade em uma forma e método de ação revolucionária. Esta questão não podia ser resolvida naquela época porque sua solução exigia um estágio mais elevado de consciência proletária do que havia presente no século XIX. Desde então, o desenvolvimento capitalista transformou essas condições. A organização se tornou uma arma do capitalismo, e nas suas mãos o poder do Estado tornou-se, na Alemanha e na Rússia, um instrumento esmagador de supressão despótica de toda liberdade. Agora que os socialistas que se denominam seguidores de Marx, em uma distorção unilateral de suas concepções, e atuam como agentes do capitalismo de Estado, é natural que a atenção se volte, nos grandes círculos, aos escritos de Bakunin. E assim eu penso, portanto, que um livro que explique suas concepções irá encontrar muito interesses entre os trabalhadores.
Não devemos esquecer, porém, que assim o problema não fica resolvido. Esta solução só pode proceder a partir da ação da classe operária, quando ela tem de lutar contra a degradação das condições sob uma ditadura estatal mais poderosa. Acho que deve ficar claro que a organização por conselhos forma a síntese das concepções que no século anterior pareciam estar em total antagonismo. Na organização dos conselhos, os objetivos da organização e da liberdade são combinados em uma unidade harmônica. Eles primeiro apareceram espontaneamente nos sovietes da Revolução Russa, mas foram logo suprimidos e distorcidos pelo capitalismo de Estado. Depois na Alemanha em 1918-19, eles brotaram como Arbeiterräte [do alemão, conselhos operários – AG], e aqui e na Holanda, nos grupos dissidentes que se opunham ao desenvolvimento do PC [Partido Comunista], a ideia dos conselhos operários encontrou uma expressão cada vez mais clara. Através deste novo ponto de vista, penso que seremos capazes de entender melhor a obra de nossos grandes predecessores.”
Traduzido por Alexandre Guerra, segundo as versões disponíveis em: https://libcom.org/history/pannekoek-marx-bakunin e https://www.aaap.be/Pages/Pannekoek-Letters.html.