Publicado em C.F.D. T. Aujourd’hui, n. 8 (julho-agosto de 1974). Escrito em colaboração com Daniel Mothé.
Vivemos numa sociedade cuja organização é hierárquica, seja no trabalho, na produção, na empresa; ou na administração, na política, no Estado; ou ainda na educação e na pesquisa científica. A hierarquia não é uma invenção da sociedade moderna. Suas origens remontam a um tempo muito distante – se bem que ela não tenha existido sempre e que tenha havido sociedades não-hierarquizadas que funcionaram muito bem. Mas na sociedade moderna o sistema hierárquico (ou, o que é quase a mesma coisa, burocrático) tornou-se praticamente universal. Desde que haja uma atividade coletiva qualquer ela se organiza segundo o princípio hierárquico e a hierarquia do comando e do poder coincide cada vez mais com a hierarquia dos salários e dos rendimentos. De modo que as pessoas quase não conseguem imaginar que poderia ser diferente, e que elas mesmas poderiam ser alguma coisa definida de outra maneira que não fosse pela posição que ocupam na pirâmide hierárquica.
Os defensores do atual sistema tentam justificá-lo como o único “lógico”, “racional”, “econômico”. Já se tentou mostrar que estes “argumentos” não valem nada e não justificam nada, que tomados separadamente são falsos e quando considerados em conjunto são contraditórios[1]. Teremos ainda a oportunidade de voltar a isso mais adiante. Mas apresenta-se também o sistema atual como sendo o único possível, supostamente imposto pelas necessidades da produção moderna, pela complexidade da vida social, a grande escala de todas as atividades etc. Tentaremos mostrar que não é nada disso, e que a existência de uma hierarquia é radicalmente incompatível com a autogestão.
Autogestão e hierarquia do comando
A decisão coletiva e o problema da representação
o que significa, socialmente, o sistema hierárquico? Que uma categoria da população dirige a sociedade e que os outros não fazem outra coisa senão executar suas decisões; e ainda, que esta categoria, recebendo remunerações mais elevadas, aproveita da produção e do trabalho da sociedade muito mais que os outros. Em poucas palavras, que a sociedade está dividida entre uma classe que dispõe do poder e dos privilégios e o resto que se acha privado deles. A hierarquização – ou a burocratização – de todas as atividades sociais hoje é apenas a forma, cada vez mais preponderante, da divisão da sociedade.
Sendo assim, torna-se ridículo perguntar-se: a autogestão, o funcionamento e a existência de um sistema social autogerido é compatível com a continuidade da hierarquia? Da mesma forma, perguntar-se se a supressão do atual sistema penitenciário é compatível com a continuidade dos guardas de prisão, dos chefes dos guardas e dos diretores de prisão. Mas, como se sabe: o que é evidente sem que se diga é mais evidente ainda se for dito. Tanto mais que, há milhares de anos, faz-se incutir nas mentes das pessoas, desde sua mais tenra idade, a idéia de que é “natural” que alguns mandem e outros obedeçam, que alguns tenham demais e outros não tenham o mínimo necessário.
Queremos uma sociedade autogerida. O que isto quer dizer? Uma sociedade que se gere, isto é, dirige a si mesma. Mas isto ainda deve ser precisado. Uma sociedade autogerida é uma sociedade onde todas as decisões são tomadas pela coletividade que é, a cada vez, concernida pelo objeto dessas decisões. Isto é, um sistema onde aqueles que realizam uma atividade decidem coletivamente o que devem fazer e como fazê-lo nos limites exclusivos que lhes traçar sua coexistência com outras unidades coletivas. Desta forma, decisões que dizem respeito aos trabalhadores de uma oficina devem ser tomadas pelos trabalhadores dessa oficina; aquelas que se referem a outras oficinas ao mesmo tempo, pelos respectivos trabalhadores ou pelos delegados eleitos e revogáveis; aquelas que dizem respeito a toda a empresa, por todo o pessoal da empresa; aquelas que se referem ao bairro, pelos moradores desse bairro, e aquelas que dizem respeito a toda a sociedade, pela totalidade dos homens e das mulheres que nela vivem.
Mas o que significa decidir?
