In: Dez Anos por detrás da cortina de ferro: No país da mentira desconcertante. (Extratos da terceira parte respeitante às discussões no interior das prisões soviéticas acerca da natureza de classe do regime stalinista), Paris, Les iles d’or, 1938; reeditado em dois volumes em 1950.
Do prefácio à edição de 1950
(…)
Os meus dois volumes sobre a Rússia são, em grande parte, consagrados à descrição da vida dos perseguidos e deportados soviéticos, cujo destino partilhei durante cinco anos e meio. Além dos “trabalhos forçados”, que eram milhões enchendo os campos e os lugares de exílio da Sibéria, do Grande Norte Soviético, em condições que tanto evocavam os campos nazis como os trabalhos dos Faraós, existia ainda no meu tempo um pequeno grupo de perseguidos ditos “políticos”. Compunha-se de aderentes de diferentes grupos e partidos socialistas, de comunistas não conformistas de diferentes tendências, e de anarquistas. Eles usufruíam de um estatuto reconhecido de “detidos políticos”: era o último resíduo, na imensa Rússia, da democracia política da Revolução de 1917. Nas suas prisões – os isoladores políticos – e nas suas relações recíprocas no exílio, serviram-se da liberdade de expressão e de estudos políticos e sociais que faziam do seu pequeno mundo o último reduto de liberdade no oceano de escravatura. Um paradoxo soviético cujo fim trágico se aproximava.
Eram alguns milhares de homens; em momentos excepcionais, algumas dezenas de milhares. Fui um dentre eles.
Durante as purgas que acompanharam os Processos de Moscou, este último reduto da liberdade foi destruído, e com ele os seus habitantes.
Desde então apenas existem na Rússia “trabalhos forçados” de direito comum; é a “reeducação pelo trabalho universal”…
Muito do meu conhecimento da Rússia, dos seus problemas, velhos e novos, devo-o às condições especiais, privilegiadas, da vida dos “detidos políticos”. Por outro lado, o tratamento especial destes pela GPU, a combinação dos meios de pressão, de privilégios, da corrupção, da “usura” dos espíritos à maneira dos duches escoceses, tinham uma amplitude e um refinamento dos quais no Ocidente não se faz uma pequena ideia. No livro, especialmente no segundo volume, traço um quadro bastante amplo deste método de insinuação e de intimidação combinados; isto poderá, em parte, facilitar ao leitor a compreensão do outro extremo da vida soviética: a atitude submissa dos acusados nos processos, a sua “preparação” psico-física pelo GPU.
“Expulso” da URSS por Vychinski – após uma luta de vida e de morte durante dois anos e meio – alguns meses antes do Processo de Moscou, vi assim a minha vida salva.
Infelizmente, só a minha. Os milhares, dezenas de milhares de “políticos”, camaradas meus, foram fuzilados. Que o leitor me permita render-lhes aqui a minha derradeira homenagem.
Paris, Novembro de 1949
A. Ciliga
Do Prólogo à 1ª edição
A situação complica-se ainda pelo fato de na Rússia atual, a exploração capitalista, a opressão política e mesmo a escravatura se aliarem a um progresso econômico evidente. Seria possível encontrar na história outros exemplos de uma tal conjunção. Ascensão de camadas sociais na sua totalidade, verdadeiras proezas na conquista do mundo material, elevação do nível de civilização – tudo isso, na verdade. Este processo rápido e mesmo fulminante, junto à exploração, à opressão, à mentira sob os disfarces de “liquidação das classes” e de “abolição da exploração do homem pelo homem”, faz com que a URSS apareça aos olhos de uma Europa cansada e desesperada como um Messias longínquo, nimbado de uma vaga auréola. O mito da Rússia soviética é o mais trágico mal-entendido do nosso tempo.
(…)
Paris, Julho de 1938.
A. C.
3ª Parte: À Margem da Vida Oficial
I. Na Escola das Prisões Soviéticas[1]
Como é possível que a mais audaz, a mais profunda das revoluções tenha degenerado na mais completa das escravaturas? Porque é que a Revolução Russa representa na sua primeira etapa o mais moderno dos progressos sociais para terminar a etapa seguinte na mentira social, na exploração e opressão mais aperfeiçoadas? O que é que poderá explicar uma contradição tão flagrante?
A questão é tanto mais difícil de resolver, quanto nenhuma guerra civil, nenhuma revolução notável, separou estas duas etapas. Elas estão, pelo contrário, ligadas por uma revolução visível e à primeira vista simples. A Revolução não deixou nunca de ser vitoriosa, de permanecer idêntica a ela própria! Os homens e as organizações que se encontravam à cabeça da revolução durante a primeira fase, a sua libertadora, são na maioria os mesmos que, durante a segunda fase, defendem e propagam o regime de escravatura e de opressão. Vistos do exterior não mudaram; mas as realidades da vida ensinam que a reviravolta foi incompleta; que as relações sociais se desenvolvem num sentido diametralmente oposto àquele que a Revolução de Outubro proclamava. E não há como as prisões soviéticas para no-lo mostrar tão claramente.
As respostas simplistas que afirmam que nada se modificou, que as grandes tendências libertadoras de Outubro continuam a exercer-se na Rússia, ou que essa Revolução de Outubro nunca foi diferente da realidade soviética atual, estas respostas apenas podem contentar os cegos ou as pessoas de ideias preconcebidas.
Não se dá uma resposta, nem se pode fazer uma “síntese dialética”, pretendendo que o caráter explorador do regime soviético não será demonstrado enquanto revestir certas formas socialistas herdadas da Revolução de Outubro. Não é tão pouco uma resposta limitar-se a constatar que as camadas inferiores da sociedade soviética (como acontece em qualquer sociedade) aspiram à emancipação.
O enigma da Revolução Russa, que a humanidade, que o movimento operário internacional devem resolver, é o seguinte: como foi possível abolir de fato tudo o que constitui a Revolução de Outubro, mantendo as formas exteriores: ressuscitar a exploração dos operários e dos camponeses sem restabelecer os capitalistas privados, nem os proprietários fundiários; iniciar uma revolução para abolir a exploração do homem pelo homem e terminá-la instaurando um tipo novo de exploração?
Mas se uma estadia nas prisões soviéticas põe este problema de forma particularmente insistente, deve dizer-se que ela fornece igualmente os elementos para uma resposta.
Todas as camadas sociais da Rússia estão representadas na prisão. Nelas pode enfim conhecer-se o que se passa realmente no país e o que as pessoas pensam. É bem simples: a prisão é o único lugar na Rússia soviética onde as pessoas se exprimem de maneira mais ou menos sincera e aberta. Quanto ao perigo de testemunhos demasiados subjetivos, ele anula-se pela quantidade e diversidade social dos prisioneiros.
A atitude das massas trabalhadoras e da totalidade da população reflete-se finalmente nas opiniões professadas pelos grupos políticos. Estes são todos ilegais e proibidos na Rússia; assim encontram-se todos na prisão, à exceção de um só grupo que representa as opiniões da elite burocrática reinante. De modo que não é possível conhecer em mais nenhum sítio a não ser na prisão o desenvolvimento da opinião pública russa deste Outubro de 1917, e saber quais os ensinamentos que a própria população tirou da experiência da Revolução russa. Ora o que haverá de mais importante que esses ensinamentos para a teoria e ação sociais na nossa época?
Como separar as aquisições positivas da Revolução dos seus fenômenos mais ameaçadores, como garantir as revoluções sociais contra os perigos da degenerescência, tais são os problemas sobre que a opinião pública russa se interroga apaixonadamente, opinião legal, cantonada nas prisões.
Ela adquire cada dia maior importância para o movimento operário internacional. Nenhuma nação pode resolver sozinha o problema da emancipação social; é por isso que a importância mundial da experiência russa permanece inteira apesar do seu fracasso final.
E também por essa razão sempre me pareceu que os ensinamentos da prisão soviética valiam todos os sacrifícios…
(pp. 93-96)
V – A vida política na prisão[2]
O que mais me interessava no isolador era a sua vida política e as suas ideias. Na URSS, enquanto se está “em liberdade” só se pode seguir e discutir a vida política do país em pequenos grupos. É uma tarefa árdua, onde se põem mais problemas do que se resolvem, sobretudo se se é um estrangeiro que veio à Rússia soviética dez anos após a Revolução. Mas encontrar-se entre duzentos detidos representando todas as tendências políticas da imensa Rússia no seu desenvolvimento ininterrupto era um privilégio precioso que me permitiu adquirir um conhecimento da vida política russa sob todos os seus aspectos.
Logo que cheguei ao isolador, em Novembro de 1930, a era das “capitulações”, que desmoralizavam e desorganizavam a oposição russa havia mais de 18 meses, chegava ao fim. Mas sentiam-se ainda os efeitos da tempestade que havia dizimado 4/5 da oposição. “Derrotista” ou “semiderrotista” era ainda a pior ofensa que se podia lançar ao adversário no decurso de uma discussão. Esses efeitos começavam pouco a pouco a desaparecer, não se verificaram novas capitulações e mesmo, seis meses mais tarde, antigos derrotistas que não se haviam mostrado partidários bastante firmes da linha geral, começaram a ser reenviados para o isolador.
