Educação e sociedade – Anton Pannekoek

Educação e sociedade[1][2]

A questão de como a sociedade pode se beneficiar plenamente do talento intelectual, que ainda hoje se perde em virtude da falta de recursos financeiros, é abordada em um memorando submetido pelo Prof. Dr. A. Pannekoek ao departamento de ciências naturais da Academia Real das Artes e Ciências dos Países Baixos. Uma vez que as reflexões aqui desenvolvidas em conexão com a subsequente industrialização são mais urgentes do que nunca, nos demos a liberdade de apresentá-la a nossos leitores.
Em uma introdução, é desenvolvida a tese de que as ciências naturais assumirão um lugar de destaque na industrialização. Além disso, a vida profissional de todos que nela atuam sempre exige mais conhecimento e, por este motivo, também uma melhor instrução[3].

Esta tese tem consequências mais amplas para a educação e para a própria ciência. Não será suficiente que um único inventor genial e excelentes construtores treinados construam máquinas excepcionais ou inventem métodos de trabalho e então entreguem estes a mãos iletradas, treinadas apenas superficialmente. Mesmo aqueles que operam as máquinas ou que utilizam os métodos devem ser capacitados para suas funções. E isso só é possível graças a um conhecimento amplo e rigoroso da ciência[4] em que se baseia o trabalho. O resultado disso é que todos os empregados devem ter mais conhecimento das ciências naturais do que têm hoje.

Isso quer dizer que a educação e a formação devem ser melhoradas, tanto em sua amplitude quanto em seu rigor.

Nos séculos anteriores, até o fim do século XIX, predominava apenas uma pequena minoria dos conhecimentos fundamentais elementares, como a leitura, a escrita e o cálculo. Há 75 anos, o ensino geral obrigatório foi introduzido nos países da Europa Ocidental, incluindo a Inglaterra, a Alemanha, a França e os Países Baixos. Este ensino básico, que chamamos de “lager underwijs” [escola primária], normalmente é concluído entre o sexto e o décimo segundo anos de vida e generalizou a leitura, a escrita e o cálculo, algo que provavelmente todos reconhecem como uma necessidade absoluta. No entanto, é preciso mencionar com isso que esta instrução ficou distante do trabalho e também não fornecia instruções sobre procedimentos do trabalho, o que significa que isso era na verdade um ensino teórico de competências abstratas. Este ensino básico também é pensado como o único ensino para a grande massa do povo.

Desde então essa medida dos conhecimentos gerais se provou cada vez mais insuficiente em virtude do progressivo crescimento da vida técnica e social. Os anos de ensino foram estendidos até os 13 e 14 anos de idade e, além disso, havia as escolas de extensão, as chamadas U.L.O. e M.U.L.O.[5] (correspondentes à Hauptschule[6]), Bürgerschulen[7] e Abendschulen [escolas noturnas], bem como programas de formação avançada para fins especiais, escolas de fábrica nas quais conhecimento especial foi oferecido aos melhores trabalhadores, aqueles que deveriam atender exigências mais elevadas. No entanto, tudo não passa de pequenas medidas, recursos, para atender a uma demanda temporalmente limitada. Porém, são particularmente importantes enquanto sintomas que por isso remetem ao fato de que a instrução rompe as compulsões das velhas normas e formas. São insuficientes, pois o número de participantes é reduzido e por causa da subordinação do ensino teórico. Além disso, são inadequadas porque ocorrem em horas que devem ser descontadas de outro trabalho ou são frequentemente noturnas, quando os estudantes já estão cansados e exaustos por causa do desgastante trabalho assalariado ou de ensino. Ademais, ainda há escolas técnicas, escolas oficiais, escolas agrícolas e assim por diante. Contudo, será necessário mais do que somente as limitadas escolas técnicas que estão sendo conquistadas lá. É necessária uma base científica mais ampla para a grande maioria dos jovens que ingressam na vida profissional, o que significa praticamente o mesmo que para todas as outras pessoas. Uma nova forma superior é necessária para atendar as demandas futuras da sociedade. Também é possível expressar assim o fato de que a educação da nova geração deve alcançar o nível do Ensino Médio. Ou seja: que dos 12 aos 18 anos de idade deve se dedicar sobretudo à educação e à formação. Ou seja, novamente: que a educação no Ensino Médio deve ser a educação escolar geral.

