Ideologia e Consciência de Classe – Paul Mattick

Original em inglês: Ideology and class consciousness

Incluído em “Marxismo, o último refúgio da burguesia?”, 1983, (póstumo).

No passado, todas as causas perdidas aparecem como esforços irracionais, enquanto aquelas que tiveram êxito parecem racionais e justificáveis. Os objetivos da minoria revolucionária derrotada têm sido invariavelmente descritos como utópicos e, deste modo, como indefensáveis.  O termo “utópico” não se aplica, no entanto, a projetos objetivamente realizáveis, mas a sistemas imaginários, que podem ou não ter proporcionado concretamente apontamentos materiais que permitiram sua realização. Não havia nada de utópico na tentativa de ganhar o controle da sociedade por meio dos conselhos operários e acabar com a economia de mercado, pois, no sistema capitalista desenvolvido, o proletariado industrial é o fator determinante no processo de reprodução social como um todo, que não está necessariamente associado ao trabalho enquanto trabalho assalariado. Seja uma sociedade capitalista ou socialista, em qualquer caso é a classe operária que a permite existir, a produção pode realizar-se sem considerar sua expansão em termos de valor e as necessidades de acumulação de capital. A distribuição e a atribuição do trabalho social não dependem das relações indiretas de troca de mercado, mas podem ser conscientemente organizadas através de novas instituições sociais adequadas sob o controle aberto e direto dos produtores. O capitalismo ocidental em 1918 não era o sistema de produção social necessário, mas unicamente o existente, cuja derrocada só o libertaria de suas estorvos capitalistas.

O que faltou não foi a possibilidade objetiva da mudança social, mas uma disposição subjetiva por parte da maioria da classe operária para aproveitar a oportunidade de derrubar a classe dominante e tomar posse dos meios de produção. O movimento operário mudou com a mudança do capitalismo, mas em uma direção contrária às expectativas marxianas. Apesar da ideologia pseudomarxista, ele tendeu para a posição apolítica que caracteriza os movimentos operários nos países anglo-saxões e para sua aceitação positiva do sistema capitalista. O movimento tornou-se politicamente “neutro”, por assim dizer, deixando as decisões políticas aos partidos políticos credenciados da democracia burguesa, da qual estava, entre outros, o Partido Social-Democrata. Os trabalhadores apoiaram o partido que prometia ou aparentemente se propunha encarregar de suas necessidades imediatas, particulares, que agora compreendia todas as suas necessidades. Eles não se oporiam à nacionalização das indústrias, se esse fosse o objetivo de seu partido preferido, tampouco se opunham a negar esse princípio em favor do sistema de propriedade privada. Simplesmente deixaram tais decisões para seus dirigentes eleitos e mais ou menos confiáveis, assim como esperavam as ordens de gerentes ou empresários nas fábricas. Continuaram a recusar qualquer tipo de autodeterminação, deixando as coisas simplesmente como estavam, o que parecia preferível ao tumulto e às incertezas de uma luta prolongada contra as autoridades tradicionais. Deste modo, não é possível dizer que a social-democracia “traíra” a classe operária; o que seus dirigentes “traíram” foi seu próprio passado, agora que eles haviam se tornado uma parte estimada do sistema capitalista.

O fracasso da Revolução Alemã parece justificar a afirmação bolchevique de que, abandonada a si mesma, a classe trabalhadora não é capaz de fazer uma revolução socialista e, por conseguinte, requer a liderança de um partido revolucionário pronto para assumir poderes ditatoriais. Mas a classe operária alemã não tentou fazer uma revolução socialista e, portanto, a ausência desta tentativa não pode demonstrar a validade da proposta bolchevique. Além disso, havia uma “vanguarda” revolucionária que tentou mudar o caráter puramente político da revolução. Embora esta minoria revolucionária não aderisse ao conceito bolchevique de partido, estava preparada para assumir a liderança, não como sua dirigente, mas como parte da classe trabalhadora. Nas condições da Europa Ocidental, uma revolução socialista dependia claramente das ações da classe e não de ações partidárias, pois aqui é a classe trabalhadora como um todo que deve tomar o poder político e os meios de produção. É certo, é claro – mas verdadeiro para todas as classes, tanto para a burguesia quanto para o proletariado – que é sempre apenas uma parte do todo que está realmente comprometida com os assuntos sociais, enquanto a outra parte permanece inativa. Mas, de qualquer forma, é a parte ativa que é decisiva quando se trata do resultado da luta de classes. Não é, deste modo, uma questão de que o conjunto da classe operária literalmente tome parte no processo revolucionário, mas de uma massa suficiente para igualar as forças mobilizadas pela burguesia. Esta massa relativa não se adicionou suficientemente rápido para compensar o crescente poder da contrarrevolução. 