A imensa maioria dos detidos comunistas eram trotskistas: cento e vinte num total de cento e quarenta. Havia também um zinovievista que não tinha capitulado, dezesseis ou dezessete membros do grupo “centralismo democrático” (extrema-esquerda) e dois ou três membros do “grupo operário” de Miasnikov. Entre os não comunistas havia principalmente três grupos, com uma dúzia de membros cada: os social-democratas mencheviques russos, os social-democratas georgianos e os anarquistas. Havia ainda cinco socialistas revolucionários de direita; alguns socialistas armênios do grupo “dachnakt-soutioun” e um marximalista. Havia enfim alguns sionistas.
Tal era a divisão em partidos tradicionais, mas na realidade cada um destes partidos compreendia subgrupos de diversas tonalidades ou mesmo frações devidas a cisões profundas. O leitor admirar-se-á talvez: vinte grupos e subgrupos para duzentos detidos! Mas é preciso não esquecer que não se tratava de presos ordinários, mas sim de representantes de todas as tendências de esquerda de uma sociedade imensa, de um verdadeiro parlamento ilegal da Rússia! Os problemas escaldantes postos pela revolução e em particular pelo plano quinquenal na sua presente etapa produziam as mais profundas agitações nesse meio e criavam um estado de crise ideológica favorável a uma extrema parcelização das tendências políticas. Só mais tarde, quando os resultados sociais e econômicos do plano quinquenal foram dados a conhecer, é que um novo reagrupamento político pôde verificar-se no isolador.
Cinco anos de prisão e degredo ligaram-me intimamente à oposição, seja comunista, socialista ou anarquista, e gostaria que este livro servisse não só de informação, mas que despertasse igualmente a consciência dos democratas e do movimento operário do Ocidente em favor das vítimas. Mas não é menos meu dever fornecer um quadro sincero e objetivo desta oposição soviética, no que ela tem de bom, assim como no que ela tem de mau.
Os agrupamentos políticos da prisão não representavam apenas tendências ideológicas, mas constituíam também verdadeiras organizações, com os seus comitês, os seus jornais manuscritos, com os seus chefes reconhecidos – que se encontravam quer na prisão ou deportados, quer no estrangeiro. O sistema de repressão usado, que comportava frequentes transferências de uma prisão para outra, de um local de deportação para outro, assegurava melhor que qualquer correspondência clandestina o contato entre os membros do mesmo agrupamento.
O que me interessava antes de mais era a oposição trotskista de que então fazia parte e que ainda hoje é o grupo de oposição mais influente na Rússia. Ora o isolador de Verkhné-Uralsk abrigava quase todos os membros mais ativos da fração trotskista.
A organização dos detidos trotskistas denominava-se “coletivo dos bolcheviques-leninistas de Verkhné-Uralsk”. Dividia-se em esquerda, centro e direita. Esta divisão em três frações perdurou durante os três anos da minha estadia, se bem que a composição das frações e mesmo a sua ideologia tenha sofrido certas flutuações.
À minha chegada a Verkhné-Uralsk, encontrei três programas e dois jornais trotskistas:
1º. “O programa dos três”, estabelecido por três professores vermelhos: E. Solntsev, G. Lakovine, G. Stopalov. Refletia as opiniões da fração de direita, a mais forte fração trotskista na altura;
2º. “O programa dos dois”, redigido pelo genro de Trotsky, Man-Nivelson e por Aron Papermeister, era o credo do pequeno grupo do centro;
3º. “As teses dos bolcheviques militantes”, provinham da fração de esquerda (Puchas, Kamenetski, Kvatchadzé, Bielenki).
Tratava-se de documentos de extensão considerável que compreendiam 5 a 8 seções diferentes (situação internacional, indústria, agricultura, as classes na URSS, o partido, a questão operária, as tarefas da oposição, etc.).
O programa da direita tratava de uma forma particularmente elaborada da economia, o da esquerda continha bons capítulos sobre o partido e sobre a questão operária.
A direita e o centro editavam conjuntamente o Pravda na prisão (“Verdade na prisão”), a esquerda o Bolchevista militante. Estes jornais saíam uma vez por mês ou de dois em dois meses. Cada número compreendia dez a vinte artigos sob a forma de cadernos agrupados. O “número”, isto é, o pacote contendo os dez ou vinte cadernos, ia de sala em sala e os detidos liam os cadernos à vez. Os jornais saíam em três exemplares, à razão de um exemplar para cada ala da prisão.
Em 1930 a discussão entre os trotskistas respeitava sobretudo à atitude a tomar em relação aos “dirigentes do partido”, isto é, a Stálin, assim como face à sua nova “política de esquerda”.
A fração de direita era de opinião que o plano quinquenal apesar dos seus desvios de direita ou de extrema-esquerda, respondia aos desideratos essenciais da oposição; era preciso pois apoiar a política oficial, não deixando de criticar-lhe os métodos.
A fração dos “bolcheviques militantes” tomava ruidosamente uma posição diametralmente oposta à das direitas. A sua ideia essencial era que a reforma deveria ser feita “da base”, que era preciso contar com uma cisão no partido, que era preciso apoiar-se na classe operária. A hostilidade que esta fração manifestava contra Stálin contrastava com a atitude dos professores vermelhos da direita e valia-lhes as simpatias dos operários e da juventude. O ponto fraco do seu programa era o caráter sumário do juízo que emitia sobre o plano quinquenal. Apegava-se a uma expressão de Trotsky que tinha um simples valor polêmico: “o plano quinquenal não passa de um edifício de números”, e declarava que toda a industrialização staliniana não passava de um bluff. Quanto à política internacional, a fração de esquerda negava não somente a existência de uma conjuntura favorável à revolução, mas mesmo – para denegrir Stálin – a existência da crise econômica mundial.
Comecei a minha vida política da prisão escrevendo dois artigos: “Algumas premissas teóricas da luta da oposição” e “As teses dos bolcheviques militantes”. Desenvolvia neles as seguintes ideias: chegou o momento de dar um fundamento teórico mais sério à luta contra Stálin; na crítica do plano quinquenal é preciso pôr o acento tônico sobre o seu caráter antissocialista e anti-proletário em vez de falar de “bluff” e criticar os detalhes.
Nós, membros da oposição – continuava eu – tínhamos reconhecido na clique staliniana a clique de Robespierre e tínhamos previsto para Stálin o destino do seu ilustre predecessor francês. Mas tínhamo-nos enganado, pois tínhamo-nos esquecido que a burocracia “comunista” possuía uma arma de que Robespierre não dispunha: toda a economia do país. Senhora incontrolada dos meios de produção essenciais, a burocracia comunista tornou-se pouco a pouco o núcleo de uma nova classe dirigente, cujos interesses são tão opostos aos do proletariado como eram os da burguesia. É preciso organizar na Rússia a luta econômica do proletariado (reivindicações, greves) exatamente como se faz nos países de capitalismo privado. É preciso mesmo aliar-se aos socialistas e anarquistas que se poderão encontrar nas fábricas. É preciso lançar a palavra de ordem de um novo partido revolucionário operário. Chegou o momento de abandonar as tentativas de reforma no interior do partido por uma luta de classes revolucionária. Esta luta exige, bem entendido, um fundamento teórico. “Sem teoria revolucionária, não existe movimento revolucionário”, dizia eu em epígrafe no meu primeiro artigo.
Havia na minha sala um trotskista de Karkov, chamado Densov, bom economista, antigo chefe da seção de conjuntura no “Gosplan” (Plano de Estado) Ucraniano. Ele citava a este propósito algumas afirmações de Lênin, datando de 1918-1922, que Trotsky tinha cometido o erro de negligenciar. Densov tinha chegado a Verkhné-Uralsk uma semana antes de mim. Tomou posição na ala esquerda dos trotskistas, sem todavia entrar no grupo dos “bolcheviques militantes”. Foi ele que me pediu para escrever os artigos que acabo de referir, “a fim de reforçar a posição da ala esquerda”.
O niilismo da oposição, a sua mesquinhez em relação ao plano quinquenal, inquietavam Densov. “A oposição arriscava-se a encontrar-se a seco, dizia ele, por não ter compreendido a tempo que a crítica a fazer ao imenso esforço staliniano é a de antissocialismo. Hoje Solntsev e Puchas não veem no plano quinquenal senão desproporções e bluff, mas que dirão eles daqui dois ou três anos, quando a produção tiver melhorado, quando o bluff se tornar uma realidade econômica inegável? Rakowski escrevia na Primavera que não restaria nada, no Outono, da coletivização prossegue e acentua-se – que dirá pois Rakowski? Certamente, há gente que passa o tempo a contradizer-se; mas para os outros, pessoas tão sérias, que terrível crise interior a passar, se não conseguirem criar a tempo uma imagem coerente dos acontecimentos!”.
À luta das ideias no interior do “Coletivo” trotskista veio acrescentar-se um conflito de organização que deveria durante alguns meses relegar a ideologia para o segundo plano. Este conflito é característico da psicologia e dos costumes da oposição russa, por isso referi-lo-ei brevemente.
A direita e o centro apresentaram aos “bolcheviques militantes” o seguinte ultimatum: ou dissolver-se e suspender a publicação do seu jornal, ou ver-se excluídas da organização trotskista. Com efeito a maioria achava que a fração trotskista não deveria comportar nenhum subgrupo.