Se aceitarmos esse como o novo princípio, a educação escolar não deve se basear apenas nos costumes e tradições do passado, mas também deve ser orientada para o futuro, será preciso atravessar a linha do passado para o futuro. A antiga corrente de pensamento, a de que um trabalhador não precisava compreender o trabalho para o qual era destacado, perdeu sua validade. Ela tem seu lugar nos primórdios do desenvolvimento industrial, quando o trabalho consistia, na verdade, de operações manuais impensadas e os próprios trabalhadores permaneciam diante dela como uma massa impotente. Desde então, muito mudou graças ao desenvolvimento científico, técnico e social, e continua mudando. Agora, é fato que o trabalho será mais bem feito se o homem que o realiza o compreende melhor. Àqueles que ficam presos a ideias antigas parecerá estranho que um fazendeiro que usa fertilizantes deva saber alguma coisa de química. No entanto, se levarmos em conta o tanto que o fazendeiro tradicional deve conhecer seu ramo, quantas facetas seu trabalho no campo possui, plantar, semear, colher, de modo que todos os filhos de fazendeiros que podem pagar frequentam o colégio agrícola, ficará claro que um conhecimento sólido das ciências agrícolas, de química, biologia e meteorologia fará com que todos aqueles que trabalham na agricultura sejam trabalhadores mais eficazes, pois lhes dará um maior nível de especialização, uma especialização moderna, que agora será cada vez mais necessária nesse ramo de produção. Oferecer esse conhecimento a ele servirá mais à agricultura no futuro do que se, nesses preciosos anos de vida, deixassem suas forças intelectuais de lado. E ainda mais para os trabalhadores da indústria, que têm de lidar com máquinas e métodos de trabalho cada vez mais complicados ou que possuem uma base mais científica. A especialização dará frutos a uma produtividade do trabalho ainda maior.

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Com a generalização do ensino secundário para aqueles que têm de 12 a 18 anos, ele deve se especializar em várias formas e vários sentidos. Em primeiro lugar estão as escolas profissionalizantes intermediárias (escolas técnicas intermediárias, agrícolas, de horticultura, comerciais e marítimas, não limitadas a um pequeno segmento). Nelas, aprendizes devem não só estudar operações e conhecimentos isolados de que precisam para serem bons trabalhadores. Uma boa educação deve transmitir mais do que aquilo que é preciso no momento para também poder satisfazer demandas maiores que serão apresentadas aos trabalhadores. É preciso que se tenha conhecimento e visão suficientes sobre os princípios científicos para que se tenha condições de compreender novos métodos e respaldo para usá-los em novas funções. Além disso, as escolas se tornarão necessárias para os desenvolvimentos gerais e para a preparação de inúmeros empregos não especificados e profissões liberais. Em terceiro lugar – e no mínimo parcialmente ligado a isso – será necessário criar as escolas preparatórias para o ensino superior àqueles que demonstrarem predisposição e aptidão para tal. As mentes com inclinação teórica das escolas técnicas, quando isso ficar evidente, também devem seguir esse caminho. Em quarto lugar, as escolas de formação para aqueles docentes que atuarão nas escolas básicas.

Caso o memorando seja seguido, será possível levantar preocupações contra isso: (1) se a sociedade pode arcar com os custos necessários para tal e (2) com o intelecto necessário para tal. Comecemos com a última, a objeção mais importante, pois dispõe sobre o futuro da sociedade.