Decidir é decidir por si mesmo. Não é deixar a decisão para as “pessoas competentes”, submetidas a um vago “controle”. Também não é designar pessoas para decidir. Não é porque a população francesa designa a cada cinco anos aqueles que farão as leis que ela faz as leis. Não é porque ela designa a cada sete anos aquele que decidirá sobre a política do país que ela própria decide sobre esta política. Ela não decide, ela aliena seu poder de decisão a “representantes” que, por esta mesma razão, não são nem podem ser seus representantes. Certamente, a designação de representantes, ou de delegados, pelas diversas coletividades, como também a existência de organismos – comitês ou Conselhos – formados por tais delegados será, numa quantidade enorme de casos, indispensável. Mas ela só será compatível com a autogestão se esses delegados realmente representarem a coletividade de onde procedem, e isto implica que permaneçam submetidos a seu poder. O que significa, por sua vez, que. a coletividade não somente os elege, mas também que pode destituí-los sempre que julgar necessário.
Consequentemente, dizer que existe uma hierarquia de comando formada por “pessoas competentes” e em princípio inamovíveis; ou dizer que existem “representantes” inamovíveis para um certo período (e que, como a experiência o demonstra, tornam-se praticamente inamovíveis para sempre) é dizer que não existe nem autogestão, nem mesmo “gestão democrática”. O que na realidade equivale a dizer que a coletividade é dirigida por pessoas cuja direção dos negócios comuns se tornou a partir deste momento um negócio especializado e exclusivo, e que, de direito e de fato, escapam ao poder da coletividade.
Decisão coletiva, formação e informação
Por outro lado, decidir é decidir com conhecimento de causa. Não será mais a coletividade quem decidirá, mesmo se “votar” formalmente, se alguém ou alguns dispuserem sozinhos das informações e definirem os critérios a partir dos quais uma decisão é tomada. Isto significa que aqueles que decidem devem dispor de todas as informações pertinentes. Mas também que eles mesmos podem definir os critérios a partir dos quais decidem. E que, para fazer isso, dispõem de uma formação cada vez mais ampla. Ora, uma hierarquia do comando implica que aqueles que decidem possuam – ou antes, pretendam possuir – o monopólio das informações e da formação e, em todo caso, que eles possuam um acesso privilegiado a elas. A hierarquia baseia-se neste fato, e tende constantemente a reproduzi-lo. Pois, numa organização hierárquica, todas as informações sobem da base à cúpula e não retornam, nem circulam (na realidade, elas circulam, mas contra as regras da organização hierárquica). Do mesmo modo: todas as decisões descem da cúpula à base, que não faz outra coisa senão executá-las. Isto é quase o mesmo que dizer que existe hierarquia do comando, e que estas duas circulações se fazem cada uma num único sentido: a cúpula coleta e absorve todas as informações que sobem para ela, e aos executantes só retransmite o mínimo necessário à execução das ordens que lhes dá e que procedem somente dela. Numa tal situação, é absurdo pensar que poderia haver autogestão, ou mesmo “gestão democrática”.
Como se pode decidir, se não se dispõe das informações necessárias para decidir bem? E como se pode aprender a decidir se a gente está sempre limitada a executar o que os outros decidiram? Desde que se instaura uma hierarquia do comando, a coletividade torna-se opaca a si mesma, e introduz-se um enorme desperdício. Ela se torna opaca porque as informações ficam retidas na cúpula. Introduz-se um desperdício porque os trabalhadores, não informados ou mal informados, não sabem o que deveriam saber para executar sua tarefa, e sobretudo porque as capacidades coletivas de se dirigirem, como também a inventividade e a iniciativa, formalmente reservadas à direção, são entravadas e interrompidas em todos os níveis.
Portanto, querer a autogestão – ou mesmo a “gestão democrática”, se a palavra democracia não for utilizada simplesmente para fins decorativos – e querer manter uma hierarquia da direção é uma contradição nos termos. Seria muito mais coerente, no plano formal, dizer, como o fazem os defensores do sistema atual: a hierarquia da direção é indispensável, portanto, não pode haver sociedade autogerida.
Só que isto é falso. Quando se examinam as funções da hierarquia, isto é, para que ela serve, constata-se que, para uma grande parte, elas só possuem sentido e só existem em função do atual sistema social, e que as outras, aquelas que conservassem um sentido e uma utilidade no sistema social autogerido, poderiam ser facilmente coletivizadas. Não podemos discutir, nos limites deste texto, a questão em toda a sua extensão. Tentaremos esclarecer alguns de seus aspectos importantes, reportando-nos sobretudo à organização da empresa e da produção.