Este princípio de uma “fração monolítica” não era no fundo diferente daquele em que Stálin se inspirava para o conjunto do partido.
Foi assim que se formaram no isolador, por volta do Verão de 1931, duas organizações trotskistas distintas: o “coletivo dos bolcheviques-leninistas” majoritários e o “coletivo dos bolcheviques-leninistas” de esquerda. No momento da cisão, os “majoritários” eram entre 75 e 78, as “esquerdas” uns 51 ou 52. Alguns camaradas ficaram fora das duas organizações e formaram um grupo que pregava a reconciliação entre trotskistas. De resto, as duas organizações sofreram depois importantes modificações quanto aos seus efetivos e à sua ideologia. As “esquerdas” passavam a editar um novo jornal, o Bolchevique-leninista, redigido por N. P. Gorlov, V. Densov, M. Kamenetski, P. Puchas e A. Ciliga.
Enquanto nos disputávamos, o GPU trabalhava. Este favoreceu primeiro a cisão, e depois esforçou-se por aprofundá-la. Os agentes provocadores do GPU que se encontravam entre os detidos, agiam por vezes com um descaramento estonteante.
(pp. 151-157)
VIII – E agora?
Enquanto estávamos na prisão a discutir entre nós e a respeito das lutas contra o GPU, os acontecimentos no país tinham-se precipitado. O plano quinquenal atingia, em 1931 e em 1932, o seu apogeu.
Para onde vai a Rússia? Irá ela explodir como uma caldeira ou vencerá as duas dificuldades e verá expandir-se uma ordem nova? Que fazer? Defender ou combater o regime existente? Em nome de quê, com que programa? Estas eram as questões que se punham ao país inteiro e à oposição.
Na nossa prisão os trotskistas, após a cisão, encaravam o problema de diferentes maneiras. A “maioria” – isto é, a direita e o centro – só se interessava pelos aspectos políticos do plano quinquenal. Os professores vermelhos, em numerosos artigos, demonstravam que seria melhor criar tal indústria do que outra, que teria valido mais começar por uma fábrica do que por outra. Analisavam profundamente os números dos planos anuais e argumentavam sobre as percentagens. Estas reflexões não eram desprovidas de seriedade, nem de competência, nem de força dialética, mas nem por isso eram menos pedantes e estéreis. O país estava em guerra: guerra social e econômica. Para quê todos estes horários onde tudo estava previsto minuto por minuto? Era claro, no entanto, que a Rússia, indigente e atrasada, não podia fazer a sua revolução econômica sem edificar, em primeiro lugar, através de um esforço sobre-humano, alguns bastiões essenciais, tal não obstando a que alinhasse mais tarde o conjunto da sua economia por essas posições avançadas! Era por isso que todas as lamentações dos professores de ciências econômicas a respeito das incongruências aflitivas do Plano Quinquenal não me provocavam qualquer emoção.
No Verão de 1932, quando a fome se abateu sobre o país e o ritmo da industrialização ultrapassou visivelmente o limite das possibilidades, os teóricos da “maioria” sentiram nascer no seu espírito uma nova missão: estabelecer o plano de retirada. Eles diziam lá com eles: “Já que no passado o Partido, na pessoa de Stálin, utilizou o plano de industrialização da oposição, também não poderá passar sem a oposição, agora que é preciso estabelecer um plano de retirada”. Como se a política staliniana não fosse em nada determinada pelas realidades sociais do regime, nem pelas necessidades do seu desenvolvimento, mas unicamente pela “miopia e estupidez de Stálin”…
Em suma, a “maioria” trotskista não tinha nenhum programa político de grande envergadura a opor ao programa oficial de Stálin. Mas há mais: não se tentava criticar seriamente o caráter social do Plano Quinquenal e de todo o regime stalinista. Se se criticava a “política operária” de Stálin, era a respeito do volume de sacrifícios que exigia, não a respeito dos princípios sociais que violava. Se se atacavam as “deformações” e o “burocratismo” de Stálin nos seus detalhes, não se deixava por isso de calcular a percentagem dos sucessos e fracassos da industrialização staliniana.
Todas estas preocupações da “maioria” trotskista me deixavam indiferente. Esta gente não me parecia muito diferente dos burocratas de Stálin. Eram um pouco mais corretos e humanos, e era tudo. Todas as minhas esperanças iam para a “minoria” que, em 1931 e 1932, discutia apaixonadamente as questões de princípio postas pelo Plano quinquenal e pelo regime soviético na totalidade.
A primeira questão discutida foi a do caráter do Estado soviético. Trata-se de um Estado operário socialista? Senão, que classe representa ele? A discussão durou mais de seis meses. Tínhamos ainda uma intenção reservada que nos desaconselhava a precipitação: esperávamos que entretanto Trotsky passaria o Rubicão e negaria o caráter operário do Estado staliniano. Muitos de nós estávamos convencidos que não havia nem sombra de “ditadura do proletariado” na URSS, mas pensávamos que seria inoportuno proclamá-lo publicamente antes que Trotsky se pronunciasse. Quanto a mim, esperando sempre como os outros um gesto político decisivo da parte de Trotsky, gesto que a sua precedente declaração parecia tornar logicamente inevitável: “terminaram os preparativos em vista da instauração do bonapartismo no partido”, considerava que mais valia pronunciar-se sem esperar por Trotsky. Não seria para ele mais fácil formular a conclusão esperada, se visse que ela já estava espontaneamente formulada no espírito dos próprios militantes? De resto, seria necessário esperar sempre pela palavra do “chefe”, como vulgares stalinianos?
No fim de contas três resoluções diferentes foram submetidas ao voto. A primeira reconhecia, apesar dos enormes “desvios burocráticos”, o caráter operário do Estado, pois subsistiam nele “vestígios da ditadura do proletariado”, tais como a nacionalização da propriedade privada e a repressão contra a burguesia.
Os “negadores” da ditadura do proletariado na URSS apresentaram duas resoluções distintas. Uns achavam que já não havia qualquer ditadura proletária na URSS, mas que “os fundamentos econômicos da Revolução de Outubro subsistiam”. Eles concluíam que era preciso fazer “uma revolução política” a par de “uma reforma profunda da economia”.
Os outros “negadores” – dos quais eu fazia parte – pensavam que não só a ordem política, mas também a ordem social e econômica eram estranhas e hostis ao proletariado. Assim encarávamos uma revolução não só política, mas também social, que abriria a via do desenvolvimento do socialismo. Para nós a burocracia era uma verdadeira classe, e uma classe hostil ao proletariado.
Cada uma das três resoluções obteve um número igual de votos, cerca de quinze. Saiu-se do impasse declarando que a questão do caráter do Estado soviético continuava em aberto.
A palavra de ordem de “retorno à NEP” foi igualmente vivamente discutida e finalmente rejeitada por uma maioria esmagadora.
A atitude dos detidos em relação ao que se passava no país e em relação à política staliniana pode definir-se como segue, embora esquematizando um pouco: a maior parte dos detidos políticos, qualquer que fosse a sua tendência, considerava que a política do governo não passava de uma aventura absurda, que ela violava as leis da evolução, que, numa palavra, traía a incapacidade dos dirigentes. Esperava-se a todo o momento uma catástrofe seguida de uma mudança completa no pessoal dirigente e esta expectativa abafava todo o desejo de procurar o sentido social dos acontecimentos. Mas também havia detidos em menor número, e mais isolados, que tinham a intuição de “um sistema nesta loucura” do governo. Pensavam que a sua verdadeira tarefa consistia precisamente em analisar e evidenciar o que havia de profundamente coerente no caos aparente da política dos burocratas. Não era certamente matéria de análise que lhes faltava!
Durante o ano de 1930 e no início de 1931, o governo, para realizar o seu plano de industrialização e de produção, serviu-se sobretudo de métodos de coerção administrativa em relação aos trabalhadores: “emulação” obrigatória nas fábricas, prodígios forjados de “ondarniks” (operários de elite), abolição do direito do operário deixar a fábrica onde trabalhava, “direito” atribuído às mulheres e aos adolescentes para trabalhar de noite e nas minas, etc. Estas medidas suscitavam no estrangeiro uma campanha contra o “trabalho forçado”, mas por outro lado a fraseologia oficial levava os ocidentais a crer que o governo soviético estava a edificar, mesmo por meios bárbaros, qualquer coisa que se assemelhava ao socialismo.
As reformas que se sucederam a partir de Junho de 1932 revelaram a verdadeira imagem do regime. Stálin começou por lançar o anátema a uma das aspirações mais gratas ao coração dos operários, uma das últimas conquistas de Outubro que ainda não lhes tinha sido arrancada: o princípio da igualdade econômica no interior do proletariado. Por ordem do ditador, um novo evangelho foi instaurado: a hierarquia operária, “a reforma do sistema dos salários” com o fim de criar “maiores diferenças de remuneração entre os extremos”. Este princípio essencialmente capitalista foi declarado conforme ao socialismo e ao comunismo. O princípio que substituía foi vítima de uma guerra sem tréguas e estigmatizado sob o nome de “nivelacionismo” pequeno-burguês!…
Já não era mais o coletivismo, nem a solidariedade, fosse ela forçada, que deveria estimular o operário a produzir, mas o velho princípio capitalista do egoísmo e do lucro. Introduzia-se, por outro lado, um sistema de trabalho à peça – a “empreitada com prêmio regressivo” – abolida há muito tempo no Ocidente graças aos esforços do movimento operário. Tendo assim acrescentado à coerção administrativa um novo “sweating system”, os dirigentes soviéticos proclamaram que a intensidade do trabalho já não tem limites: o limite fisiológico que existe na produção capitalista “encontra-se abolido entre nós, no país do socialismo, graças ao entusiasmo dos operários”. O “ritmo de galera” do trabalho em cadeia nos países capitalistas, deveria ser a partir de então… acelerado.