Toda a estratégia contrarrevolucionária consistia em prevenir um possível aumento da minoria revolucionária. A grande corrida para a Assembleia Nacional, como o objetivo político da social-democracia, foi ao mesmo tempo ditado pelo medo de que uma existência prolongada dos conselhos operários pudesse levar à sua radicalização na direção da minoria revolucionária. Com a desmobilização do exército, a diversidade política dos conselhos de soldados desapareceria, e a composição dos conselhos, baseada agora exclusivamente nas fábricas, poderia assumir um caráter mais coerentemente revolucionário. Que esse medo era infundado, veio à tona nos resultados da eleição para a assembleia nacional, que deu aos socialistas majoritários 37,9% do total dos votos, enquanto os socialistas independentes mais radicais receberam somente 7,6%. A social-democracia tinha, todavia a confiança da massa da classe operária, apesar, ou quiçá, do seu programa antirrevolucionário. Apesar disso, persistia o medo de que a vitória da democracia burguesa poderia não ser o último ato da revolução. Com a Rússia revolucionária como precedente, uma novo levante revolucionário permanecia uma possibilidade — uma situação que exigia a destruição sistemática das forças revolucionárias que se negavam a aceitar a reconsolidação do regime capitalista.

Embora exigisse o fim da guerra, nem todo exército se uniu à revolução. No entanto, para facilitar a retirada ordenada das linhas de frente e evitar uma guerra civil em grande escala, o Alto Comando Militar aceitou tanto os conselhos de soldados quanto o governo social-democrata provisório. Em estreita cooperação com o Alto Comando Militar, o governo recentemente estabelecido começou a selecionar e organizar em formações voluntárias (Freikorps) os elementos mais fidedignos do exército em dissolução para desafiar, desarmar e destruir a minoria revolucionária. Sob o comando do militarista social-democrata Gustav Noske, essas forças militares triunfaram pouco a pouco na eliminação dos revolucionários armados onde quer que tentassem empurrar a revolução para além dos confins da democracia burguesa. O recurso ao terror branco perturbou a complacência das massas social-democratas um pouco mais do que a agitação revolucionária dos comunistas. No entanto, essa perda de confiança na liderança social-democrata não beneficiou aos comunistas, mas apenas aumentou as fileiras dos socialistas independentes divididos na oposição. Entre as eleições da Assembleia Nacional de janeiro de 1919 e a eleição para o Reichstag em junho de 1920, os votos dos socialistas majoritários caíram de 37,9% para 21,6%, enquanto os dos socialistas independentes aumentaram de 7,6% para 18%.

Assim como o Partido Social-Democrata usou o movimento dos conselhos para sustentar sua própria influência política, também não se opôs à nacionalização da indústria em larga escala proposta pelo Segundo Congresso dos Conselhos dos Operários. Isso seria assumido pela Assembleia Nacional, que, naturalmente, não ofereceu nenhuma garantia de que a demanda também seria levada em consideração. Mas esse aparente compromisso com a implementação de um programa de nacionalização — como sinônimo de socialização — permitiu ao Governo Provisório camuflar seu curso contrarrevolucionário com a promessa de levar adiante o processo de socialização por meios pacíficos e legais, em contraste com os esforços comunistas para alcançá-lo através da guerra civil. Enquanto o terror branco reinava, isso acontecia apenas porque o “socialismo estava em marcha” e não encontrou nenhum obstáculo em seu caminho além do “anarquismo bolchevique”. Onde quer que essa promessa fosse levada a sério, como por exemplo, por parte dos conselhos operários e de soldados do distrito de Rühr, que deram seu primeiro passo para a socialização, assumindo o controle de indústrias e minas com a expectativa de que o governo completasse e ratificasse suas ações, sua iniciativa independente foi rapidamente encerrada por meios militares. De qualquer forma, o conceito social-democrata de nacionalização não incluía a autodeterminação proletária, mas meramente, e na melhor das hipóteses, a apropriação das indústrias pelo Estado. Foi apenas nesse sentido — isto é, no sentido bolchevique — que a nacionalização foi discutível, e logo seria descartada como objeto de discussão, junto com a comissão parlamentar sobre a socialização devidamente instituída.       

