Democracia Fabril – Anton Pannekoek

Democracia Fabril[1]

Caso a gente acredite nos romancistas burgueses, o despotismo, a dominação irrestrita de uma pessoa sobre muitas outras, pertence apenas à falta de cultura de eras passadas e surge de uma barbárie que foi completamente superada em nossa era de liberdade e igualdade burguesas. Essa concepção só pode ser explicada pelo fato de que seus criadores prestam atenção apenas ao próprio entorno e ignoram a massa do povo. Em suas casas, nas ruas e nas vizinhanças os trabalhadores possuem sua liberdade civil e são iguais às outras pessoas. No entanto, lá onde passam a maior parte de suas vidas, na fábrica, eles vivem em um despotismo absoluto.

Assim que o trabalhador entra em sua oficina, ele é transportado de repente de um mundo no qual predomina a forma de governo livre do século XIX a outro mundo que é politicamente semelhante à antiguidade oriental ou a um Estado negro[2]. O empresário faz e desfaz autocraticamente; sua vontade é o mandamento máximo. A constituição dessa comunidade do trabalho, o regulamento da fábrica, é instituída e alterada por ele; quem não gosta pode ir embora. Nenhum debate, nenhuma decisão comum regula o trabalho comum a não ser o mandamento de poder dos chefes. E não faltam só direitos aos trabalhadores, mas também liberdade. Bater papo um com o outro, ir e vir, descansar, olhar pela janela: isso não é permitido e violações dessa obediência cega são frequentemente punidas com multas.

Está na cara que os trabalhadores absorverão a luta contra esse sufocante despotismo fabril assim que tiverem se fortalecido por meio da associação sindical. Através de seu poder de organização, eles não arrancam dos empresários somente aumentos salariais e redução da carga horária, mas também sabem amiúde enfrentar com sucesso os atos arbitrários mais escandalosos dos maiores ou menores déspotas fabris. Esse êxito levantou a questão de se ainda não seria possível quebrar completamente, com uma força ainda maior da organização, esse despotismo fabril e substituir a vontade de uma única pessoa pela vontade do todo.

Assim surgiu nos círculos sindicais o ideal da democracia fabril; a fábrica constitucional tomaria o lugar do despotismo fabril da mesma maneira que o governo constitucional suplantou o antigo absolutismo na vida civil. Uma única pessoa não daria mais as ordens; em vez disso, os trabalhadores decidiriam, como o povo no Estado, a regulação do trabalho. Deixariam o papel de antigos súditos do líder absolutista e assumiriam o papel dos cidadãos modernos que têm interesse no Estado, pois eles próprios decidem seu destino e participam de sua gestão. Este avanço estaria completamente alinhado ao desenvolvimento social; realizaria a democracia na indústria, no trabalho, e tornaria a liberdade política aparente em liberdade política de fato. Aquilo que o partido político dos trabalhadores normalmente coloca como objetivo, romper a dominação da classe capitalista, seria aqui efetuado no interior dos elementos da sociedade, nas fábricas individuais, através do poder da organização sindical.

No entanto, esse ideal só pode perdurar quando um aspecto importante do capitalismo é desconsiderado, onde o olhar repousa apenas na fábrica individual sem enxergar as engrenagens do mundo todo. Vê o capitalista apenas em sua fábrica e não o vê fora da fábrica, em sua relação com outros capitalistas. Ele não é apenas um déspota vis-à-vis seus trabalhadores, ele também é concorrente vis-à-vis seus colegas. A fábrica não é somente um local de produção, mas também um campo militar, a partir do qual, com as máquinas como armas, se ameaça o inimigo de destruição e se é, inversamente, por ele ameaçado.