Se havia preocupação em criar “maiores diferenças de remuneração” entre os operários segundo a qualificação, que dizer do abismo que se abria entre os operários e os funcionários, comunistas ou não comunistas? A “vida feliz” de que as camadas superiores gozavam em detrimento das massas miseráveis não deixa de espantar o turista estrangeiro na URSS, desde que este se preocupa em olhar à sua volta. Esta “vida feliz” foi legalizada pela primeira vez após o discurso de Stálin em Junho de 1931. A acrescentar ainda aos privilégios de abastecimento e de alojamentos criou-se uma nova rede de “distribuição” fechada e de restaurantes reservados à alta administração comunista ou sem partido. Enfim, criaram-se para seu uso exclusivo “armazéns de Estado” onde podia comprar-se absolutamente tudo a preços inabordáveis para o operário. O espólio do “comunismo de guerra”, com que a burocracia gostava de se cobrir no início do Plano Quinquenal, foi lançado ao caixote do lixo. Tudo isto tresandava a egoísmo de classe, e as descrições dos detidos chegados recentemente à prisão confirmavam a impressão de que esta nova política correspondia a uma tendência profunda e duradoura. O povo não se enganava, definindo a situação com este comentário amargo: “Aqui não há classes, só há categorias”. Com efeito, toda a população da Rússia estava repartida do ponto de vista do nível de vida em cinco ou seis categorias, que fixavam a cada um o seu lugar na sociedade. Mas na época de que falamos a etiqueta de “ditadura do proletariado” ainda não tinha sido substituída pela de “povo soviético”; os operários mais favorecidos pertenciam à categoria no. 1; assim a burocracia também designava modestamente os seus privilégios de “categoria número zero”.
A mudança era no entanto de tal modo manifesta e brutal que as pessoas em liberdade não podiam enganar-se. Um diretor de fábrica de Moscou que chegou em 1932 à nossa prisão definia assim a situação do pessoal comunista: “Durante o dia fazemos propaganda junto dos operários a favor da linha geral e explicamos que o socialismo está para triunfar na Rússia; mas à noite, entre colegas, tomando o chá, perguntamo-nos se representamos o proletariado ou uma nova classe que o explora…”.
A tendência a consolidar o novo estado de coisas nascido com o plano quinquenal manifesta-se também por um desejo de conciliar os diversos elementos que constituíam a elite social.
Os “especialistas sem partido”, ainda na véspera perseguidos sem piedade, foram então proclamados aliados da burocracia comunista. “Existem sintomas evidentes de uma mudança de atitude nos meios intelectuais”, declarava Stálin. “Estes intelectuais, que outrora simpatizavam com os sabotadores, apoiam agora o poder soviético… Há mais: uma parte dos sabotadores da véspera começa a colaborar com a classe operária”.
O “novo estilo” das cidades soviéticas, a reabertura dos armazéns elegantes, de restaurantes e de “boîtes”, a vida larga e fácil dos dirigentes, tudo isso lembrava a “NEP”. Mas não havia iniciativa privada, nem comerciantes, nem “nepmen”… A NEP sem nepmen, é o símbolo da nova Rússia, que substitui o comércio privado pelo comércio de Estado, o comerciante pelo burocrata, a NEP privada pela NEP do Estado!
As cartas do degredo de Rakowski eram de uma grande utilidade para compreender esta evolução.
Rakowski escreveu a partir de 1928 vários estudos sobre a estrutura e o funcionamento da burocracia soviética, dos quais o principal, “As leis da acumulação socialista durante o período ‘centrista’ da ditadura do proletariado”, permaneceu ignorado no estrangeiro. Ele punha em evidência o caráter parasitário e explorador da burocracia “que se transsformou numa ordem social particular, em detrimento dos operários e camponeses”. Daí a concluir que esta burocracia não passava de uma nova classe dominante, não havia senão mais um passo a dar; mas Rakowski não teve coragem de o dar. No momento decisivo, escolheu “salvar o que ainda podia ser salvo” e “regressar à NEP”. A sua política, em vez de se inspirar nos novos interesses do proletariado, deixou-se dominar pelo medo de uma restauração do capitalismo privado. Rakowski – no estudo que acabamos de citar – soube revelar um dos traços marcantes da burocracia soviética: culto sacerdotal de duas verdades; uma, a verdade “esotérica”, segundo a expressão de Rakowski, destinada unicamente aos iniciados; a outra, a pseudo-verdade exotérica, para as necessidades da multidão. Ele gostava de comparar estes processos com os da Igreja Católica, dos Jesuítas e outras ordens religiosas. A burocracia “apenas geria” os meios de produção que de direito pertenciam ao proletariado, como a Igreja administrava em seu proveito o patrimonium pauperum.
Na prisão, a industrialização estava longe de ter provocado discussões tão violentas como a “coletivização total”. Com efeito, se a oposição trotskista tinha adotado uma atitude definida em relação à industrialização, não se podia dizer o mesmo a respeito da questão camponesa. No domínio industrial, apenas tinha seguido a via traçada pela oposição trotskista a partir de 1923.
A atitude da oposição trotskista em relação à “coletivização total” era muito mais complexa. Não foi Trotsky – apesar da opinião corrente – mas Zinoviev quem preconizou no fim da NEP um reforço da política anticamponesa. O programa do bloco Trotsky-Zinoviev, em 1926-1927, tinha sido, no seu aspecto agrário, definido pelos zinovievistas. Quando em 1923 Trotsky propôs pela primeira vez o plano de industrialização, previu ao mesmo tempo que o desenvolvimento agrário seria do tipo “farming”. (No seu célebre discurso de Dniepropetrovsk).
Stálin começou por executar o programa da oposição trotskista-zinovievista; depois, no auge da ofensiva contra os camponeses, foi levado a proclamar a “coletivização total” e a “liquidação dos kulaques enquanto classe”. Mas se Zinoviev aceitou esta política, Trotsky opôs-se-lhe furiosamente. Passar da “luta contra as tendências exploradoras dos kulaques” à sua expropriação completa, levar a coletivização parcial até a tornar “total” – isso, segundo ele, não era senão, dadas as condições históricas, uma utopia antimarxista e só podia levar à catástrofe. Em Fevereiro de 1930, em plena coletivização forçada Trotsky escrevia que não se devia coletivizar, “até ao fim do Plano quinquenal, mais do que 20 a 25% das explorações camponesas, sob pena de ultrapassar o quadro da realidade”. A pressa de Stálin, que não esperava sequer o fim da construção das fábricas de tratores, exacerbava a ironia de Trotsky: “Não é atrelando arados desengonçados aos pobres burros velhos dos mujiques que se criam grandes explorações agrícolas, do mesmo modo que não é pondo lado a lado embarcações de pesca que se constrói um transatlântico”.
Os escritos mais recentes do nosso líder, nos quais ele modificou um pouco a sua posição, não tinham chegado até nós. Assim a confusão atingiu o auge quando recebemos finalmente, no Verão de 1932, os últimos documentos de Trotsky. A peça principal do lote, publicada no estrangeiro em Abril de 1931, intitulava-se: “Os problemas do desenvolvimento da URSS”; e tinha como subtítulo: “Esboço de um programa da oposição internacional de esquerda sobre a questão russa”.
O objetivo deste documento e o seu autor conferiam-lhe uma importância especial. Assim decidimos torná-lo objeto de uma discussão: “Não seria necessário que a oposição russa se pronunciasse sobre o seu próprio programa? No entanto a discussão não teve entusiasmo. Ninguém se mostrava satisfeito, mas todos – à exceção da extrema-esquerda – testemunharam o seu respeito pelo documento, evitando no entanto abordá-lo. Trotsky falava desta vez dos “sucessos atuais verdadeiramente inauditos…”, do “ritmo sem precedentes da industrialização… que demonstrou de uma vez para sempre a força dos métodos econômicos do socialismo”. Quanto à famosa coletivização a todo o custo, Trotsky definia-a como “uma nova época da história humana, o início da liquidação do cretinismo aldeão”. Admitia inclusive que se poderia talvez levar a cabo a coletivização total “dentro de dois ou três anos”. Após este choque, aqueles dentre nós que falavam a propósito do Plano quinquenal de “miragens de números” e de “bluff staliniano”, não tinham mais nada a fazer do que calar-se. Contudo, o novo “Programa” de Trotsky não despertava nenhuma simpatia. Os trotskistas de centro e direita achavam que o seu chefe exagerava os êxitos do plano, que uma tal atitude podia ser defendida no estrangeiro onde era preciso proteger o plano dos ataques da burguesia, mas que não podia convir na Rússia. Quanto às esquerdas estavam descontentes por não encontrarem no programa uma crítica social e política do regime.