Uma das funções mais importantes da hierarquia atual é a de organizar a coerção. No trabalho, por exemplo, quer se trate das oficinas ou dos escritórios, uma parte essencial da “atividade” do aparelho hierárquico, desde os chefes de equipe até a direção, consiste em vigiar, controlar, sancionar, impor direta ou indiretamente a “disciplina” e a execução correta das ordens recebidas por aqueles que devem executá-las. E por que é preciso organizar a coerção, por que é preciso que haja coerção? Porque os trabalhadores em geral não manifestam espontaneamente um entusiasmo excessivo para fazer o que a direção quer que eles façam. E por que isto? Porque nem o seu trabalho nem o seu produto lhes pertencem, porque se sentem alienados e explorados, porque eles próprios não decidiram o que devem fazer e como fazê-lo, nem o que será feito daquilo que eles produziram; numa palavra, porque existe um conflito perpétuo entre aqueles que trabalham e aqueles que dirigem o trabalho dos outros e se aproveitam disso. Em suma, portanto: é preciso que haja hierarquia para organizar a coerção – e é preciso que haja coerção porque existe a divisão e o conflito, isto é, também, porque existe hierarquia.
De forma mais geral, apresenta-se a hierarquia como se ela estivesse ali para resolver conflitos, mascarando-se o fato de que a própria existência da hierarquia é causa de um conflito perpétuo. Pois, enquanto houver um sistema hierárquico, haverá, por esta mesma razão, renascimento contínuo de um conflito radical entre uma categoria dirigente e privilegiada e as outras categorias, reduzidas a papéis de execução.
Diz-se que se não houver coerção não haverá nenhuma disciplina, cada um fará o que bem entender e será o caos. Mas este é mais um sofisma. A questão não é a de saber se é necessária a disciplina ou às vezes mesmo a coerção, mas qual disciplina, decidida por quem, controlada por quem, sob que formas e para quais fins. Quanto mais os fins a que serve uma disciplina forem estranhos às necessidades e aos desejos daqueles que devem realizá-los, mais as decisões que dizem respeito a estes fins e às formas da disciplina lhe serão exteriores e mais haverá a necessidade de coerção para fazê-los respeitar.
Uma coletividade autogerida não é uma coletividade sem disciplina, mas uma coletividade que decide, ela mesma, sobre a sua disciplina e, se for o caso, sobre as sanções contra aqueles que a quebram deliberadamente. No que concerne ao trabalho, em particular, não se pode discutir seriamente a questão apresentando a empresa autogerida como rigorosamente idêntica à empresa contemporânea sem a carapaça hierárquica. Na empresa contemporânea, impõe-se às pessoas um trabalho que lhes é estranho e sobre o qual elas não têm nada a dizer. O surpreendente não é que elas se oponham a isso, mas que não se oponham muito mais do que o fazem. Não se pode acreditar um só instante que sua atitude em relação ao trabalho permaneceria a mesma quando sua relação com seu trabalho se transformar e elas começarem a se tornar os mestres. Por outro lado, mesmo na empresa contemporânea, não existe uma disciplina, mas duas. Existe a disciplina que o aparelho hierárquico tenta impor constantemente através da coerção e de sanções financeiras e outras. E existe a disciplina, muito menos aparente, porém não menos forte, que surge no interior dos grupos de trabalhadores de uma equipe ou de uma oficina e que faz por exemplo com que nem aqueles que trabalham demais nem aqueles que trabalham pouco sejam tolerados. Os grupos humanos nunca foram e nunca são conglomerados caóticos de indivíduos movidos unicamente pelo egoísmo e em luta uns contra os outros, como querem fazer acreditar os ideólogos do capitalismo e da burocracia, que desta forma não exprimem outra coisa senão sua própria mentalidade. Nos grupos, e em particular naqueles que se acham ligados a uma tarefa comum permanente, surgem sempre normas de comportamento e uma pressão coletiva que os faz respeitar.
