As Revoluções Burguesas e O Problema Russo – Otto Rühle

[Notas biográficas sobre Otto Rühle (1874-1943). As notas foram retiradas do livro Da Revolução Burguesa à Revolução Proletária]:
Professor e educador de profissão, toda a vida interessado pela educação e pela psicanálise, Rühle tornou-se, em 1911, deputado do SPD na Dieta da Saxônia, depois, em 1912, deputado do SPD ao Reichstag, apoiando a ala esquerda do partido.
Em Março de 1915 Rühle foi o segundo deputado, sendo o primeiro Karl Liebknecht, a recusar o voto aos créditos de guerra no Reichstag. Membro fundador da Liga Spartakus durante a guerra, Rühle abandonou este grupo para entrar para o JSD (mais tarde a IKD), tornando-se porta-voz do grupo para a área de Dresden do ISD.
Depois, em 1918, desempenhou um papel dirigente nos acontecimentos revolucionários na Saxônia, que levaram à queda do principado governante da Casa da Saxônia. A sua tendência em breve se desviou dos chamados conselhos operários locais social-democratas. Era porta-voz da maioria de esquerda na conferência da fundação do KPD em Dezembro de 1918 e principal propagandista do conceito de organização unitária durante este período.
A seguir à expulsão da tendência comunista de esquerda do KPD no Congresso de Heidelberg participou na fundação do KAPD, com a condição de que este se dissolvesse rapidamente na AAUD. Delegado do KAPD ao Segundo Congresso da Internacional Comunista, ao qual se recusou a comparecer depois de rejeitar as vinte e uma condições de adesão. Por isto foi expulso da KAPD em Outubro de 1920. Daqui em diante tornou-se leader teórico da tendência da “organização unitária”, depois o iniciador da fundação da AAUD-E em Outubro de 1921.
Deixou a organização revolucionária em 1925 e voltou-se uma vez mais para a atividade literária e cultural (ver a lista das obras a seguir). Em 1933, com a sua esposa e colaboradora Alice Gurstel-Rühle, emigrou para Praga, e em 1936 para o México, onde exerceu, durante algum tempo, as funções de consultor para a educação de um governo “socialista”. Empenhado neste período num diálogo político com Trotsky sobre as divergências políticas fundamentais entre eles, continuaram em desacordo, mas Rühle tomou parte no Comitê formado nos USA por John Dewey, para examinar as acusações de Stálin contra Trotsky, defendendo a reputação deste.
Rejeitou a frente antifascista e, consequentemente, tomou uma posição derrotista internacionalista ao eclodir a Segunda Guerra Mundial. Contribuiu ocasionalmente ao longo dos anos trinta para o jornal lnternational Council Correspondence (mais tarde Living Marxism), cujos outros colaboradores incluíam Anton Pannekoek e outros membros do Grupo Holandês Comunista Conselhista, e Karl Korsch, Paul Mattick e outros sobreviventes da corrente de esquerda comunista na Alemanha.
Começou a pintar aos 65 anos e conseguiu uma boa reputação neste campo com o nome de Carlos Timonero. Morreu no México em 1943.
Embora não seja uma lista completa, os seus escritos publicados incluíam os seguintes (apenas em edições alemãs, salvo indicação em contrário): A Criança Proletária (1910); Um programa de Estudos Socialistas (1911); A Questão de Base da Educação (1912); Um Novo Partido Comunista? (1920) reeditado em francês como “A Revolução não é Tarefa de Partidos” in La Gauche Allemande; Linhas Básicas de Organização (1921); Da Revolução Burguesa à Revolução Proletária (1924). A primeira tradução para língua inglesa foi tirada da edição alemã de 1970 do IPTR (Institut für Praxis und Theoris des Ratekommunismus, Berlim – Instituto para a Praxis e Teoria do Comunismo de Conselhos); História Cultural e Moral Ilustrada do Proletariado (1927); Vida e Obra de Karl Marx (1927); tradução em língua inglesa por Eden e Cedar Paul, publicada por Allen and Unwin, Londres, 1929; Crise Mundial, O ponto de Viragem do Mundo (1931); Corrida Individual (1932).