É preciso dizer que, do ponto de vista social e político, o “Programa” de Trotsky aniquilava todas as esperanças das “esquerdas”. Desde 1930 que elas esperavam que o seu chefe tomasse posição e declarasse que o atual Estado soviético não era um Estado operário. Ora, desde o primeiro capítulo do “Programa”, Trotsky definia-o claramente como um “Estado proletário”. Derrota ainda mais grave no domínio do Plano quinquenal: o seu caráter socialista, o caráter socialista dos fins e mesmo dos métodos era insistentemente afirmado no “Programa”. A sua polêmica no domínio social reduzia-se a uma querela insignificante: “A União Soviética não entrou na fase do socialismo, como afirma a fração staliniana no poder, mas somente na primeira fase de uma evolução para o socialismo”. Mais adiante, o Plano quinquenal baseado na exterminação dos camponeses e na exploração impiedosa dos operários era interpretado como “uma tentativa da burocracia para se adaptar ao proletariado”. Em resumo, a URSS desenvolvia-se “sobre os alicerces da ditadura do proletariado…”.
Tornava-se inútil daí em diante esperar de Trotsky uma distinção entre burocracia e proletariado, entre capitalismo de Estado e socialismo. Aos que dentre os “negativistas” de esquerda não conseguiam vislumbrar o socialismo no que se estava a edificar na Rússia, não restava senão cortar com Trotsky e deixar o “Coletivo trotskista”. Houve com efeito uma dezena – entre os quais eu – que o fizeram. Como é costume, apresentamos os motivos da nossa separação numa declaração escrita.
Nela dizíamos substancialmente que a atitude positiva de Trotsky em relação aos fenômenos sociais, somada a uma atitude negativa em relação à superestrutura política, levaria logicamente à concepção de uma revolução puramente política. Mas uma tal revolução, na melhor das hipóteses, provocaria uma mudança de pessoal na burocracia, introduzindo nela um pouco de liberalismo, sem alterar em nada um pouco de liberalismo, sem alterar em nada os fundamentos do regime. Seria uma repetição de 1830…
O que mais me chocava no programa de Trotsky, era que ele podia reforçar as ilusões do proletariado ocidental em relação à Rússia em vez de as dissipar. Porque se Stálin dizia: “Nós já realizamos o socialismo”, Trotsky limitava-se a precisar: “Perdão, não o socialismo, mas apenas a sua primeira etapa”.
Assim chegava eu, após ter tomado parte na vida ideológica e nas lutas da oposição russa – como muitos outros antes e depois de mim – à conclusão seguinte: Trotsky e os seus partidários estão por demais ligados ao regime burocrático na URSS para poderem conduzir a luta contra este regime até às últimas consequências. No seu “Programa”, Trotsky sublinhava inclusivamente que a sua crítica não era a de um estrangeiro hostil e que considerava os problemas do regime “de dentro, não de fora”. Para ele, a tarefa da oposição era melhorar o sistema burocrático, não destruí-lo, lutar contra “os privilégios exagerados” e “a extrema desigualdade dos níveis de vida” – não contra os privilégios e a desigualdade em geral. Que estes sejam um pouco mitigados e tudo entrará na ordem, sob os auspícios da autêntica “ditadura do proletariado”. Os que não se contentarem com isso, arriscam-se a ser tratados de “pequenos burgueses utópicos de extrema esquerda”, senão de contrarrevolucionários.
A evolução ulterior de Trotsky deveria confirmar este prognóstico. A Revolução Traída que Trotsky publicou em 1936 permaneceu fiel às grandes linhas do “Programa” de 1930. Criticando com humor e severidade certos aspectos da sociedade soviética, Trotsky nem por isso modifica a sua visão de conjunto sobre a URSS enquanto “Estado operário”; contribui assim para manter no espírito do proletariado internacional a mais falsa e perigosa das ilusões contemporâneas.
Os métodos desumanos de exploração burocrática aos quais o Plano quinquenal devia o seu êxito, qualifica-os Trotsky de “métodos socialistas que deram as suas provas”. Cala-se quanto à exploração dos operários, e se menciona a exploração dos camponeses é para fulminar “os sábios economistas ao serviço do capital” que ousam falar dela. Certamente que é uma honrada tarefa desmascarar os advogados do capitalismo privado. Mas será também razão para se transformar em advogado do capitalismo de Estado?
Trotsky não quer compreender que os “desvios” e defeitos contra os quais protesta não passam de consequência lógica e inevitável da totalidade do sistema que ele defende com ardor. Trotsky é, no fundo, o teórico de um regime que Stálin põe em prática.
“Oposição burocrática ou proletária” – tal era o título que eu dava ao artigo no qual expunha, na prisão, a minha nova atitude para com o trotskismo. Passava daí para diante para o campo da oposição russa de extrema-esquerda: “centralismo democrático”, “Oposição Operária”, “Grupo operário”.
O que separava esta oposição do trotskismo não era somente a maneira de julgar o regime e de compreender os problemas atuais. Era antes de mais a maneira de compreender o papel do proletariado na revolução. Para os trotskistas era o partido, para os grupos de extrema-esquerda era a classe operária o motor da revolução. A luta entre Stálin e Trotsky dizia respeito à política do partido, ao pessoal dirigente do partido; para um como para o outro, o proletariado era um objeto passivo. Os grupos de extrema-esquerda comunista, ao contrário, interessavam-se antes de mais com a situação e o papel da classe operária, com o que ela era de fato na sociedade soviética e com o que devia ser numa sociedade que se atribuísse sinceramente a tarefa de edificar o socialismo.
IX – Lênin também…
Os grupos comunistas de extrema-esquerda não temiam o confronto com o conjunto da experiência revolucionária na Rússia, contrariamente à oposição trotskista para a qual a época de Lênin permanecia sacrossanta. Mais ainda: desde 1919-1921 todos esses grupos extremistas se tinham constituído em oposição mais ou menos nítida à política de Lênin.
O papel de Lênin na Revolução era objeto de acesas discussões na época em que me encontrava encarcerado no isolador de Verkhné-Uralsk.
Nestas discussões com os outros assim como nas reuniões interiores, a oposição trotskista defendia a tese: “Lênin teve sempre razão”. Para não contrariar este dogma, Trotsky “reconheceu” durante muito tempo a justeza a oposição de Lênin em todos os litígios que no passado os haviam oposto. Trotsky aprovou igualmente a proposição de Zinoviev de intitular o seu grupo oposicionista de “bolchevique-leninista”. Mais tarde Trotsky reforçou ainda o dogma: a posição justa no que respeita à revolução permanente (e de todos os conceitos trotskistas é certamente o que possui mais valor) não era a sua mais a de Lênin. A bem dizer, acrescentava Trotsky, Lênin era igualmente na verdade partidário da revolução permanente, e era por isso que os desacordos entre eles eram perfeitamente formais e não tinham grande importância… O que levou a oposição trotskista a desenvolver um novo tema: as dissenções entre Lênin e Trotsky nunca foram demasiado profundas; Lênin e Trotsky estiveram sempre de acordo sobre o fundo das questões e os desacordos referiam-se a simples pontos de pormenor. A oposição trotskista reconciliava portanto o passado de Lênin e o de Trotsky. Recusando adotar uma atitude crítica em relação a um como a outro, ela cobria com um verniz burocrático os aspectos mais vivamente contraditórios das suas tendências respectivas. À lenda forjada por Stálin, não se opunha um estudo sério dos fatos, mas uma outra lenda.
Alguns trotskistas, os do grupo “V.B.” – “Voinstvovionchtchi Bolchevik” – 100% trotskistas, iam ainda mais longe, declarando que se as dissenções entre Lênin e Trotsky tinham sempre sido graves, foi Trotsky que teve sempre uma posição justa. Fato característico: os trotskistas, que gostavam de fazer citações, referiam-se sempre a Trotsky, e nunca, salvo raras exceções, a Lênin.
O grupo “Centralismo democrático” encontrava-se numa posição muito difícil quando Lênin era posto em causa. Ao contrário dos trotskistas, este grupo tinha a sua origem na velha guarda bolchevique. Assim, tanto nas suas concepções gerais como no seu enunciado, era “leninista”. No início, em 1919, em 1921, representava a oposição do aparelho local, “a oposição de Sua Majestade”, contra o centro. Em nome do “Centralismo Democrático” opunha-se ao centralismo burocrático do Comitê Central de Lênin. Daí o seu nome. Achando que Lênin se afastava do seu próprio programa, ou que não tirava as conclusões das suas premissas, este grupo tinha-se constituído na base da defesa do leninismo contra Lênin. Sem querer reconhecê-lo, opunha o Lênin do período decadente da Revolução ao Lênin do período ascendente. Criticava a política praticada por Lênin no poder apoiando-se nos princípios leninistas de O Estado e a Revolução. Mas por mais profunda que fosse esta obra de Lênin, de 1917, ela não fornecia no entanto respostas pré-fabricadas aos novos problemas criados no decurso da revolução. Afinal, o grupo marcou passo durante dez anos (1919-1929), seja capitulando perante um ultimatum de Lênin, seja apoiando os trotskistas na sua luta contra Stálin. A sua orientação “mais papista que o papa” revelou-se estéril. O Plano quinquenal abalou o grupo até aos seus fundamentos. A maioria, como entre os trotskistas, capitulou. Justificou a sua capitulação dizendo: a partir do momento em que se liquida a NEP e as classes burguesas, é porque nos enganamos e porque está para construir-se o socialismo.