Autogestão, competência e decisão
Passemos agora à outra função essencial da hierarquia, que aparece como independente da estrutura social contemporânea: as funções de decisão e de direção. A questão que se coloca é a seguinte: por que as coletividades interessadas não poderiam realizar elas mesmas esta função, dirigir a si mesmas e decidir por si mesmas, por que seria necessário que houvesse uma categoria particular de pessoas, organizadas num aparelho à parte, para decidir e dirigir? A esta questão, os defensores do sistema atual apresentam dois tipos de respostas. Uma apoia-se na invocação do “saber” e da “competência”: é preciso que aqueles que sabem, ou aqueles que são competentes, decidam. A outra afirma, com palavras mais ou menos encobertas, que é preciso de- qualquer forma que alguns decidam, porque de outra forma seria o caos, em outras palavras, porque a coletividade seria incapaz de dirigir a si mesma.
Ninguém contesta a importância do saber e da competência, nem, sobretudo, o fato de que hoje um certo saber e uma certa competência estão reservados a uma minoria. Mas, aqui ainda, estes fatos só são invocados para cobrir sofismas. Não são aqueles que sabem mais ou que têm mais competência em geral que dirigem no sistema atual. Aqueles que dirigem são aqueles se mostraram capazes de subir no aparelho hierárquico, ou aqueles que, em função de sua origem familiar e social, foram desde o início encaminhados para ele, após a obtenção de alguns diplomas. Nos dois casos, a “competência” exigida para se manter ou para subir no aparelho hierárquico se relaciona muito mais com a capacidade de defender-se e de vencer na concorrência a que se entregam indivíduos, grupos e clãs no seio do aparelho hierárquico-burocrático, do que com a aptidão a dirigir um trabalho coletivo. Em segundo lugar, não é porque alguém ou alguns possuem um saber ou uma competência técnica ou científica que a melhor maneira de utilizá-los é confiar-lhes a direção de um conjunto de atividades. Pode-se ser um excelente engenheiro na sua especialidade sem por isso ser capaz de “dirigir” o conjunto de um departamento de uma fábrica. De resto, só temos de constatar o que se passa atualmente a este respeito. Técnicos e especialistas em geral são confinados em seu domínio particular. Os “dirigentes” cercam-se de alguns conselheiros técnicos, recolhem suas opiniões sobre as decisões a tomar (opiniões que frequentemente divergem entre si) e finalmente “decidem”. Vê-se claramente aqui o absurdo do argumento. Se o “dirigente” decidisse em função de seu “saber” e de sua “competência”, ele deveria ser sábio e competente a respeito de tudo, quer diretamente, quer para decidir, entre as opiniões divergentes dos especialistas, qual é a melhor. Isto evidentemente é impossível, e os dirigentes na realidade decidem arbitrariamente em função de seu “julgamento”. Ora, este “julgamento” de um só não possui nenhuma razão de ser mais válido do que o julgamento que se formaria numa coletividade autogerida a partir de uma experiência real infinitamente maior do que a de um só indivíduo.
Autogestão, especialização e racionalidade
Saber e competência são por definição especializados e se tomam mais a cada dia que passa. Fora de seu domínio especial, o técnico ou o especialista não é mais capaz do que em qualquer outro de tomar uma boa decisão. Mesmo no interior de seu campo particular, aliás, seu ponto de vista é fatalmente limitado. De um lado, ele ignora os outros campos, que estão necessariamente em interação com o seu, e tende naturalmente a negligenciá-los. Desta forma, tanto nas empresas quanto nas administrações atuais, a questão da coordenação “horizontal” dos serviços de direção é um. perpétuo pesadelo. Chegou-se, de um longo tempo para cá, a criar especialistas da coordenação para coordenar as atividades dos especialistas da direção – que se mostram assim incapazes de dirigir a si mesmos. De um outro lado, e sobretudo, os especialistas colocados no aparelho de direção estão por isto mesmo separados do processo real de produção, do que se passa lá, das condições nas quais os trabalhadores devem efetuar o seu trabalho. Na maior parte do tempo, as decisões tomadas pelas administrações, após cálculos complicados, perfeitas no papel, revelam-se inaplicáveis enquanto tais, pois não levaram suficientemente em conta as condições reais nas quais elas terão de ser aplicadas. Ora, estas condições reais, por definição, somente a coletividade dos trabalhadores as conhece. Todo mundo sabe que este fato, nas empresas contemporâneas, é uma fonte de conflitos perpétuos e de um desperdício imenso.