1 – As revoluções burguesas

Sob o domínio do Império Romano a economia desenvolveu-se na Itália quase até ao limiar do capitalismo. Mas o colapso militar e político deste poder mundial significou também – como causa e efeito simultaneamente – o fim desse desenvolvimento económico. O que se seguiu foi a sua regressão até formas económicas mais primitivas e longos séculos de estagnação. Só as cruzadas deram um impulso para novos desenvolvimentos. Concebidas como sortidas que abririam o oriente e os seus tesouros aos conquistadores e à avareza de aventureiros e piratas ocidentais, introduziram no período que se seguiu uma cadeia de sucesso nas ligações comerciais entre os quais beneficiaram os Estados do Norte de Itália. Via Veneza, Florença, Pisa e Génova as mercadorias seguiam o caminho das antigas estradas comerciais e militares que conduziam a Nurenberg, Augsburg, Ulm, e daí para o norte e noroeste, especialmente em direção à Flandres e ao Brabante. Em ligação estreita com isso desenvolveu-se, primeiro em Itália, uma produção local de mercadorias para a troca de bens. O súbito ímpeto dado à economia pelo surgimento de dinheiros levou à fundação de casas de câmbio e à concentração do capital financeiro nas mãos de algumas famílias. Era o surgimento do moderno capitalismo.

Contudo, o seu completo desenvolvimento foi interrompido e perturbado pelo avanço dos Turcos, no Próximo Oriente e pela descoberta do caminho marítimo para as Índias Ocidentais. O tráfico com o Oriente foi cortado e verificou-se uma deslocação total das vias comerciais. O grosso da troca de mercadorias entre o ocidente e o oriente desviou-se da Itália para Portugal. Os Estados italianos empobreceram e caíram em declínio; o seu Renascimento cultural pereceu; as tentativas de unificação nacional na base da unidade económica faliram através de lutas caóticas entre famílias patrícias e repúblicas. Faliram também, porque não existia uma verdadeira burguesia que tivesse aprendido a reconhecer-se como classe no sentido moderno do termo, por falta da afirmação centralizada dos interesses capitalista em larga escala, por falta de qualquer estatização económica independente sobre os territórios circundantes das dinastias aristocráticas e das guildas, por falta de uma revolução burguesa, que teria acarretado uma brecha fundamental na velha ordem das coisas e estabelecido um novo sistema económico e social.

Em Portugal e na Espanha o capitalismo brotou como uma planta de estufa do solo, abundantemente fertilizado com as riquezas dos continentes recentemente descobertos, abertos à exploração sem reservas. Mas a situação económica favorável não encontrou um poder estatal que desenvolvesse a sua tarefa política, capaz de captar a essência do elemento capitalista. A Corte, dirigida pelo internacionalismo territorial como resultado dos casamentos, herança e conquista viu-se presa, para salvaguardar os seus interesses, ao único poder internacional do seu tempo, a Igreja católica. Esta, em compensação, sabia ser o mais seguro poder do Estado, a sua fé e que era, basicamente, apenas o escudo ideológico dos seus interesses económicos, ancorados ao feudalismo. Portanto, Imperador e Papa, Estado e Igreja criaram a Inquisição, que dirigiu a sua raiva contra os hereges, cuja descrença servia de pretexto para a confiscação de bens, pesadas multas, roubo legalizado e combate sistemático ao despertar de classe da burguesia, portadora de um novo princípio económico. O movimento dos “Comuneros”, levantamento da auto-consciência das cidades castelhanas, foi afogado em sangue; o esperançoso florescer da indústria têxtil acabou no caos com uma crise da qual nunca recuperaria; como representantes da nova época capitalista só ficaram para trás multidões de lumpemproletariado, que enchiam um país empobrecido, cidades arruinadas e terras desoladas. A força da classe burguesa, repentinamente cheia de riquezas que dissipou e com igual rapidez empurrada para os abismos da pobreza, ainda não encontrara a sua expressão numa revolução burguesa.