Se a condição operária é miserável, é porque não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos, e que antes da construção integral do socialismo é preciso passar por uma última etapa difícil, a da liquidação da última classe capitalista: a dos pequenos burgueses. Era assim que Timoteo Sapronov, líder do grupo, e um dos operários bolcheviques mais conhecidos da Rússia, explicava a posição dos “derrotistas”.
Se nos mantivéssemos dentro dos princípios leninistas, a posição dos “derrotistas” não deixava de ser lógica. Toda a estratégia de Lênin após Outubro repousava na tese de que apenas a pequena burguesia e o capitalismo privado ameaçam o proletariado e o socialismo. Lênin era de uma disciplina de ferro a reprimir todas as forças de oposição que falassem do burocratismo e do capitalismo de Estado como de um perigo que ameaçava a classe operária. Seguindo a via traçada por Lênin, os “decistas”, na véspera do Plano quinquenal, só falavam da vitória da “contrarrevolução pequeno-burguesa” e da transformação da URSS num “Estado pequeno burguês”. A concepção leninista não admitia outro tipo de contrarrevolução… E eis que chega o Plano quinquenal, que declara guerra à pequena burguesia e a liquida. Foi preciso escolher: ou permanecer fiel às teses leninistas e reconhecer que o Plano quinquenal realizava o socialismo, ou inclinar-se perante a realidade e reconhecer, independentemente do que Lênin tivesse dito, o triunfo da “terceira força”: a burocracia e o capitalismo de Estado. Os “decistas” que não capitularam escolheram esta segunda via… Mas esta reavaliação dos valores, que negava na prática todas as concepções de Lênin após Outubro e que punha mesmo em dúvida as anteriores, só se fez lenta e progressivamente. E o pequeno grupo “decista” do nosso isolador, que compreendia uma vintena de pessoas, cindiu-se por esta altura em três ou quatro frações.
Uns continuaram a pensar que Lênin, em Outubro, embora cometendo pequenos erros, tinha tomado uma posição justa, e que a linha só tinha começado a desviar-se com Stálin; outros achavam que já no tempo de Lênin, com a instauração da NEP, a estrutura democrático-burguesa se tinha sobreposto à estrutura socialista, e que o próprio Lênin não sabia o que fazia. Outros ainda declaravam que, apesar de todas as proclamações, a estrutura socialista da revolução tinha sido sempre mais fraca do que a estrutura pequeno-burguesa. A revisão do leninismo era não só relativa ao capitalismo de Estado, mas também à ditadura do partido. No início, quando Lênin defendeu, em 1920, a tese do partido único e da sua ditadura, os decistas aprovaram-no e separaram-se da “Oposição operária” que se lhe tinha imediatamente oposto. A experiência da ditadura do partido conduziu-os a rejeitar as suas concepções anteriores. Eles começavam a compreender agora que não pode haver democracia interior no partido sem democracia operária. O processo desta revisão das ideias políticas de Lênin foi mais rápido do que o da revisão das suas ideias econômicas. Em deportação foi-me dado seguir durante dois anos todas estas peripécias. O resultado final foi uma atitude crítica, para não dizer hostil, relativamente à ação e às teorias de Lênin após Outubro.
Na crítica do Lênin do período revolucionário o tom foi dado pela “Oposição Operária” de 1920, pela sua ala esquerda, para ser mais preciso, que se organizou em 1922 sob o nome de “Grupo Operário”. Na linguagem corrente, os partidários deste grupo eram chamados de “Miasnikovistas”, do nome do seu líder Miasnikov, um conhecido operário bolchevique.
Este é uma das figuras mais marcantes da revolução bolchevique. A “Oposição Operária” e o “Grupo Operário” eram, pelas suas origens, grupos da velha guarda bolchevique. Mas, ao contrário dos “decistas”, criticavam a ação de Lênin desde o início e não em minúcias, mas no seu conjunto. “A Oposição operária” opunha-se à linha econômica de Lênin. “O Grupo operário” ia ainda mais longe e atacava o regime político e o partido único, instaurados por Lênin antes da NEP. Na pessoa de Serge Tiyunov, o “Grupo operário” possuía no nosso isolador um representante muito instruído, muito ativo e muito rigoroso. Não lhe faltavam também, ao que se dizia, características bastante “netchaievianas”[3].
Tendo dado como base do seu programa a palavra de ordem de Marx para a Primeira Internacional, “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”, o “Grupo operário” entrou em guerra desde o início com as concepções leninistas de “ditadura do partido” e da organização burocrática da produção, enunciadas por Lênin no período inicial da decadência da revolução. Ao invés da linha leninista, reclamava a organização da produção pelas próprias massas, a começar pelos coletivos de fábrica. Em política, o “Grupo operário” reclamava o controle do poder e do partido pelas massas operárias. Estas, verdadeiros chefes políticos do país, deveriam ter o direito de retirar o poder a qualquer partido, fosse ele o comunista, se achassem que esse partido não defendia os seus interesses. Ao contrário dos “decistas” e da maioria da “Oposição operária”, cuja reivindicação da “democracia operária” se limitava praticamente ao domínio econômico, e a tentavam conjugar com o “partido único”, o “Grupo operário” alargava a sua luta pela democracia operária à reivindicação da liberdade dos operários escolherem entre os partidos políticos concorrentes em meio operário. O socialismo só pode ser obra da criação livre dos trabalhadores. Enquanto que o que era edificado pela força, sob o nome de socialismo, não foi para eles, desde o início, senão um capitalismo burocrático de Estado.
Em 1923, no auge das greves dirigidas pelo “Grupo operário”, este dirigiu-se ao proletariado russo e ao proletariado internacional por meio de um Manifesto no qual expunha os seus pontos de vista, claramente e sem redundâncias inúteis. Nele estigmatizava a tendência crescente no bolchevismo para deixar de se apoiar na classe operária, baseando-se no “culto dos chefes”. Este Manifesto é um dos documentos mais notáveis da Revolução russa. Surge no momento da derrocada interna da Revolução com o mesmo significado do Manifesto dos Iguais publicado por Babeuf no momento da derrocada interna da Revolução francesa.
Durante um longo período abstive-me de participar nas discussões do isolador sobre o papel de Lênin. Pertencia a essa jovem geração comunista educada na ideia que Lênin era sacrossanto. Para mim era natural que “Lênin tivesse sempre tido razão”. Os resultados – a tomada revolucionária do poder e a sua conservação – falavam a seu favor. Portanto, concluía eu, como a minha geração, a tática e os meios também eram justos.
Quando cheguei ao isolador, foi nesse sentido que intervi. Assim não deixei de me emocionar quando ouvi o operário “decista” dar-me o seguinte conselho irônico:
– “É inútil afogueares-te, camarada Ciliga, a propósito da luta de Lênin contra burocracia. Tu apoias-te num dos últimos artigos que ele escreveu antes de morrer, aquele sobre a reforma da Inspeção operária e camponesa. Chama ele as massas a organizarem-se contra a burocracia? De modo algum. Ele propõe a criação de um organismo especial com pessoal bem pago, organismo superburocrático que deverá combater… a burocracia!”
“Não, camarada estrangeiro – continuou Prokopénia – Lênin no fim da sua vida perdeu a confiança na massa operária. Ele apostou no aparelho burocrático, mas com medo que este exagerasse, terá querido limitar o mal fazendo com que uma parte do aparelho fosse controlada pela outra”. Depois de se ter calado um momento, continuou: “Evidentemente não vale a pena apregoá-lo por toda a parte, pois isso daria argumentos complementares a Stálin. Mas não é por isso menos verdade.”
Se eu sentia pouco interesse pelo estudo das discussões e querelas do passado, era por me encontrar inteiramente submergido pelos problemas da hora presente. Na medida em que as questões de história me interessavam, parecia-me que estes grupos sobrevalorizavam a importância dos seus velhos diferendos com Lênin. O destino da revolução, a meu ver, decidia-se pela relação de forças das classes, e não pelas fórmulas ou teses que uma ou outra tendência interna poderia ter adotado.
À medida que o Plano quinquenal se ia realizando, a questão das formas organizacionais, políticas e econômicas tornou-se de novo atual. Problemas que há muito podiam considerar-se resolvidos pela história voltaram à baila e de uma forma mais aguda. A supressão da pequena burguesia e do capitalismo privado levou à constatação que na arena social se encontravam frente a frente apenas a burocracia e o proletariado. E era agora no plano das formas de organização que era preciso encontrar a solução de problemas tais como as suas relações mútuas e “o que é o socialismo e como o atingir?”.
As questões técnicas de organização revelavam-se questões sociais. A luta das massas trabalhadoras contra a tirania burocrática não podia ser senão a luta contra as formas organizacionais que a burocracia tinha dado à economia. Mas estas formas, Stálin não as tinha inventado. Ele tinha-as herdado de Lênin. A Revolução russa, apesar dos antagonismos e lutas intestinas, é um todo orgânico. E Lênin não podia deixar de ser posto em causa.