Em contrapartida, saber e competência podem ser racionalmente utilizados se aqueles que os possuírem mergulharem na coletividade dos produtores, se se transformarem numa das componentes das decisões que esta coletividade tiver de tomar. A autogestão exige a cooperação entre aqueles que possuem um saber ou uma competência particulares e aqueles que assumem o trabalho produtivo no sentido estrito. Ela é totalmente incompatível com uma separação destas duas categorias. Somente se uma tal cooperação se instaurar este saber e esta competência poderão ser plenamente utilizados; enquanto que, hoje, eles só são utilizados numa pequena parte, já que aqueles que os possuem são confinados a tarefas limitadas, estreitamente circunscritas pela divisão do trabalho no interior do aparelho de direção. Sobretudo, só esta cooperação pode garantir que saber e competência serão efetivamente colocados a serviço da coletividade, e não de fins particulares.
Poderia uma tal cooperação desenrolar-se sem que aparecessem conflitos entre os “especialistas” e os outros trabalhadores? Se um especialista afirmar, a partir de seu saber especializado, que tal metal, porque possui tais propriedades, é o mais indicado para tal ferramenta ou tal peça, não se verá por que e a partir do que isto poderia suscitar objeções gratuitas por parte dos operários, Mesmo neste caso, aliás, uma decisão racional exige que os operários não fiquem estranhos a ela – por exemplo, porque as propriedades do material escolhido desempenham um papel durante a fabricação das peças ou das ferramentas. Mas as decisões realmente importantes que se referem à produção comportam sempre uma dimensão essencial relativa ao papel e ao lugar dos homens na produção. Sobre isto, não existe – por definição – nenhum saber e nenhuma competência que possa colocar-se acima da opinião daqueles que realmente tiverem de realizar o trabalho. Nenhuma organização de uma linha de fabricação ou de montagem poderá ser racional ou aceitável se tiver sido decidida sem levar em conta a opinião daqueles que lá trabalharão. Por não as levarem em consideração, tais decisões são atualmente quase sempre capengas, e se mesmo assim a produção funciona, é porque os operários se organizam entre si para fazê-la funcionar, transgredindo as regras e as instruções “oficiais” sobre a organização do trabalho. Mas mesmo se as considerarmos “racionais” do ponto de vista estreito da eficácia produtiva, estas decisões serão inaceitáveis precisamente porque são, e só podem ser, exclusivamente baseadas no princípio da “eficácia produtiva”. Isto quer dizer que elas tendem a subordinar integralmente os trabalhadores ao processo de fabricação, e a tratá-los como peças do mecanismo produtivo. Ora, isto não se deve à maldade da direção, à sua imbecilidade, nem mesmo simplesmente à busca do lucro. (Como prova de que a “Organização do trabalho” é rigorosamente a mesma nos países do Leste e nos países ocidentais.) É a consequência direta e inevitável de um sistema onde as decisões são tomadas por outros que não aqueles que irão realizá-las; um tal sistema não pode ter uma outra “lógica”.
Mas uma sociedade autogerida não pode seguir esta “lógica”. Sua lógica é totalmente outra, é a lógica da liberação dos homens e de seu desenvolvimento. A coletividade dos trabalhadores pode muito bem decidir – e, na nossa opinião, teria razão de fazê-lo – que, para ela, jornadas de trabalho menos árduas, menos absurdas, mais livres e mais felizes sejam infinitamente preferíveis a ter algumas coisinhas a mais compradas no camelô. E, para tais escolhas, absolutamente fundamentais, não existe nenhum critério “científico” ou “objetivo” que valha: o único critério é o julgamento da própria coletividade sobre o que ela prefere, a partir de sua experiência, de suas necessidades e de seus desejos.
Isto é verdadeiro para toda a sociedade. Nenhum critério “científico” permite a quem quer que seja decidir que é preferível para a sociedade ter no próximo ano mais lazer do que mais consumo ou o inverso, um crescimento mais rápido ou menos rápido etc. Quem disser que tais critérios existem é um ignorante ou um impostor. O único critério que possui um sentido neste terreno é aquele que os homens e as mulheres que compõe a sociedade desejam, e isto, somente eles podem decidir, e ninguém em seu lugar.
Autogestão e hierarquia dos salários e dos rendimentos
Não há critérios objetivos que permitam fundar uma hierarquia das remunerações
A incompatibilidade de uma sociedade autogerida com uma hierarquia dos salários e dos rendimentos não é maior do que sua incompatibilidade com uma hierarquia da direção.
