Bolsonarismo e Fascismo – Carvalho Filho

[ARTIGOS DE OPINIÃO]

Bolsonaristas fazem saudação nazista em São Miguel do Oeste (SC)
Reprodução / Twitter

“A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa” (Marx, 1852).

“Bem unidos façamos, nesta luta final, uma terra sem amos, a internacional!” (Pottier; Degeyter, 1871/1888).

O governo de Jair Bolsonaro, que esteve à frente do Brasil entre 2019 e 2022, foi frequentemente rotulado como “fascista” por diversos setores políticos, o que exige uma análise crítica e cuidadosa. Este artigo tem como objetivo esclarecer essas atribuições equivocadas, evitando simplificações e distorções. Embora reconheça que essa análise pode parecer prematura, acredito que ela oferece uma contribuição significativa para a compreensão das dinâmicas sociais e políticas daquele período, especialmente no que diz respeito ao papel da classe média e à instrumentalização do termo “fascismo”. Ao longo do texto, buscaremos desmistificar o bolsonarismo, ressaltando suas características e distinções em relação ao fascismo histórico.

É fundamental esclarecer que, nas condições do atual regime de acumulação, o Estado neoliberal subordinado no Brasil torna inviável o surgimento de um movimento político fascista genuíno. Qualquer tentativa de reviver esse fenômeno histórico se apresentaria de forma caricata. Além disso, é importante ressaltar que autoritarismo, conservadorismo e nacionalismo não são necessariamente sinônimos de fascismo; reduzi-los a isso seria uma banalização de um termo já excessivamente utilizado. O fascismo, em sua essência, é uma doutrina nacionalista, expansionista, totalitária e integralista[1], que emerge em contextos sociais e históricos específicos, e não deve ser confundido com as manifestações políticas contemporâneas que, embora autocráticas[2], não se encaixam nesse conceito.

Para entender o fascismo, é crucial identificar suas características fundamentais. Apresento uma síntese das reflexões de Nildo Viana, expostas em um episódio do programa “Crítica Desapiedada”, intitulado “O Que é Fascismo?”. O fascismo, enquanto expressão política, surge da confluência entre a burguesia e a burocracia, caracterizando-se pela fusão da burocracia partidária com a estatal. Essa combinação resulta em um governo permanente, que se distingue dos regimes democráticos.

A doutrina fascista caracteriza-se por um nacionalismo exacerbado, intensificado após a Primeira Guerra Mundial, no qual a nação se torna o eixo central. Além disso, o nacionalismo fascista apresenta um caráter expansionista, servindo aos interesses imperialistas e à ampliação do capital, sob a pressão do Estado em relação ao capital oligopolista. Por essa razão, o fascismo não pode se estabelecer — além de indivíduos e grupos minoritários — como um regime de Estado em nações submetidas ao imperialismo, até que essas nações consigam transcender tais condições de subordinação.

Na Alemanha e na Itália, a severa crise econômica levou à valorização do capital bélico como estratégia de recuperação, resultando na ascensão de regimes de acumulação bélico. Inimigos imaginários surgiram, como os judeus para os nazistas e nações rivais para o regime italiano, alimentando ressentimentos e ódios, que serviram como ferramentas para o controle social da população. O integralismo, uma faceta do fascismo, buscou integrar ativamente a população por meio de movimentos, partidos e organizações, promovendo uma identidade nacional homogênea. Juntamente com o totalitarismo, que se manifestou na total integração dos indivíduos à ideologia do Estado, moldando as consciências desde a infância até a vida adulta e perpetuando a doutrina fascista em todos os aspectos da vida cotidiana.

Essas características — nacionalismo, integralismo e totalitarismo — tomam como objetivo assegurar a unidade nacional em tempos de guerra, sustentando um regime de acumulação bélico que não poderia se manter sem essas bases. O nacionalismo exacerbado promove a ideia de uma nação unida contra inimigos internos e externos, enquanto o integralismo busca a mobilização da população em torno de uma identidade comum. Por sua vez, o totalitarismo garante que todas as esferas da vida social e individual estejam subordinadas à ideologia do Estado, criando um ambiente propício para a manutenção do poder e a perpetuação do regime.

Para esclarecer as relações sociais e econômicas que sustentam as formas políticas de sociedade, é pertinente considerar a análise de Marx sobre a produção social. Ele afirma que “na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência” (Marx, 1996, p. 3). Então, em um regime fascista, a consciência individual emerge de acordo com as determinações do regime de acumulação bélico que o caracteriza.

Agora, vamos analisar se o “bolsonarismo” — que não se configura como uma doutrina ou ideologia no sentido estrito — se alinha aos critérios do fascismo. Como mencionado anteriormente, uma das características fundamentais do fascismo é o nacionalismo expansionista, que geralmente se observa em contextos de imperialismo. Exemplos de nações imperialistas incluem os Estados Unidos, a China, a Rússia e o Reino Unido. O Brasil, por sua vez, possui uma burguesia reduzida e subordinada a esses interesses imperialistas, o que o impede de se encaixar nesse perfil. O nacionalismo “bolsonarista” se revela, na verdade, como um mero discurso, uma vez que seus principais representantes estão mais alinhados com os interesses do capitalismo internacional. Logo, o “bolsonarismo” se aproxima muito mais de um “conservantismo” que se alia ao liberalismo por questões eleitorais do que de um fascismo propriamente dito.