O comércio marítimo, que criou numerosos laços entre o norte e o sul, estabeleceu em Bruges e mais tarde em Antuérpia grandes entrepostos de embarque para o Mar do Norte e Mar Báltico. Em breve os Países Baixos viram-se penetrados pelo capitalismo e centro do comércio europeu e grande ponto de referência para as nações. A burguesia, próspera e consciente do seu valor, queria conservar o que adquirira e estava decidida a defender a propriedade e o direito à propriedade em todas as circunstâncias e contra todos os perigos. Estes perigos vieram de Espanha, quando Filipe enviou para os Países Baixos o terrível Alba para garantir a continuidade da coroa espanhola, saqueando a riqueza capitalista. Pressionada pelo perigo, a burguesia flamenga fundiu-se numa unidade compacta de classe e capaz de oferecer resistência.

A revolução burguesa nos Países Baixos não teve um caráter agressivo. É muito mais a heroica luta de resistência contra um poder inimigo invasor, mais uma defesa nacional do que uma confrontação social. Mas precisamente o reconhecimento de interesses comuns, a aliança para a ação nacional daí ocasionada constituíram um importante fator para a consolidação de forças, cujo resultado foi o capitalismo. A classe burguesa dos Países Baixos triunfou sobre o poder dos espanhóis porque assentava na base de uma economia mais desenvolvida e mais viável – entenda-se, mas triunfou e a unificação para uma comunidade nacional foi conseguida e a liberdade política foi proclamada. A forte potência económica viveu e desenvolveu-se com vigor nacional e político.

A faísca da revolução flamenga irá por em fogo a estrutura decadente da economia feudal inglesa. A mudança para métodos de economia capitalista processou-se rapidamente e o comércio expandiu-se sobre os mares; a indústria nacional cresceu libertando as energias de um campesinato empobrecido; grandes centros industriais e comerciais, armazéns e escritórios, fábricas e bancos, cais e companhias ultramarinas surgiram a uma velocidade espantosa. Nas cortes a classe burguesa conquistou uma importante posição – abaixo das classes aristocratas.

Pela primeira vez na história mundial o Parlamento Inglês tornou-se a arena de luta dos interesses burgueses-capitalistas. A coroa e a finança, o poder real e a vontade do burguês explodiram mutuamente nas mais violentas e azedas querelas. O rei apegou-se a prerrogativas e privilégios, aos monopólios e ao lançamento de impostos, ao mais alto poder de mandar e ao Direito Divino; a burguesia, com um total energia e obstinação defendeu a liberdade de comércio e a livre concorrência, a segurança da propriedade e os frutos da empresa, a livre iniciativa e o acesso aos mercados e aos lucros. A fim de quebrar o poder reacionário da coroa, o Parlamento sob o comando de Cromwell organizou um exército que, depois de destruir a monarquia, imediatamente fundou as bases de segurança da propriedade privada através da supressão dos “Levellers”, conquistou a Irlanda e a Escócia criando uma Grã-Bretanha para que o capital se pudesse expandir. Mesmo quando a burguesia, que dependia do poder dos militares, não pode evitar o regresso da monarquia destitui-a, no entanto, de todo o poder real nos negócios e questões económicas e reduziu a sua existência ao luxo de um acessório decorativo, o que se acabou por concluir, “nolens volens” (quer queira quer não).

Na revolução inglesa ficou demonstrada toda a força e determinação da classe burguesa, já economicamente desenvolvida, firmemente enraizada e politicamente independente, que esmaga as velhas tradições assim que se tornam obstáculos, que não reconhece sentimentalismos, sabe o que quer, não recua um passo quando os seus interesses o requeiram.

A mais espetacular de todas as grandes revoluções – a “Grande Revolução” – teve lugar na França. Não tem igual na sua força, no seu caráter de classe e na sua importância histórica. Os historiadores veem nela o princípio da idade moderna, da época burguesa propriamente dita.

