Crítica ao conceito de genocídio – Um Internacionalista

En Español: Crítica al concepto de “genocidio” [Panfletos Subversivos]

[ARTIGOS DE OPINIÃO]

A África do Sul processou Israel num tribunal internacional em Haia, acusando-o de genocídio. O jornalista israelita Sergei Auslender afirmou que todos os ataques foram heroicamente combatidos em tribunal pelos advogados israelenses. Rina Basist, colunista do Jerusalém Post e do Al-Monitor, tem uma opinião ligeiramente diferente, o que é compreensível, uma vez que não trabalha para um público pró-israelita de antigos judeus da URSS. O problema é que os políticos israelenses já disseram tanta coisa que seria preciso um par de Nurenbergs. São os seus discursos, bem como os discursos de alguns militares, que aparecem em tribunal, e não apenas as ações dos militares.

Atualmente, muitos acusam Israel de “genocídio” em relação aos bombardeamentos em Gaza. A acusação contra Israel pode voltar a suscitar o debate sobre o que é relevante. Entretanto, há críticas ao conceito e dúvidas sobre a sua utilidade. O meu objetivo não é justificar ou condenar Israel nesta matéria, estou interessado noutra coisa.

A atuação de Israel é terrível. As tropas israelenses já mataram cerca de 22 000 pessoas em Gaza. Estes números do Ministério da Saúde de Gaza não suscitam dúvidas. No passado, como salienta a publicação do jornal centrista ocidental The Economist, os seus números sobre as vítimas dos ataques aéreos israelenses foram exatos e confirmados por instituições internacionais independentes. Não há dúvida de que uma grande parte dos mortos são civis. Mesmo de acordo com os números israelenses, certamente inflacionados (como é sempre o caso em tempos de guerra), Israel matou 9000 combatentes do Hamas, o que significa que 13.000 dos mortos eram civis. As autoridades israelenses falam abertamente sobre o combate a “animas humanos” (chefe do Ministério da Defesa, Yoav Galant), sobre a inocência dos civis palestinos que merece ser questionada (presidente israelense, Yitzhak Herzog) e discutem abertamente os planos de deportação de palestinos.

Por outro lado, o Hamas tomou 22 centros populacionais israelenses em 7 de outubro e manteve-os durante vários dias. Durante esse período, os militantes mataram cerca de 1.200 israelenses, dos quais apenas 300 eram militares, e raptaram outras 240 pessoas, incluindo crianças e idosos doentes. Se os crimes de Israel são genocídio, as ações do Hamas devem ser consideradas como tal?

É provável que as partes debatam esta questão, procurando atirar lama umas às outras, lama essa que já têm espalhada.

O conceito de “genocídio” foi desenvolvido no final da Segunda Guerra Mundial, quando as potências vencedoras sentiram a necessidade de perseguir os derrotados do conflito – os altos responsáveis do Terceiro Reich, culpados de crimes terríveis.

De acordo com a sua definição, o “genocídio” está inteiramente relacionado com a intenção explícita de exterminar, parcial ou totalmente, determinados grupos, nações ou etnias.

Tem sido frequentemente ignorado por vários governos, incluindo alguns dos que aderiram às convenções pertinentes que o consagram como um elemento previsto pelos sistemas de direito internacional. Mas, para além disso, a sua aplicação tem conduzido frequentemente a contradições com a moral universal que parece encarnar.

Suponhamos que amanhã o Governo brasileiro tenha a ideia de transformar todas as terras da Amazónia em pastagens. Tal acontecimento, em relação aos povos indígenas que aí vivem, teria as mesmas consequências que o chamado “genocídio”, mas não seria qualificado como tal pelo direito internacional, uma vez que não há aqui uma intenção clara de matar os povos indígenas da bacia amazónica.

Teoricamente, as classes dominantes nem sequer se oporiam ao salvamento destes povos indígenas, se fosse possível e não demasiado dispendioso. Mas, em muitos casos, o resgate é impossível devido à falta de contato de alguns grupos, ao seu afastamento das práticas sociais da civilização moderna, da alimentação, das ocupações, dos costumes, etc.

Neste caso, a morte de grupos étnicos inteiros não seria um objetivo, mas uma consequência da crueldade e da negligência criminosa das forças que administram o projeto.

Assim, verifica-se que a definição (“genocídio”) não serve para mais nada senão para dar aos grupos dirigentes de diferentes Estados um pretexto para se condenarem mutuamente nos seus intermináveis conflitos violentos.