Assim, nos deparamos com a intrigante realidade do “bolsonarismo”, que se revela muito mais como um espetáculo retórico do que como uma prática sólida. O ex-presidente Jair Bolsonaro, em sua trajetória antes, durante e após o governo, optou por um desfile de absurdos que se assemelham a um show aplaudido por uma plateia de descontentes com os governos social-liberais anteriores. Para muitos, ele se tornou uma figura messiânica que prometia extirpar a corrupção de seus antecessores — uma verdadeira peça de teatro onde, sob o véu da polarização entre conservadores e progressistas, ele se mostrou um continuador das políticas de seus predecessores.

Jair Bolsonaro, como qualquer indivíduo, é um reflexo das relações sociais que o determinaram, representando um conservador típico da classe média brasileira. Essa classe, predominante e reprodutora das ideologias capitalistas, atua como uma massa de manobra que legitima e intensifica o papel do Estado contra a classe trabalhadora. Embora essa relação possa, em determinadas circunstâncias, impulsionar a ascensão de movimentos autocráticos, é importante entender que o papel da classe média — que busca preservar a estrutura existente — precede a doutrina fascista. Assim, o “bolsonarismo” emerge, de forma simplificada, como um subproduto do conservadorismo, e não como uma manifestação direta do fascismo.

Entretanto, a humanidade só se dispõe a enfrentar desafios quando as condições materiais para sua solução já existem. Nesse sentido, Bolsonaro e os grupos que o apoiam se viram na necessidade de tecer uma narrativa de um passado glorioso e idealizado, desprovido das “deformações da atualidade”. Essa construção de um ideal nostálgico emerge como uma estratégia para mobilizar a população em torno de valores que prometem segurança e estabilidade em tempos de incerteza. E que maneira mais eficaz de alcançar isso do que se tornar o parodiador do antigo regime militar brasileiro (1964-1985), que ele tanto enalteceu? Ao se apropriar da iconografia e da retórica militarista, Bolsonaro não apenas buscou legitimar sua própria agenda política, mas também apelou a um profundo sentimento de pertencimento entre aqueles que se sentiam ameaçados pelas transformações sociais contemporâneas.

Se o “bolsonarismo” se revela um espetáculo retórico, como mencionado, semelhante à ascensão de outros governos que adotam discursos tradicionalistas e práticas liberais ao redor do mundo, o que, então, significam os eventos de 8 de Janeiro no Brasil? Não se tratou de uma mera articulação entre “bolsonaristas” em sentido estrito, mas sim de uma confluência de conservadores. Isso indica que, embora as massas que apoiam Bolsonaro tenham sido instrumentalizadas por esses grupos, o ex-presidente não é, para esses setores empresariais e burocráticos — sejam militares ou políticos — a figura central.

Na verdade, ele é apenas uma peça nos esquemas de golpe, que se revelam meramente fantasiosos e não se concretizaram devido à sua falta de utilidade para uma parcela da burguesia, cujas demandas já estão sendo atendidas pelo governo Lula. Ademais, a ideia de um golpe contra a “brilhante democracia” brasileira não seria bem recebida pelos países aos quais o Brasil está subordinado. No entanto, “é importante para o lulo-petismo manter o discurso de golpe e fascismo em notoriedade, pois é parte fundamental para sua legitimidade no poder. Afinal, sem um grande inimigo maior, como poderia convencer de que é a melhor opção do momento?” (Alves, 2024).

Atualmente, a influência do “bolsonarismo” persiste, mesmo que tenha enfrentado um desgaste nas suas antigas bases de apoio. Embora alguns políticos busquem se desvincular dessa corrente, isso não sinaliza o fim da aliança entre conservantismo e liberalismo; ao contrário, indica uma reconfiguração, com novas lideranças e estratégias para conquistar o poder estatal. Nas eleições de 2022, um número expressivo de parlamentares foi eleito sob a égide do “bolsonarismo”. Embora se identifiquem como conservadores em um sentido mais amplo, ainda estão imbuídos da influência da figura de Bolsonaro. Assim, essa nova configuração não extingue o “bolsonarismo”, mas o mantém vivo como um símbolo para as novas figuras que o representam.

A pergunta que se impõe é: por que muitos setores políticos recorrem ao termo “fascismo” ao se referirem ao governo Bolsonaro? A resposta é clara: trata-se de uma estratégia de desqualificação de um adversário político e limpeza da imagem negativa do neoliberalismo, insinuando que o “bolsonarismo” representa um desvio moral da boa política, em benefício de suas próprias candidaturas. Ao redirecionar o descontentamento popular para um espantalho, esses setores evitam confrontar as verdadeiras bases do neoliberalismo, que se encontram intrinsecamente ligadas à atual fase do capitalismo, bases essas que eles mesmos perpetuam. Essa manobra permite que o sistema permaneça intocado, enquanto um governo é responsabilizado por todos os males, desviando a atenção das estruturas de poder que sustentam a opressão. Assim, esses setores políticos têm a oportunidade de ascender ou se manter no poder estatal.