Uma questão análoga se cristalizou nessa altura com a introdução há 75 anos da escolarização obrigatória. Na sociedade do começo do século XIX, a ideia da escolarização obrigatória para todos ainda era uma utopia. Não só porque ler, escrever e fazer contas era desnecessário para os trabalhadores diaristas e para os operários, eles também eram burros demais para isso. Bastar ler as histórias daquela época sobre como mentes individuais inteligentes e insistentes souberam adquirir essas habilidades e, desta maneira, também ascender a profissões melhores, se tornando profissionais melhores ou homens de negócios independentes. Ou então para os professores que se esfalfaram com os filhos burros dos fazendeiros, para quem o alfabeto ou 6×7=42 eram difíceis demais. E hoje? À exceção de uma pequena porcentagem de sem talentos, conseguir ler, escrever, fazer contas e muito mais é algo natural para a massa da população. Como?

Em primeiro lugar, porque todos sabem que precisam disso. Nenhum contínuo, nenhum trabalhador na fábrica ou no campo pode mais prescindir disso. Toda sua vida e trabalho estão imbricados nisso. Em segundo lugar, porque foram desenvolvidos métodos pedagógicos com os quais é possível memorizar e transmitir o conhecimento pacientemente e em pequenos passos. Isso é bastante diferente do que ter que fazer isso em algumas horas da noite por luxo ou após um dia de trabalho cansativo ou em um curso intensivo. E em terceiro lugar, mas não menos importante, porque se formou uma atmosfera espiritual que está repleta disso. Assim, antes dos anos letivos muito mais intensamente durante os anos letivos, as crianças já vivem em um meio no qual todo conhecimento é adquirido através do diálogo do dia a dia e na prática constante da leitura, escrita e a partir de outras fontes. Este terceiro motivo também explica por que crianças de origens carentes têm grande dificuldade de acompanhar o ritmo da educação secundária mesmo que possuam o mesmo talento (e só não terão dificuldade se forem muito talentosas), acima de tudo porque não conhecem os variados conceitos e hábitos de pensamento que são tidos como certos e presumidos pelas outras.

Podemos esperar com razão que isso se repita na próxima fase de desenvolvimento, na qual a sociedade apresentará novas demandas. No começo, deve se esperar maiores esforços e resultados insatisfatórios que preparam o nível mais alto e pouco a pouco o realizam.

Talento espiritual não é um fato dado e imutável da natureza que está disponível desde o nascimento. Podemos invocar o grande mestre da neurologia moderna, Ramón y Cajal[8], que explicou que os neurônios, as células nervosas, não só crescem imediatamente após o nascimento, mas também na vida adulta, embora com menor vigor. Novas células nervosas também surgem e novas conexões se formam. E ele diz expressamente que à medida que o cérebro é levado a novas associações e a esforços mentais maiores, este crescimento se fortalece e se intensifica de modo que o esforço e trabalho espiritual aperfeiçoa e capacita o aparato orgânico a atingir seu objetivo.

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Uma segunda dificuldade que surge é a financeira. Como cobrir os custos claramente mais altos?

Se levarmos em conta a realidade, então é preciso reconhecer que em todas as sociedades, quanto mais e mais bem organizada ela for, mais altos serão os custos comuns dos interesses gerais. Uma grande parte da organização está nas mãos do Estado, e já que este possui um grande poder, ele transfere este custo comum aos cidadãos, de maneira mais ou menos justa, e exige a contribuição de todos. A educação também faz parte desses interesses comuns. O que é necessário para o todo também deve ser sustentado pelo todo. Quem tem que cuidar disso, por exemplo o Estado, também deve garantir que haja dinheiro disponível para tal e, portanto, o recolha e o distribua com justiça.

Mas será que agora a sociedade também pode arcar com os custos muito mais elevados?

Somos ricos. Apesar de nossa pobreza momentânea, que têm origem na devastação da guerra, nós somos inacreditavelmente ricos. Ricos por nossa criatividade, ricos por nossa produtividade. Nos anos 1880 já se calculava que se os métodos mais produtivos de então fossem aplicados, a produção seria tão alta que toda família poderia receber uma renda de classe média. E olhe o quanto a produtividade do trabalho aumentou com mais melhorias técnicas!