A Revolução de Novembro em si foi, desta forma, seu único resultado. Além da derrubada da monarquia, algumas mudanças nos procedimentos eleitorais, o turno de oito horas e a transformação dos conselhos de fábricas em comitês de delegados apolíticos sob os auspícios sindicais, a economia capitalista liberal permaneceu intacta e o Estado permaneceu um Estado burguês. Tudo o que a revolução alcançou foram algumas reformas mesquinhas que poderiam, de qualquer modo, ter sido realizadas dentro do marco do desenvolvimento “normal” do capitalismo. Na mente dos reformadores social-democratas, a mudança social sempre foi um processo puramente evolutivo de pequenas melhorias progressivas que eventualmente levariam a um sistema social quantitativamente diferente. Eles se viam, em 1914 e, novamente, em 1918, não como “contrarrevolucionários” ou como “traidores” da classe trabalhadora, mas, pelo contrário, como seus verdadeiros representantes, que se preocupavam tanto com as necessidades mais imediatas dos trabalhadores e sua emancipação social final. Não há nada de surpreendente nisso, pois, mais frequentemente do que parece, até os capitalistas se veem como os benfeitores da classe trabalhadora. Com muito mais justificativa, a direção social-democrata poderia imaginar que suas intervenções no processo revolucionário seriam, no final, mais benéficas para a classe trabalhadora do que uma virada radical de todas as condições existentes, acompanhado pela interrupção das funções sociais e produtivas rotineiramente necessárias. O gradualismo parecia a única garantia de que a transformação social poderia prosseguir com o menor custo em miséria humana e, claro, o menor risco para a liderança social-democrata. Em outras palavras, a revolução política garantiu, pelo menos em teoria, acelerar o processo de reforma social, ao reduzir o antagonismo entre trabalho e capital por meio de um Estado e governo mais democráticos.

Nessa visão, o conflito de classe poderia ser continuamente suavizado através de concessões governamentais induzidas, feitas à classe trabalhadora em detrimento da burguesia. Poderia haver uma extensão da democracia política na esfera econômica e “codeterminação” da produção social e do processo de distribuição. Não havia necessidade de uma ditadura de classe, fosse da burguesia ou do proletariado. Poderia haver uma continuação da colaboração de classes praticada durante a guerra, agora para servir a fins pacíficos, beneficiando ao conjunto da sociedade. Imaginou-se uma situação, como aconteceria algumas décadas depois com o “Estado de bem-estar” e a “economia social de mercado”, em que todos os conflitos poderiam ser arbitrados em vez de disputados, e poderia estabelecer-se uma harmonia social que seria vantajosa para todos. A confiança pré-guerra na viabilidade econômica do sistema capitalista ainda estava viva: os retrocessos da guerra poderiam ser superados através do aumento da produção, livre dos entraves de experiências sociais que levariam muito tempo e provocariam perturbações. Um capitalismo em derrocada não era considerado uma base adequada para o socialismo; como antes, este último seria um problema do futuro, quando a economia estivesse uma vez mais em plena prosperidade. Se alguns trabalhadores não o viam dessa forma, sua tolice não deveria ser permitida para privar o resto da sociedade da possibilidade de emergir da carnificina deixada pela guerra e satisfazer suas necessidades mais imediatas em relação ao pão e manteiga.       

Os reformistas não tinham nenhum princípio para “trair”. Eles permaneceram sendo o que sempre foram, mas agora eles estavam obrigados antes de mais nada a salvaguardar o sistema no qual sua querida prática poderia continuar. A revolução tinha que ser reduzida a uma mera reforma, tanto para satisfazer suas convicções mais profundas como, aliás, para garantir sua existência política. A única coisa a se surpreender era o grande número de trabalhadores socialistas para os quais, ao menos ideologicamente, supunha-se que as reformas só eram uma etapa intermediária na marcha para a revolução social. Agora que a oportunidade de realizar sua “missão histórica” estava dada, falharam em aproveitá-la, preferindo em seu lugar o “caminho fácil” da reforma social e a liquidação da revolução. Novamente, esta não é uma verificação da proposição de Kautsky e Lênin de que a classe operária é incapaz de elevar sua consciência de classe para além do mero sindicalismo, pois a classe trabalhadora alemã era uma classe trabalhadora altamente educada de modo socialista, totalmente capaz de conceber uma revolução social para a derrubada do capitalismo. Além disso, não foi a “consciência revolucionária” o que os intelectuais da classe média trouxeram para a classe trabalhadora, mas apenas seu próprio reformismo e oportunismo, que minou qualquer consciência revolucionária que se desenvolvesse dentro da classe trabalhadora. O revisionismo marxista originou-se não na classe trabalhadora, mas em seus dirigentes, para a qual o sindicalismo e o parlamentarismo eram os meios suficientes para o desenvolvimento social progressivo. Eles simplesmente transformaram a prática historicamente restrita do movimento operário em uma teoria do socialismo e, monopolizando sua ideologia, foram capazes de influenciar os trabalhadores na mesma direção. 