Antes de tudo, a hierarquia dos salários e dos rendimentos corresponde atualmente à hierarquia da direção – de uma maneira total nos países do Leste e numa parte considerável nos países ocidentais. É preciso considerar ainda como esta hierarquia é recrutada. Um filho de rico será um homem rico, um filho de executivo tem todas as chances de tornar-se executivo. Assim, para uma grande parte, as categorias que ocupam os degraus superiores da pirâmide hierárquica perpetuam-se hereditariamente. E isto não acontece por acaso. Um sistema social tende sempre a se auto-reproduzir. Se as classes sociais possuem privilégios, seus membros farão tudo o que puderem – e seus privilégios significam precisamente que eles possuem um poder enorme a esse respeito – para transmiti-los a seus descendentes Na medida em que, num tal sistema, estas classes tenham necessidade de “homens novos” – porque os aparelhos de direção se estendem e proliferam -, elas selecionam, entre os descendentes das classes “inferiores”, os mais “aptos” para cooptá-los para seu seio. Nesta medida, pode parecer que o “trabalho” e as “capacidades” daqueles que foram cooptados desempenharam um papel em sua carreira, que recompensa seu “mérito”. No entanto, mais uma vez, “capacidades” e “mérito” significam aqui essencialmente a capacidade de adaptar-se ao sistema reinante e de melhor servi-lo. Tais capacidades não têm sentido para uma sociedade autogerida e na sua perspectiva.
Certamente as pessoas podem pensar que, mesmo numa sociedade autogerida, os indivíduos mais corajosos, mais obstinados, mais trabalhadores, mais “competentes”, deveriam ter direito a uma “recompensa” particular, e que esta deveria ser financeira. O que alimenta a ilusão de que poderia haver uma hierarquia dos rendimentos que fosse justificada.
Esta ilusão não resiste ao exame. Mesmo no sistema atual, não se vê sobre o que se poderia fundar logicamente e justificar em termos numéricos as diferenças de remuneração. Por que esta competência deveria valer àquele que a possuísse uma remuneração quatro vezes maior do que a de um outro e não duas ou doze vezes? Que sentido tem dizer que a competência de um bom cirurgião vale exatamente tanto – ou mais, ou menos – quanto a de um bom engenheiro? E por que ela não vale exatamente tanto quanto a de um bom maquinista ou de um bom preceptor?
Fora de certos campos muito estreitos e sem significação geral, não existem critérios objetivos para medir e comparar entre si as competências, os conhecimentos e o saber de indivíduos diferentes. E, se é a sociedade que arca com as despesas de aquisição do saber por um indivíduo – como já é praticamente o caso agora -, não se sabe por que o indivíduo, que já se beneficiou uma vez dos privilégios dos quais esta aquisição se constitui em si mesma, deveria beneficiar-se deles uma segunda vez sob a forma de um salário superior. A mesma coisa vale, aliás, para o “mérito” e a “inteligência”. Há certos indivíduos que nascem ou se tornam mais bem dotados do que outros no que se refere a certas atividades. Estas diferenças em geral são reduzidas, e o seu desenvolvimento depende sobretudo do meio familiar, social e educativo. Mas, em todo caso, na medida em que alguém possua um “dom”, o exercício desse “dom” é em si mesmo uma fonte de prazer se não for contrariado. E, para os raros indivíduos que são excepcionalmente dotados, o que importa não é uma “recompensa” financeira, mas criar o que eles são levados irresistivelmente a criar. Se Einstein se tivesse interessado pelo dinheiro não se teria tornado Einstein – e é provável que teria sido um patrão ou um capitalista bem medíocre.
Às vezes apresenta-se este argumento incrível, de que sem uma hierarquia dos salários a sociedade não poderia encontrar pessoas que aceitassem desempenhar as funções mais “difíceis” – e também são apresentadas como tais as funções executivas, de direção etc. Conhecemos a frase repetida com tanta frequência pelos “responsáveis”: “Se todo mundo ganhar a mesma coisa, então eu vou preferir pegar a vassoura”. Mas nos países como a Suécia, onde as diferenças de salário tornaram-se muito menores do que na França, as empresas não funcionam pior do que na França, e não se veem executivos se lançarem sobre as vassouras.