Um grupo de intelectualidades das mais destacadas da época abriu ideologicamente o caminho para a revolução, a qual se tornara inevitável com a catastrófica ruína do sistema feudal com Louis XIV e seus sucessores. “L’Esprit des Lois” de Montesquieu forneceu a pedra base para a fundação das futuras constituições para a altura revolucionárias; Rousseau, no seu “Contrato Social”, esboçou o quadro de uma nova condição social; os Enciclopedistas advogaram, com muita perspicácia e fervor, a “transformação da maneira geral de pensar”; Voltaire destruiu o prestígio da autoridade tradicional e propagou os novos preceitos de uma moralidade natural; Siéyes estabeleceu, com uma lógica convincente e eloquência perturbadora, as reivindicações políticas do “Terceiro Estado”. E enquanto a massa de pequeno-burgueses e trabalhadores faziam o trabalho duro, enquanto destruíam a Bastilha, marchavam sobre Versailles, tomavam as Tulherias e arrastavam o rei para o cadafalso, a burguesia de acordo com as intenções dos seus chefes políticos e mentores intelectuais, ergueu o edifício de um novo Estado, que se tornaria, para eles um confortável palácio e, para o proletariado, uma odiosa fortaleza, militarmente segura. Todas as tentativas de obter para esses traídos dos frutos da revolução uma voz na nova ordem foram sangrentamente reprimidos; Marat, os Herbestistas, Danton e finalmente Robespierre – o chefe da “República da Virtude” – tornaram-se inconvenientes e caíram na sarjeta: “Os ladrões venceram!”, gritou Robespierre quando foi preso. De fato, a burguesia, ávida de pilhagem, chegara ao poder. A pequena burguesia foi sobrecarregada de impostos e além dos seus meios, ao proletariado foi negado o direito de coligação. A liberdade e igualdade de direitos desapareceram sob a fraude brutal do sistema das Duas Câmaras. A tentativa desesperada de Babeuf para resgatar o comunismo traído, mesmo à última hora, acabou no cadafalso. Em vez disso, surgiu do seio da burguesia Napoleão como o herói que lhes traria a grinalda da glória e fez cair do céu o sucesso material ao produzir, vender, ganhar, conquistar o mercado mundial e acumular riquezas. O capitalismo estava a triunfar. O imperador Bonaparte tornou-se, portanto, o essencial executor da vontade de poder, economicamente fundado e politicamente estabelecido da burguesia.

A linha das revoluções burguesas, que atingiu em França o seu ponto mais alto, sofreu uma súbita viragem com a Revolução Alemã de 1848.

O desenvolvimento capitalista que começou na Idade Média, impulsionado e alimentado pelo comércio do Oriente e do Levante das cidades no norte de Itália, e irradiou os seus reflexos ideológicos sobre a Reforma, foi morrendo lentamente com a mudança das vias comerciais e acabou por expirar completamente. O feudalismo começou de novo a lançar raízes; com a Guerra dos Camponeses e a Guerra dos Trinta Anos o povo fora tão profundamente sangrado que aguentou o jugo da mais negra reação durante anos com uma submissão muda. Por volta de 1800, a forma dominante de manufatura era ainda a de pequenos artesãos. Onde o capitalismo dominava a produção, prolongava a uma existência miserável na indústria doméstica ou nas manufaturas do Estado, sob o bastão policial do regime mercantil. Só quando Napoleão abriu os mercados orientais, pela força das armas, à conquista dos patrões capitalistas, mas muito especialmente quando decretou o bloqueio continental, entrou uma corrente de ar fresco no ambiente estreito e enfadonho dos servos da Prússia Germânica. Logo de imediato havia máquinas a fazer barulho, fábricas a abrirem e desenvolvia-se na Renânia, Saxónia e na Turíngia a grande indústria. A burguesia começou a despertar como classe e a anunciar as suas exigências políticas. Mas, por toda a parte, a Coroa e a nobreza, como representantes do sistema feudal, estavam, aparentemente a cortar-lhe o passo. A chamada à constituição que satisfaria as exigências da classe burguesa recebeu resposta dos Hohenzollern com perseguições, fraudes e provocante desprezo. Finalmente, a Revolução de Fevereiro de 1848 em Paris teve um fraco eco na Revolução Alemã. A circunstância do impulso definitivo para um levantamento contra as condições e privilégios obsoletos ter vindo de fora e encontrado uma burguesia que, tímida e politicamente inocente, não adquirira a determinação de uma classe revolucionária, teve por consequência que o movimento não foi adequado para esmagar as bases existentes do estado e para criar um Estado unificado com formas republicanas, de acordo com os interesses da economia capitalista ascendente. A burguesia alemã, conseguindo magros sucessos, mostrou-se contente com meias-liberdades, fracas concessões e compromissos podres. Abandonou a chefia da revolução a uma clique de ideólogos confusos e rivais, enquanto os pilares do desenvolvimento industrial, assustados pelos objetivos de classe vigorosamente postos em agenda pelo proletariado francês, fugiu rapidamente para os braços abertos da reação principesca. Na verdade, quando a batalha de Junho em Paris abateu o proletariado combatente a reação respirou de novo livremente, para levantar a cabeça mais atrevida que nunca, na Alemanha até estas magras conquistas eram perdidas de novo pela burguesia. Renunciou às ambições políticas, e o povo contentou-se com o negócio lucrativo e continuou a viver na velha servidão.