Ainda assim, os trabalhadores só provaram estar muito dispostos a compartilhar as convicções reformistas dos dirigentes. Para Lênin, esta era prova suficiente de sua incapacidade congênita para desenvolver uma consciência revolucionária, que dessa forma os condenava a seguir a orientação reformista. A solução era, desta forma, a substituição de líderes reformistas por líderes revolucionários, que não “trairiam” as potencialidades revolucionárias da classe trabalhadora. Era uma questão da “direção certa”, uma luta dos intelectuais pelas mentes dos trabalhadores, uma competição de ideologias pela fidelidade do proletariado. E assim era o caráter do partido que julgava o elemento decisivo no processo revolucionário, embora este partido teria que ganhar a confiança das massas através de seu reconhecimento intuitivo de que representava seus próprios interesses, que as próprias massas não eram capazes de expressar na ação política efetiva.  

Ao mesmo tempo, a diferenciação entre classe e partido se viu como sua identidade, porque o último compensaria a falta de conhecimento político por parte do proletariado menos educado. Ao contrário da teoria marxiana de que são as condições materiais e as relações sociais que contam para o surgimento de uma consciência revolucionária dentro do proletariado, na visão social-democrata (reformista ou revolucionária) essas mesmas condições impedem aos trabalhadores reconhecer seus verdadeiros interesses de classe e encontrar os caminhos e meios para realizá-los. Sem dúvida, eles são capazes de rebelar-se, mas não para tornar sua raiva em ações revolucionárias bem-sucedidas e uma mudança social significativa. Para isso necessitavam da ajuda dos intelectuais da classe média, que fazem sua a causa dos trabalhadores, embora, ou porque, eles não compartilhem aquelas privações da classe trabalhadora que, na visão marxiana, tornariam os trabalhadores revolucionários. Esta noção elitista implica, é claro, que, embora as ideias encontrem sua fonte em condições sociais materiais, elas são, no entanto, o elemento insubstituível e dominante no processo de mudança social. Mas, em tantas ideias, são privilégio desse grupo da sociedade que, com a dada divisão do trabalho, atende às suas exigências ideológicas.

Mas o que é a consciência de classe? Desde que se refira apenas à posição e alguém na sociedade, é imediatamente reconhecível: o burguês sabe que pertence à classe dominante; o trabalhador, que está entre os dominados; e os grupos sociais intermediários não se encontram em nenhuma dessas classes básicas. Não há problema, desde que as diferentes classes sigam a mesma ideologia, a saber, a ideia de que essas relações de classe são relações naturais que sempre prevalecerão como uma característica básica da condição humana. Na realidade, é claro, os interesses materiais das diferentes classes divergem e conduzem a atritos sociais que se chocam com a ideologia comum. A última é cada vez mais reconhecida como a ideologia da classe dominante na defesa das disposições sociais existentes e será rechaçada como uma declaração do destino inevitável da sociedade humana. A ideologia dominante está, deste modo, ligada a sucumbir à extensão da consciência de classe na esfera ideológica. As diferenças de interesses materiais se convertem em diferenças ideológicas e, logo, em teorias políticas baseadas em contradições sociais concretas. As teorias políticas podem ser bastante rudimentares, devido às complexidades dos problemas sociais envolvidos, mas constituem, no entanto, uma mudança da mera consciência de classe a uma compreensão de que as disposições sociais poderiam ser diferentes do que são. Estamos então no caminho da mera consciência de classe a uma consciência de classe revolucionária, que reconhece a ideologia dominante como um golpe e se ocupa das vias e os meios para alterar as condições existentes. Se não fora assim, não surgiria nenhum movimento operário e o desenvolvimento social não seria caracterizado pelas lutas de classes.

No entanto, assim como a presença da ideologia dominante não é suficiente para manter as relações sociais existentes, mas deve, por sua vez, ser apoiada pelas forças materiais do aparato estatal, uma contra-ideologia seguirá sendo assim a menos que possa produzir forças materiais mais fortes do que aquelas refletidas pela ideologia dominante. Se não for esse o caso, a qualidade da contra-ideologia, seja meramente intuitiva ou baseada em considerações científicas, não importa e nem o intelectual e nem o trabalhador podem efetuar uma mudança nas relações sociais existentes. Aos revolucionários pode-se ou não permitir expressar suas ideias, dependendo da mentalidade que domine a classe dominante, mas sob nenhuma condição podem desalojar a classe dominante por meios ideológicos. Nesse sentido, a classe dominante tem toda a vantagem, dado que com os meios de produção e as forças do Estado controla os instrumentos da perpetuação e disseminação de sua própria ideologia. Como este Estado persiste até a efetiva derrubada de um determinado sistema social, as revoluções devem ocorrer com uma preparação ideológica insuficiente. Em suma, a contra-ideologia só pode triunfar somente através de uma revolução que disponha os meios de produção e o poder político nas mãos dos revolucionários. Até lá, a consciência de classe revolucionária sempre será menos efetiva que a ideologia dominante. 

Traduzido por Jaciara Veiga, de acordo com a versão em espanhol disponível em: https://drive.google.com/file/d/1AOi4GH01a63l-R-R3_JMveVQWigpq-xO/view?pli=1