o que se constata cada vez mais nos países industrializados é antes o contrário: as pessoas que abandonam as empresas são aquelas que ocupam os cargos realmente mais difíceis – isto é, os mais árduos e os menos interessantes. E o aumento dos salários do pessoal correspondente não consegue estancar a hemorragia. Por isso, estes serviços são cada vez mais deixados para os trabalhadores imigrantes. Podemos explicar este fenômeno se reconhecermos esta evidência, de que a menos que sejam forçados a isto pela miséria, as pessoas se recusam cada vez mais a se empregarem em trabalhos idiotas. Nunca se constatou o fenômeno inverso, e pode-se apostar que vai continuar sendo assim. Chega-se portanto a esta conclusão, de acordo com a própria lógica deste argumento, de que são os trabalhos mais interessantes que deveriam ser menos remunerados. Pois, sob todas as condições, estes são os trabalhos mais atraentes para as pessoas, isto é, cuja motivação para escolhê-los e realizá-los encontra-se já, em grande parte, na própria natureza do trabalho.
Autogestão, motivação para o trabalho e produção para as necessidades
Mas para que servem afinal todos os argumentos que visam a justificar a hierarquia numa sociedade autogerida, qual é a idéia escondida sobre a qual eles se fundam? Ê que as pessoas só escolhem um trabalho e só o fazem para ganhar mais do que os outros. Mas isto, apresentado como uma verdade eterna a respeito da natureza humana, na realidade não passa da mentalidade capitalista que penetrou mais ou menos na sociedade (e que, como o mostra a persistência da hierarquia dos salários nos países do Leste, permanece tão dominante por lá). Ora, esta mentalidade é uma das condições para que o sistema atual exista e se perpetue – e, inversamente, ela só pode existir enquanto o sistema continuar. As pessoas dão uma importância às diferenças de salário, porque tais diferenças existem, e porque, no atual sistema social, elas são postas como importantes. Se pudermos ganhar um milhão por mês em vez de cem mil francos, e se o sistema social em todos os níveis alimentar a idéia de que aquele que ganha um milhão vale mais, é melhor do que aquele que só ganha cem mil francos – então efetivamente muitas pessoas (nem todas, aliás, mesmo atualmente) ficarão motivadas para fazer tudo para ganhar um milhão em vez de cem mil. Mas se uma tal diferença não existir no sistema social; se se considerar tão absurdo querer ganhar mais do que os outros quanto consideramos hoje absurdo (pelo menos a maior parte dentre nós) .querer a qualquer preço fazer seu nome preceder de uma partícula, então outras motivações, que por sua vez possuam um valor social verdadeiro, poderão aparecer ou de preferência desabrochar: o interesse pelo próprio trabalho, o prazer de bem fazer o que se escolheu fazer, a invenção, a criatividade, a estima e o reconhecimento dos outros. Inversamente, enquanto a miserável motivação econômica estiver lá, todas estas outras motivações ficarão atrofiadas e estropiadas desde a infância dos indivíduos.
Pois um sistema hierárquico baseia-se na concorrência dos indivíduos e na luta de todos contra todos. Ele arma constantemente os homens uns contra os outros e os incita a utilizar todos os meios para “subir”. Apresentar a concorrência cruel e sórdida que se desenrola na hierarquia do poder, da direção, das remunerações, como uma “competição” esportiva onde os “melhores” ganham num jogo honesto, é tomar as pessoas por imbecis e acreditar que elas não veem como as coisas realmente se passam num sistema hierárquico, seja na fábrica, nos escritórios, na Universidade, e mesmo cada vez mais na pesquisa científica desde que esta se tornou uma imensa empresa burocrática. A existência da hierarquia baseia-se na luta implacável de cada um contra todos os outros – e ela exacerba esta luta. Eis porque, aliás, a selva se torna cada vez mais implacável à medida que subimos os degraus da hierarquia – e que só encontramos a cooperação na base, onde as possibilidades de “promoção” são reduzidas ou inexistentes. E a introdução artificial de diferenciações neste nível, pela direção das empresas, visa precisamente a quebrar esta cooperação. Ora, no momento em que houvesse privilégios de uma natureza qualquer, mas particularmente de natureza econômica, renasceria imediatamente a concorrência entre indivíduos, e, ao mesmo tempo, a tendência a agarrar-se aos privilégios que já se possuía e, com esta finalidade, a tentar também obter mais poder e a subtraí-lo ao controle dos outros. A partir deste momento, não se pode mais falar de autogestão.
Enfim, uma hierarquia dos salários e das remunerações é, consequentemente, incompatível com uma organização racional da economia de uma sociedade autogerida. Pois uma tal hierarquia falseia imediata e grosseiramente a expressão da demanda social.