Esse não é um pormenor sem importância essencial; pelo contrário, a relação fora da fábrica determina a conduta no interior da fábrica. O fabricante é déspota, é autocrata, porque é concorrente, porque é líder militar. Para ele, a produção não é um fim em si mesmo que ele busca para o proveito de seus semelhantes. Para ele, ela é um meio para o objetivo de lucrar, o qual ele só alcança quando luta no mercado; ele deve obter o maior lucro possível com os menores preços possíveis. Ele só pode travar esta luta com sucesso se predominar a disciplina absoluta em seu exército, se ele puder levar a cabo tudo o que lhe parece necessário para seu objetivo sem encontrar resistência. Por isso ele não tolera nenhuma ingerência dos trabalhadores nos seus negócios, como ele os denomina corretamente do ponto de vista capitalista. Caso não possa tocar sua fábrica de acordo com seus caprichos, ele encara seus concorrentes como um lutador com braços atados.

Por isso o capitalista rechaçará decididamente todo ataque a sua autocracia. Pois, para ele, é questão de vida ou morte. Uma luta intensa é deflagrada somente quando os trabalhadores se deparam com uma questão de vida ou morte. No capitalismo, os trabalhadores não são coprodutores, não são sócios da produção, mas simplesmente vendedores de sua força de trabalho. Para eles, o fato de ela não ser destruída pela longa jornada de trabalho e de eles conseguirem um bom preço por ela é uma questão de vida ou morte. Por isso ambos os lados lutam amargamente pela questão salarial e pela carga horária e aqui os trabalhadores podem ser bem-sucedidos. Outras reivindicações que, para eles, não constituem questões de vida ou morte só podem ser concedidas quando essas, como excessos escandalosos do despotismo fabril, também não são questões de vida ou morte para o capitalista. Mas a classe capitalista não permite que se mexa no princípio da autocracia industrial; ela mobiliza todos os seus meios de poder, inclusive a violência estatal, para restringir o poder dos sindicatos.

Portanto, enquanto o poder estatal proteger os capitalistas, a fábrica constitucional é um sonho – e não é nem ao menos um belo sonho. Caso se realizasse, seria forjado um laço de solidariedade de interesses entre todo capitalista e seus trabalhadores, ao passo que a solidariedade da classe trabalhadora seria dilacerada. Participantes do desempenho comercial de suas fábricas, os exércitos de trabalhadores se defrontariam como concorrentes que buscam derrotar e tirar o pão um do outro. Uma abolição do despotismo fabril sem uma abolição simultânea da concorrência capitalista destruiria a grande e gloriosa força da classe trabalhadora, sua unidade interna, por meio da qual tomará o bastião do capitalismo, o poder político.

O despotismo fabril como manifestação parcial da insuportável economia capitalista inteira só pode ser abolido com o todo, junto da exploração e da concorrência. A democracia na produção não pode ser criada no espaço restrito da fábrica, mas apenas em toda a sociedade, através do desenvolvimento da produção social livre, através da criação da irmandade e da solidariedade de interesses de todos os seres humanos.


[1] A tradução do artigo Fabrikdemokratie, publicado simultaneamente na Zeitungskorrespondez de 19 de dezembro de 1908 e na Leipziger Volkszeitung de 19 de dezembro de 1908,foi realizada a partir da transcrição disponível no website leftdisorder, disponível aqui, e conferida a partir do documento escaneado da Zeitungskorrespondez. A tradução em língua inglesa, Factory Democracy,publicada no libcom.org, foi consultada apenas para fins de comparação. [n. t.]

[2] Pannekoek utiliza aqui o termo “Negerstaat” – Neger, negro, Staat, Estado. No contexto, parece inegável haver na fala de Pannekoek certo preconceito colonialista, evidente também pela referência à “antiguidade oriental”. Ao longo do século XX, “Neger”, até então comumente utilizado em textos científicos para se referir a pessoas negras, passou a ser considerado extremamente ofensivo entre os falantes de alemão (Schwarzer é tido como o termo respeitoso), justamente por sua associação ao colonialismo e à discriminação racial e étnica, por vezes ligada a esse uso científico. Neste trecho, a tradução inglesa opta pela expressão “Estados tribais” (tribal states), que, embora talvez espelhe bem a intenção de Pannekoek de uma descrição com base em estudos antropológicos, acaba por suavizar consideravelmente o termo. [n. t.]

Traduzido por Thiago Papageorgiou.

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