Diante da crescente insatisfação da população, surge a questão: não seria mais conveniente para esses setores afastar Bolsonaro do cenário político e apresentá-lo como uma ameaça aos “princípios” democráticos do Estado? Isso coloca governos como o de Lula na posição de representantes legítimos do Estado. Na prática, observa-se que setores progressistas defendem a “democracia” como um valor a ser protegido em nome do combate à suposta ameaça fascista, enquanto o governo federal avança com projetos burgueses sem grandes protestos. Dessa forma, reflete-se que os interesses eleitorais prevalecem sobre as demandas das classes subordinadas, evocando a máxima de que, para manter o controle, é preciso “dividir para conquistar”.

Ainda que os progressistas almejem a tão sonhada maioria no Congresso — algo que, por ora, considero uma possibilidade remota, devido a uma série de fatores, como a influência do aparato financeiro e a incessante propaganda da burguesia, que se empenha em eleger candidatos que melhor defendam seus interesses, além da nossa esquerda progressista, que se mostra acomodada e desmobilizada — e que, na ausência dessa maioria, utilizem essa situação como justificativa para as ações do atual governo em nome da governabilidade, o Estado permanece como o balcão de negócios da burguesia, perpetuando a hegemonia do capital. Se, por ventura, essa maioria se concretizar, a reação da burguesia transnacional será inevitável. Na configuração de tal Estado, que visa preservar os interesses do capitalismo, qualquer tentativa de tomá-lo se constituiria apenas em uma nova forma de manutenção do capital. Portanto, a abolição do capital só poderá ser alcançada com a extinção do próprio Estado, como demonstram as revoluções verdadeiramente proletárias em suas manifestações práticas.

Concluo que o ponto de partida para a luta revolucionária, no cenário contemporâneo, reside na firme rejeição da política institucional. Apoiar essa política enquanto se defende a luta proletária é uma contradição flagrante, pois uma anula a outra. Deste modo, a luta política revolucionária deve ter como objetivo a destruição das relações sociais atuais de dominação e exploração, sem se deixar enganar pelos discursos que giram em torno do suposto “fascismo” ou, em seu oposto, a democracia burguesa. Aqueles que legitimam a política institucional somente contribuem com a existência da miséria atual e de sua perpetuação.

Referências Bibliográficas

ALVES, Hugo. 8 de janeiro e as faces do capital. Crítica Desapiedada, janeiro de 2024. Disponível em: https://criticadesapiedada.com.br/8-de-janeiro-e-as-faces-do-capital-hugo-alves/. Acesso em: 10 ago. 2024.

MARX, Karl. Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. Publicado originalmente em 1852. Edição digital de Nelson Jahr García. Ridendo Castigat Moraes. Disponível em: www.jahr.org. Acesso em: 31 Jul. 2024

MARX, Karl. Para a crítica da economia política; O Capital; O rendimento e suas fontes. São Paulo – SP: Editora Nova Cultura Ltda, 1996.

POTTIER, Eugène; DEGEYTER, Pierre. A Internacional. Composição: 1871; Música: 1888. Tradução de Neno Vasco. Disponível em: https://youtu.be/unkpIn9QmYg?si=caAG62rOUenhf-5r. Acesso em: 17 jun. 2022.

VIANA, Nildo. O que é fascismo? Crítica Desapiedada. Publicado em: 6 jan. 2021. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/0vb8CJy3JM7KAjDbswPefl?si=GsSco0RYR7uZidX_1wLYUw. Acesso em: 10 ago. 2024.


[1] O termo “integralista” utilizado neste contexto não possui relação com o movimento político integralista no Brasil, que, embora tenha inspiração no nazifascismo, constitui um movimento político com suas particularidades, inserindo-se nas manifestações políticas reacionárias.

[2] O autocratismo e a democracia são formas distintas de organização da burocracia estatal. Enquanto a democracia se fundamenta na legitimidade das eleições, conferindo à população o poder de escolher seus burocratas governamentais temporários, ela emerge em contextos de estabilidade econômica e política. Em contrapartida, a autocracia centraliza o poder nas mãos de um único líder ou de um grupo restrito de burocratas, recorrendo à força e à repressão para assegurar a ordem, especialmente em tempos de instabilidade econômica e política.

1 Comentário

  1. The merit of this article is to denounce anti-fascism as a bourgeois ideology defending the democratic mystification. However, the enormous theoretical weakness of the article, allows – amongst others – another bourgeois mystification, very influential in Latin America: the ‘Leninist’ definition of imperialism as the policy of dominant capitalist states against weaker capitalist states. Against this, we should confirm that f.e. both Brazil and the USA, both the factions of Bolsenaro and Lula are imperialist, that is they defend policies that aim at gaining the most of the redivision of the world in capitalist spheres of influence.

Faça um comentário

Seu e-mail não será publicado.


*