Uma organização racional da economia de uma sociedade autogerida implica, de fato, enquanto os objetos e os serviços produzidos pela sociedade tiverem ainda um “preço” – enquanto não se puder distribuí-los livremente -, e portanto existir um “mercado” para os bens de consumo individual, que a produção esteja orientada conforme as indicações deste mercado, isto é, afinal, pela demanda solvível dos consumidores. Pois não existe, para começar, outro sistema sustentável. Contrariamente a um slogan recente, que só se pode aprovar metaforicamente, não se pode dar a todos “tudo e imediatamente”. Por outro lado, seria absurdo limitar o consumo pelo racionamento autoritário que equivaleria a uma tirania intolerável e estúpida sobre as preferências de cada um: por que distribuir a cada pessoa um disco e quatro entradas de cinema por mês, quando há pessoas que preferem a música às imagens, e outras o contrário – sem falar dos surdos e dos cegos? Mas um “mercado” dos bens de consumo individual só é realmente sustentável se for realmente democrático – isto é, se as células eleitorais de cada um aí tiverem o mesmo peso. Estas cédulas são os rendimentos de cada um. Se estes rendimentos são desiguais, este voto está imediatamente falsificado: há pessoas cujo voto vale muito mais do que os de outras. Desta forma, hoje, o “voto” do rico por uma casa de campo na Côte d’ Azur ou por um avião particular pesa muito mais do que o voto de uma pessoa que não mora bem por uma casa decente, ou o de um trabalhador braçal por uma viagem de trem de segunda classe. E é preciso levar em consideração que o impacto da distribuição desigual dos rendimentos sobre a estrutura da produção dos bens de consumo é enorme.
Um exemplo aritmético que não pretende ser rigoroso, mas está próximo da realidade em ordem de grandeza, permite ilustrar isso. Supondo que pudéssemos agrupar os 80% da população francesa de rendimentos mais baixos em torno de uma média de 20000 por ano fora os impostos (os salários mais baixos na França, os de uma categoria muito numerosa, os velhos sem aposentadoria ou com uma pequena aposentadoria, são de longe inferiores ao salário mínimo) e os 20% restantes em torno de uma média de 80000 por ano sem os impostos, veríamos, por um cálculo simples que estas duas categorias dividiriam entre si pela metade o salário disponível para o consumo. Nestas condições, um quinto da população disporia de um poder de consumo igual ao dos outros quatro quintos juntos. Isto quer dizer também que em torno de 35% da produção de bens de consumo do país estão orientados exclusivamente conforme a demanda do grupo mais favorecido e destinados à sua satisfação, após a satisfação das necessidades “elementares” deste mesmo grupo; ou ainda, que 30% de todas as pessoas empregadas trabalham para satisfazer as “necessidades” não essenciais das categorias mais favorecidas[2].
Vê-se portanto que a orientação da produção que o “mercado” imporia nestas condições não refletiria as necessidades da sociedade, mas uma imagem deformada, na qual o consumo não essencial das categorias favoreci das teria um peso desproporcional. É difícil acreditar que, numa sociedade autogerida, onde estes fatos seriam conhecidos por todos com exatidão e precisão, as pessoas tolerariam uma tal situação; ou que poderiam, nessas condições, considerar a produção como um problema seu e se considerar concernidos por ele – sem o que não se poderia falar um minuto sequer da autogestão.
A supressão da hierarquia dos salários é portanto o único meio de orientar a produção conforme as necessidades da coletividade, de eliminar a luta de todos contra todos e a mentalidade econômica, e de permitir a participação interessada, no verdadeiro sentido do termo, de todos os homens e de todas as mulheres na gestão dos problemas da coletividade.
[1] V. “La hiérarchie des salaires et des revenus”. no n? 5 de C. F. D. T. Aujourd’hui (janeiro-fevereiro de 1974), pp. 23-33. (Atualmente em L’expérience du mouvement ouvrier, 2, pp. 427-444.).
[2] Supondo que a relação consumo/investimento seja de 4 por 1 – o que é, em grandes proporções, a ordem de grandeza observada na realidade.
Transcrito por Felipe Andrade. O presente artigo foi retirado do livro Socialismo ou Barbárie – O Conteúdo do Socialismo, Brasiliense, 1983.