Dedicando-se ao estudo das novas questões, o miasnikovista Tiyunov redigiu um ensaio consagrado ao diferendo histórico sobre a organização burocrática ou socialista da produção. O seu trabalho baseava-se na crítica das medidas militaristas tomadas por Trotsky para organizar a economia no período do comunismo de guerra. O jovem decista Tiago Kosmal escreveu um brilhante estudo histórico sobre o que se designa por “a discussão sindical!”. Ele chegava à seguinte conclusão: o modo como Lênin organizou a indústria deixa esta completamente nas mãos da burocracia. E isso tinha tido por consequência direta a recuperação das fábricas ao proletariado e levado este a perder a revolução.
Um outro decista, Micha Chapiro, refutou num artigo, defendendo o ponto de vista tradicional dos decistas: os diferendos sobre os diversos sistemas de organização da produção não tinham um significado de princípio. Segundo Chapiro, “A Oposição Operária” não representava os interesses do proletariado mas os da burocracia sindical. E se as reivindicações sobre a transferência da direção das empresas para os sindicatos tivessem sido satisfeitas, a única diferença nas fábricas teria sido a burocracia sindical, em vez da burocracia do partido.
O proletariado precisava, para combater a burocracia, de liberdade; liberdade de organização, liberdade de imprensa, liberdade de reunião. Mas isso conduzia à tese da liberdade de escolher o seu partido, defendida por Miasnikov, e outrora condenada por Lênin, por Trotsky e pelos decistas. E, mesmo assim, a maior parte dos decistas e quase todos os trotskistas continuavam a considerar que “a liberdade de partido” seria “o fim da revolução”. “A liberdade de escolher o seu partido, é “menchevismo”, decretavam os trotskistas sem apelo. “O proletariado é socialmente homogêneo, e é por isso que os seus interesses só podem ser representados por um partido único”, escrevia o decista Davidov. “E por que não se poderá conjugar a democracia interna do partido com a sua ditadura externa?”, perguntava a decista Niura Lankovskaia. “A Comuna de Paris sucumbiu porque havia vários partidos. Mas entre nós só existe um. Como é que aconteceu que a nossa revolução sucumbiu igualmente?”, retorquiu Dora Zak a Davidov. O jovem decista Volodia Smirnov chegou mesmo a dizer: “Nunca existiu na Rússia uma revolução proletária. Houve apenas uma ‘revolução popular’ na base, e uma ditadura burocrática no cume. Lênin nunca foi um ideólogo do proletariado. Do princípio ao fim foi um ideólogo da intelligentsia.” Estes conceitos de Smirnov estavam ligados à ideia geral de que, por vias diversas, o mundo se orienta para uma nova forma social: o capitalismo de Estado, tendo a burocracia como a nova classe dirigente. Ele punha em plano de igualdade a Rússia soviética, a Turquia kernalista, a Itália fascista, a Alemanha em marcha para o hitlerismo, e a América de Hoover-Roosevelt. “O comunismo é um fascismo extremista, o fascismo é um comunismo moderado”, escrevia no seu artigo “O comunismo-fascismo”. Esta concepção deixava na sombra as forças e as perspectivas do socialismo. A maioria da fração decista, Davidov, Chapiro, etc., considerou que a heresia do jovem Smirnov ultrapassou os limites e este foi com grande alarde excluído do grupo[4].
Verificando a importância dos velhos problemas para a compreensão dos novos, assim como para a previsão exata das tarefas futuras, pus-me a estudá-las seriamente. As diferenças existentes na interpretação destas questões pelos meios de extrema-esquerda predispunham ao exame crítico e à auto-determinação. E, estudando-as na sequência imediata da experiência revolucionária, abordei-as evidentemente num estado de espírito diferente do dos camaradas que, dez anos antes, tinham encontrado nela motivos para uma cisão. Tinha atrás de mim 15 anos de história da revolução e podia julgar o passado com um espírito mais aberto e firme.
Mas, submetendo a uma análise crítica “a época de Lênin”, abordava o Santo dos Santos do comunismo e a minha própria ideologia. Submetia Lênin à Crítica, o chefe e o profeta, coroado pela glória imortal da revolução e mais ainda pela lenda e a mistificação do mito post-revolucionário. E apesar do espírito crítico do meio no qual vivia, penetrava no santuário na ponta dos pés, tanto me sentia culpado de ouvir a voz interior que me dizia: “Para compreender a experiência e as lições da revolução é preciso não recuar perante nada, e mostrar-se tão impiedoso como a revolução que, também ela, não recuou perante nada”.
E quanto mais penetrava no santuário mais, dia após dia, se me punha questão fundamental: “Será que por acaso tu também, Lênin?”. “Não terás só sido grande enquanto as massas e a revolução o foram? E quando as forças das massas declinaram, ao teu espírito revolucionário não terá sucedido o mesmo, declinando ainda mais? Será possível que para conservar o poder tenhas traído, tu também, os interesses sociais das massas? E que tenha sido a tua decisão de conservar o poder que nos tenha seduzido, a nós, os ingênuos? E que tenhas preferido a burocracia vitoriosa às massas vencidas? E que tenhas ajudado esta nova burocracia a vergar a nuca às massas soviéticas? Será possível que tenha esmagado estas massas quando elas não quiseram acomodar-se à nova ordem? Que as tenhas difamado e desnaturado o sentido das suas aspirações legais? Lênin, o que é que vale mais, os teus méritos ou os teus crimes?
Faço pouco caso dos móbeis que te inspiraram: mais valia, pensavas, que fossem os burocratas a dobrar as costas aos operários do que serem os antigos exploradores, proprietários burgueses e proprietários da terra a fazê-lo. É possível que os burocratas considerem a diferença importante; mas para as massas que curvavam a cabeça, ela não o era absolutamente nada…
“Pouco caso faço também, Lênin, dos argumentos dos teus advogados: subjetivamente as tuas intenções eram as melhores do mundo. Foste tu, Lênin, que nos ensinaste a julgar as pessoas não pelas intenções, mas pela significação objetiva destas, pelos grupos sociais em favor dos quais a sua atividade se desenvolve, a favor de quem são pronunciadas as suas palavras. E aliás, nas tuas próprias justificações, muito prudentes diga-se de passagem, encontro a prova que tu próprio admitiste subjetivamente o regime que realizavas objetivamente. Pior: no momento em que a ditadura da burocracia se consolidava, tu difamaste conscientemente (as provas existem) as massas operárias que resistem à burocracia triunfante. Quando esta resistência, por mais fraca que fosse, e embora tão esmagada pela burocracia, era o supremo testamento da revolução. E uma nova revolução, realmente e socialmente libertadora das camadas inferiores, só pode nascer na Rússia, como no resto do mundo, realizando o programa da oposição operária esmagada. É neste retomar da continuidade da história humana que se continuarão efetivamente as suas tendências progressistas…”
(pp. 180-207).
XI – Regresso à Europa ou degredo na Sibéria?[5]
Os últimos meses em Verkhné-Uralsk
(…)
No Verão de 1933 a prisão apaixonava-se com os dois grandes acontecimentos da época: a retirada que Stálin acabava de proclamar e a tomada do poder por Hitler.
Constatando a retirada de Stálin, a oposição trotskista não podia discutir mais acerca do seu “programa de retirada”. As frações e cisões tinham perdido o seu objeto. Era necessário tomar posição face às realidades do momento.
A nova situação facilitou igualmente a unificação no campo da extrema-esquerda. O grupo de Miasnikov, os “decistas”, alguns antigos trotskistas – ao todo 20 a 25 pessoas – formaram uma “Federação de comunistas de esquerda”. Esta federação constitui-se após a minha saída do isolador, mas pude tomar parte na discussão ideológica que a precedeu.
Não estávamos de acordo sobre a definição do capitalismo de Estado soviético: seria “relativamente progressista” (segundo eu), “puramente parasitário” (segundo Tiyounov), representaria uma “nova época de civilização”, como pretendia V. Smirnov?[6]
Tiyounov exigia o socialismo integral na indústria e o restabelecimento da NEP na economia rural. Aprovava integralmente o bolchevismo histórico e o programa da “Oposição operária” e do “Grupo operário” de 1920-23. Eu pensava, ao contrário, que o novo movimento operário devia ter em conta a experiência de todos os agrupamentos de esquerda do bolchevismo russo, da tendência alemã de Rosa Luxemburgo, do sindicalismo francês e americano, etc. Bem entendido, era preciso ter igualmente em conta as transformações sofridas pela revolução russa e as vitórias do fascismo sobre o antigo movimento operário.
A crise alemã, a começar pelas eleições para o Reichstag, em Setembro de 1930, apaixonava os prisioneiros. Em cada eleição, em cada etapa da ascensão do nacional-socialismo, escrevíamos artigos, elaborávamos quadros comparativos e organizávamos discussões às horas de passeio.
Rote Fahne era o único jornal alemão que podíamos receber, e assim líamo-lo até o papel se desfazer nas nossas mãos. Apesar de todas as nossas divergências, éramos unânimes na previsão do enorme alcance internacional dos acontecimentos na Alemanha. Isso levou-nos a estudar o problema no seu aspecto geral: o que é o fascismo, qual é o seu lugar na sociedade atual? Analisávamos com minúcia o programa dos partidos fascistas e os trabalhos soviéticos e estrangeiros que se relacionavam com ele (já nem sei como, mas chegávamos mesmo a obter trabalhos estrangeiros!).