Tudo isso é apresentado aqui para eliminar a sensação de que nós – deixando de lado as dificuldades atuais – seríamos pobres. Porém, para responder nossa pergunta, essa garantia não é de modo algum necessária. Em primeiro lugar, é preciso notar que até hoje os gastos com educação e ciência não têm pesado para o Estado e a sociedade como um todo e podem ser pagos sem problema. Em segundo lugar, deve se fazer referência ao fato de que a produtividade crescerá mais intensamente com a aplicação dos achados científicos e dos conhecimentos mais amplos. Estes gastos maiores que são necessários para difundir mais eficazmente a ciência e a educação aumentarão em um grau maior os rendimentos do trabalho, isto é, duplicam ou triplicam seu lucro.

Porém, não podemos avaliar esta questão apenas por esse aspecto. Sempre que nos vimos diante da escolha de deixar a situação como está, com educação restrita e menos despesa, ou obter uma renda maior com uma educação melhor e mais gastos, mesmo que a renda fosse totalmente consumida pelos gastos com essa educação melhor, a decisão não deveria ser difícil. Em um caso o trabalho seria realizado executado por mãos mais ignorantes, no outro, teríamos companheiros humanos que não só efetuariam seu trabalho com maior inteligência, mas que também entenderiam em maior grau todo o trabalho, a ciência, o mundo, a natureza. Nós não podemos perder de vista nem menosprezar o benefício espiritual, o aumento do nível de toda a população por meio do conhecimento e do entendimento desses futuros desenvolvimentos.


[1] Anton Pannekoek, Onderwijs en Maatschappij in: De Groene Amsterdammer. Onafhankelijk weekblad voor Nederland (Amsterdam), 43/22. Oktober 1949 (73ste Jaargang), p. 9-10. Ver também o artigo “Erweiterung des Bildungssystems” neste volume, p. 680-682 [“Ampliação do sistema educacional”, traduzido e publicado aqui].

[2] A tradução deste artigo foi realizada a partir da tradução para o alemão de Walter Delabar, “Bildung und Gesellschaft”, publicada em Anton Pannekoek, Arbeiterräte. Texte zur Soziale Revolution,Fernwald: Germinal Verlag, 2008, p. 660-664. [n. t.]

[3] Introdução à tradução alemã. [n. t.]

[4] O termo alemão Wissenschaft possui um sentido mais amplo do que se entende comumente por ciência. Ele abrange todo campo do conhecimento, das chamadas ciências exatas, às naturais e as humanas, mas também estudos de arte e religião, além de não excluir também investigações que não se baseiam no método científico e não pressupõe qualquer tipo de investigação empírica. [n. t.]

[5] Uitgebreid Lager Onderwijs e Meer Uitgebreid Lager Onderwijs, respectivamente; em português, literalmente, “ensino básico (mais) amplo”. Era um tipo de escola na Holanda semelhante ao Ensino Fundamental II brasileiro, em que  alunos estudavam holandês, francês, inglês, alemão, álgebra, geometria, geografia, história, biologia, história natural (física), cálculo comercial, contabilidade e educação física (Wikipédia). [n. t.]

[6] Provável acréscimo da tradução alemã. A Hauptschule é um dos 4 tipos de escola secundária na Alemanha, frequentada por alunos após concluírem o equivalente ao Ensino Fundamental I. [n. t.]

[7] As Bürgerschulen eram escolas municipais que não preparavam os alunos para estudos universitários, e sim para profissões práticas nas áreas comercial e artesanal. [n. t.]

[8] Santiago Ramón y Cajal, neurocientista, patologista e histologista espanhol, vencedor do Nobel de medicina em 1906. [n. t.]

Traduzido por Thiago Papageorgiou