No fim, lá estava Bismarck para ajudar a burguesia no sentido do seu papel histórico, por meio da política do poder nacional da Prússia. No caminho para um Estado germânico unificado sob a hegemonia da Prússia, que oferecesse ao capitalismo em rápido crescimento um largo mercado e abrisse novas possibilidades de desenvolvimento, empurrou a Áustria para fora da corrida, como competidor político em 1866; em 1870/71, a França, como competidor económico. Com direito de voto no Reichstag garantiu à burguesia uma voz política. Na cabeça do Estado instalou um império meio-absoluto, um símbolo para o compromisso conseguido entre o poder feudal e a burguesia, a Coroa e a finança.

Quando a Alemanha colapsou depois de quatro anos de guerra mundial, a burguesia, maciçamente fortificada entretanto, encontrou, já no desespero, a força para pôr um fim abrupto ao compromisso que se tornara um perigo para o seu domínio e existência. Na escolha entre o trono e os valores da banca decidiu sumariamente uma revolução pelos últimos; atirou borda fora o Kaiser e os Reis, instituiu a república, deu-se uma nova constituição e completou – com a ativa assistência da classe trabalhadora organizada em partidos e sindicatos – a revolução burguesa de 1848.

No último lugar da série das grandes revoluções burguesas na Europa situa-se a revolução russa.

O feudalismo russo, um colosso económico de brutal primitivismo e força para resistir a que a tirania do czarismo emprestou a forma política, experimentou na guerra com o Japão um choque que imediatamente libertou energias nas quais a necessidade de liberdades políticas e inovações das classes levou o modo económico capitalista a encontrar a sua expressão. O desejo da burguesia por uma constituição foi, contudo, imediatamente alargado e fortalecido pela exigência do proletariado industrial por salários mínimos, dia de 8 horas, proteção ao trabalho; até então nunca tal se registrara nas revoluções burguesas: a Revolução Russa teve, desde o princípio, uma forte margem socialista-proletária. É certo que, em levantamentos anteriores, maiores ou menores setores da classe operária também se tinham juntado à luta e derramado o seu sangue: mas sempre tinham sido apêndices e seguidores da classe burguesa. Mesmo na revolução alemã de 1848 os combatentes de Março em Berlim caíram como simples trabalhadores, na sua maior parte desconhecidos, não como proletários conscientes e combatentes de classe.

Na Rússia, por outro lado, os proletários, enquadrados pelos sociais-democratas, cortaram pela primeira vez com o papel político desempenhado pela burguesia, vieram para o palco da história com as suas próprias exigências e objetivos revolucionários. É certo que a primeira fase[1], a partir da marcha das massas reivindicantes para o Palácio de Inverno do Czar chefiadas pelo padre Gapon, até ser decretado o manifesto de Outubro, tomou ainda o curso típico de todas as revoluções burguesas, ligadas a objetivos liberais. Mas já na fase seguinte as vozes liberal-burguesas – bastante fracas e timoratas dada a dureza de ouvido da reação russa – se perderam no rugido do vento das exigências das massas de proletários desprovidos de direitos e sangrentamente torturados, de camponeses empobrecidos e abandonados.