Na nossa opinião, basta demonstrar que houve massacres para os condenar. Não é necessário fazer mais reservas. Se discordar, tudo bem, mas a questão é a seguinte: o assassínio em massa de pessoas torna-se menos hediondo, ou seja, o grau de vergonha e de condenação diminui, a partir da intenção de exterminar ou da falta dela? Por exemplo, o desenvolvimento do capitalismo nascente nas Américas não poupou os povos do oeste do continente africano, que foram escravizados e até atirados para morrer no mar. 12,5 milhões de pessoas foram transportadas para as colônias nas Américas. O número de mortos por este transporte situa-se entre 1 e 2 milhões (há outras estimativas que apontam para um maior número de escravos transportados e uma maior percentagem de mortos). Ao mesmo tempo, não podemos dizer que os traficantes de escravos tinham a intenção de exterminar os africanos, porque o capitalismo, na sua versão escravocrata, exigia que estivessem vivos para trabalhar. Os proprietários não queriam matar os escravos porque queriam vendê-los para obter lucro, ou seja, não podiam ter uma intenção clara de matar os africanos escravizados. As suas mortes resultaram mais da negligência, dos maus tratos e da economia do transporte de escravos que eram mantidos nos porões em condições desumanas.

A questão que se coloca é a seguinte: o assassínio em massa de judeus durante a Segunda Guerra Mundial é um crime mais ou menos grave? Pessoalmente, fico estupefato com o raciocínio subjacente a uma coisa destas: como é que um crime monstruoso de enormes proporções pode ser comparado com outro, igualmente enorme e hediondo, para o definir como menos ou mais hediondo? Em que escala é que essas comparações devem ser feitas e porque é que são necessárias? Não estou a falar do facto de a escravização de 12,5 milhões de pessoas (repito, segundo outras estimativas, o número de africanos vendidos como escravos foi muito superior) ser em si um crime impensável, um dos mais hediondos da história da humanidade.

Entretanto, o termo “genocídio” já está presente na nossa língua como o crime mais grave e derradeiro. O assassínio de africanos é, evidentemente, um crime terrível, mas não é um genocídio”. Este “ainda não é genocídio” implica muitas vezes que o que aconteceu “não é assim tão horrível” e surge em diversas variações, incluindo discussões intermináveis sobre as intenções ou os motivos das partes.

No entanto, as intenções e os motivos são algo bastante subjetivo e difícil de provar, porque não se pode entrar na cabeça de outra pessoa. E, a menos que exista um documento assinado pelo governo que indique claramente os planos para exterminar um grupo étnico, religioso ou racial, é muito difícil provar o genocídio. É então relevante discutir porque é que os mesmos acontecimentos podem ser considerados genocídio em alguns países e não noutros, e que interesses estão por detrás disso.

Talvez a questão principal não seja saber qual dos massacres foi mais hediondo do que o outro. Trata-se apenas de os comparar em termos de escala e de sadismo. E isso é necessário para compreender as razões materiais e ideológicas que levam muitos setores da sociedade a justificar tais crimes e, pior ainda, a aderir às campanhas dos Estados para levar a cabo massacres.

Esta crítica ao conceito de genocídio e à sua utilidade não é uma questão inventada por nós ou colhida no puro éter. Em parte, esta crítica é partilhada por juristas que tentaram defender a tese do genocídio em diversas situações. Sublinham a estreiteza do conceito de “genocídio”, tendo em conta a quase total impossibilidade de provar a prática intencional de tais atos.

Assim, o conceito de “genocídio” tem uma particularidade importante. Na nossa língua, é frequentemente (embora não necessariamente) considerado como o crime mais grave. Como tal, é também definido pelo direito internacional. Por exemplo, é frequente ouvir dizer que, a propósito de um acontecimento terrível que provocou a morte em massa de pessoas, se diz: “Sim, trata-se de um sistema criminoso ou de decisões criminosas dos dirigentes, mas “ainda não é genocídio”, porque o governo (empresa, organização, grupo) não tinha uma intenção clara e evidente de matar representantes de um determinado grupo localizado por princípios étnicos, nacionais, raciais ou religiosos. Pode ter havido negligência criminosa, etc., mas é extremamente difícil provar a intenção de matar, porque as intenções e os motivos são o domínio mais obscuro e as conclusões neste domínio são frequentemente arbitrárias.

E depois surge a questão seguinte: para que é que contribui esta categoria – “genocídio” – que, como já descobrimos, é bastante vaga e quase arbitrária?