A chegada de Hitler ao poder provocou um verdadeiro entre os trotskistas. Eles esperavam a “inevitável” de Hitler contra a URSS, com a cumplicidade da Inglaterra e da França. “Hitler e Stálin vão entender-se”, objetava eu ao genro de Trotsky, Nevelson. “Não é possível, Hitler não vai querer tal coisa. E então Stálin vai entender-se com a França e Inglaterra”. E eram estes patriotas um pouco limitados do “novo Estado soviético” que Stálin viria a acusar mais tarde de colaboração com Hitler…
Após o desmantelamento do Partido Comunista Alemão, um grupo de “decistas” intransigentes falou em formar uma IV Internacional. Os trotskistas de Verkhné-Uralsk opuseram-se a esta ideia pois esperavam sempre uma reforma da URSS e do Comintern. Os chefes trotskistas de esquerda, V. Ienonkidzé, Kamenetski e Jak, publicaram um manifesto que acusava os “decistas” de lançarem uma palavra de ordem prematura e demagógica. Aliás, ignorando a atitude de Trotsky a esse respeito, os seus partidários de Verkhné-Uralsk preferiam manter as suas posições. Quando souberam que o seu chefe era por uma IV Internacional, não se lhe opuseram, mas não souberam como interpretar o fato de os trotskistas franceses terem entrado para o Partido socialista, Seção da II Internacional.
Zankov e Tiyounov, da extrema-esquerda, eram contra uma IV Internacional por outras razões: temiam que ela não passasse de uma reedição da III Internacional. Smirnov deu meia volta; considerando que uma nova Internacional e novas organizações operárias seriam, dadas as circunstâncias, uma pura utopia, via como única saída a fusão dos socialistas e dos comunistas. Os primeiros assegurariam a participação das classes proletárias, os segundos a iniciativa revolucionária. Eu tive que responder a Smirnov “que a união de dois cadáveres não produziria um corpo vivo”.
Para mim, os social-democratas e os comunistas eram, o movimento social, os partidos do “passado”.
Aproveitei os meus últimos meses na prisão para me documentar sobre os grupos não-comunistas.
Os social-democratas russos, cerca de uma quinzena, publicavam um jornal de que recordo alguns artigos. Num deles demonstrava-se que os bolcheviques se haviam apoiado em 1917 e durante a guerra civil nas camadas inferiores da classe operária, mas, no tempo da NEP, nas camadas superiores do proletariado. Num artigo sobre “os resultados do Plano Quinquenal”, um representante da ala direita dos social-democratas negava qualquer progresso econômico à ala esquerda, achava que os resultados da coletivização eram, no fim de contas, satisfatórios. Enfim, lembro-me de um artigo intitulado “Hitler no poder” escrito igualmente por um social-democrata de esquerda, onde a ausência de uma frente proletária unida era denunciada como a causa essencial da vitória do fascismo.
Os social-democratas georgianos, na medida em que pude dar-me conta na prisão e no degredo, eram na maioria democratas pequeno-burgueses; não havia senão muito poucos verdadeiros social-democratas. Mas tal não me impedirá de dizer a verdade sobre a repressão da insurreição georgiana em 1924. A resposta foi de uma crueldade inaudita, somada às provocações e execuções em massa, sem julgamento de qualquer espécie; fuzilou-se, por outro lado, pessoas que se encontravam há muito tempo na prisão e que não tinham nada a ver com a insurreição. Este banho de sangue foi organizado por Stálin, Ordjonikidzé e Bela Kun. Numerosos comunistas georgianos de oposição que conheci em Verkhné-Uralsk contaram-me a verdade, que conheciam por terem sido testemunhas visuais da repressão ou por nela terem participado.
Só havia cinco socialistas revolucionários em Verkhné-Uralsk, mas ainda conheci mais alguns no degredo. As suas opiniões aproximavam-se das da oposição comunista. Uma parte destes, conduzidos por M. A. Spiridonova, heroína lendária do movimento revolucionário russo (ela passou 25 anos, metade da sua vida, no exílio) partilhava mais ou menos a visão dos trotskistas. Um outro grupo conduzido por Kamkov, antigo comissário do povo, socialista revolucionário em 1918, ligava-se às opiniões dos comunistas de extrema-esquerda.
Os socialistas revolucionários de direita, muito pouco numerosos, eram bastante hostis aos de esquerda.
Os socialistas revolucionários armênios, que constituíam o partido “Dachnaktsutiun”, interessavam-se quase exclusivamente pela emancipação nacional.
Os judeus sionistas pertenciam a diversas variantes de socialismo e ocupavam-se antes de mais do problema nacional judeu na Palestina. Mas eles não se desinteressavam inteiramente do movimento operário russo e internacional.
Não havia muitos anarquistas em Verkhné-Uralsk, mas no degredo conheci mais alguns, dois dos quais eram célebres: Jonas Varchavski e Barmach. Se os social-democratas representavam na prisão o princípio “humanista” e os comunistas o princípio revolucionário, pode dizer-se que os anarquistas representavam o ideal cavaleiresco. Estavam sempre prontos a apoiar qualquer grupo para lutar contra a administração. Se havia uma greve de fome, era entre os anarquistas que havia maior número de casos mortais. Havia aliás na URSS um certo número de antigos comunistas e de membros do Konsomol que no fim da guerra civil e no início da NEP se ligaram aos anarquistas.
As massas trabalhadoras da Rússia – tanto os operários como os camponeses – preferem, como já disse, a resistência passiva à luta aberta. Já passou a época da “Oposição operária”, de 1920-1923, esse poderoso movimento social oposicionista de extrema-esquerda, criado pelos operários russos. Esta situação reflete-se exatamente na composição social e nacional da prisão de Verkhné-Uralsk, a principal prisão política da Rússia contemporânea. Não havia mais de 15% de operários entre os detidos. Estes operários, aliás, “capitulam” com bastante rapidez. Ouvi alguns dizer: “Para quê apodrecer na prisão? Quando o povo se revoltar, a hora da oposição soará, mas não antes.”
A composição social e nacional dos diversos grupos políticos era mais ou menos a seguinte: o grupo mais numeroso, os trotskistas, que no país podia contar com as simpatias de largos círculos do aparelho comunista, era composto na prisão por uma maioria de jovens intelectuais e técnicos judeus, saídos da pequena burguesia da “zona judaica” da Ucrânia e da Rússia Branca. Havia também muitos georgianos e armênios de origem camponesa. Havia entre os trotskistas um importante grupo de antigos militares e tchequistas, onde os Russos eram aliás bastante numerosos.
O elemento russo e operário era o mais considerável no grupo “Centralismo democrático” (os “decistas”); predominava no grupo operário de Miasnikov. Pela sua composição, a oposição de direita que chegou à prisão a partir de 1933 pode ser qualificada de russa. Assim, as duas alas extremas da oposição comunista eram russas de nacionalidade, com a particularidade, que tem valor de símbolo, de a ala da extrema-direita ser muito mais forte que a ala de extrema-esquerda.
No conjunto, segundo as estatísticas do nosso “conselho de veteranos”, o setor comunista da prisão era composto por 43% de judeus, 2,7% de caucasianos, os russos e alguns membros de outras nacionalidades completando os restantes 30%. Dizia-se com humor em Verkhné-Uralsk que os russos não passavam de uma minoria nacional. Não há dúvida alguma que esta situação, que muito honra os povos judeu, georgiano e armênio, constitui o ponto fraco da oposição contemporânea na Rússia.
A maior parte dos sociais-democratas (mencheviques) provêm do “Bund” – velho partido operário judaico de antes da guerra. Pode dizer-se que os bundistas de direita passaram a ser social-democratas, e os de esquerda trotskistas.
O grosso dos socialistas revolucionários e dos anarquistas era formado por russos.
(pp. 227-232).
[1] Embora as páginas deste capítulo se refiram principalmente às prisões, e nomeadamente à de Leningrado, onde o autor esteve em primeiro lugar – e não ao isolador político – parece-nos interessante traduzir as três páginas que se seguem. A composição dos detidos e a sua “representatividade” contêm elementos indicadores da realidade soviética. (N.T.)
[2] Em Verkhné-Uraisk. (N.T.)
[3] O anarquista jacobino Natchaiev, discípulo de Bakunin, a quem inspirou o seu “Catecismo revolucionário”, foi o protótipo do “niilista” da época czarista. Foi ele que inspirou a Dostoiévski o célebre romance Os Possessos. (N.T. francês).
[4] Não é difícil ver Smirnov como precursor de Bunham.
[5] Foi a segunda alternativa que se verificou. O autor passou na Sibéria dois anos e meio, relatados no segundo tomo da edição de 1950: “Sibéria terra de exílio e de industrialização”. Na edição de 1937 esta parte constava de um simples capítulo. Ao longo de toda a tradução, sempre que o autor se refere ao exílio na Sibéria, traduzimos este termo por degredo, a fim de o distinguir do afastamento para um país estrangeiro. (N.T.).
[6] Um precursor (como se vê) de James Burnham e da sua Revolução dos gerentes.
O presente artigo foi retirado da seguinte coletânea: A Natureza da URSS. Porto, Afrontamento, 1977.
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