Apesar de a contrarrevolução fortemente enraizada ter conseguido arrancar de novo ao elemento burguês as primeiras concessões parlamentares e legais, sufocando o grito revolucionário das massas com sangrentas execuções e atrás das grades, ainda ganhou com isso algum fôlego, mas não a salvação. Na verdade, pelo contrário, o ímpeto, à força contido, da revolução, irrompeu, depois de três anos de guerra mundial terem quebrado as cadeias, numa explosão e um poder tal que todo o sistema czarista foi reduzido a pó e não deixou mais rastro. A fraca voz da burguesia russa foi evidentemente acompanhada por uma energia igualmente fraca: não foi capaz de cumprir a sua tarefa histórica. Aí, o proletariado pôs mãos à obra e tomou para si o poder governamental. Concluiu a paz, proclamou a ditadura do proletariado e empreendeu a ascensão da estrela cadente do socialismo acima do caos do mundo do czarismo que se afundava.

Se em 1917 o imperialismo da burguesia russa tivesse conquistado, tomado Constantinopla e conseguido todos os seus objetivos de guerra, teria sido instituída na Rússia uma época liberal-burguesa segundo o modelo inglês, francês e alemão. Mas o que aconteceu foi que a guerra mundial fez, como era de esperar, fugir o chão debaixo dos pés não só ao despotismo feudalista mas também a qualquer governo capitalista burguês. Isto porque o capital estrangeiro fora escorraçado: o capital nacional, só moderadamente desenvolvido, aliás, foi destruído. O fiasco de Miliukov, Gutschkov e Kerensky foi, pois, inevitável[2]. No fim, ficou, para durar, apesar de tudo, até à conclusão da guerra, apenas o proletariado como titular do poder do Estado e executor da vontade do povo.

Mas o proletariado ficou sob o comando político de intelectuais educados no espírito da social-democracia ocidental. Eram socialistas e queriam o socialismo. Agora a tomada do poder do Estado na Rússia parecia-lhes oferecer a oportunidade para a realização da ideia socialista.

O mundo em volta foi assaltado pela sensação de que a Revolução Russa, ainda recentemente uma revolução burguesa atrasada, fraca, se tornou num instante uma revolução proletária. O princípio e o fim da revolução burguesa chegaram ao mesmo tempo.

Era realidade ou ilusão?

2 – O problema russo

É uma tarefa histórica da revolução burguesa vencer o absolutismo da era feudal e orientar-se para o capitalismo, como novo sistema económico, e para o reconhecimento legal e aceitação social da estrutura da ordem liberal-burguesa do Estado.

Em todos os países com uma economia feudal anterior e uma forma de governo absolutista a revolução burguesa cumpriu essa tarefa.

Nunca teve o objetivo nem a função de infringir ou mesmo suspender o princípio da base económica e da ordem social dela dependentes, isto é, a propriedade privada dos meios de produção. Por enquanto, só mudou a classe que exercia a autoridade sobre o todo como representante deste princípio.

Enquanto na época feudal é a nobreza que forma esta classe fundamentalmente apoiada na propriedade privada, domínio absoluto no Estado patriarcal despoticamente administrado, organizados em “Estados” com o rei à cabeça, na era capitalista a burguesia – como possuidor privado dos bens e do dinheiro – toma o governo, que é estabelecido em Estado constitucional com Parlamento e Governo, na sua forma mais ideal, a república parlamentar.

A revolução burguesa, onde quer que se manifestou, trouxe à primeira linha a classe burguesa. Esta classe estava mais ou menos consciente da sua missão histórica. Também preparara o movimento revolucionário, pelo menos economicamente, muitas vezes também ideologicamente. Sob a pressão de necessidades imperiosas resultantes do conflito entre as novas e as velhas tendências, tornou-se finalmente leader da ação revolucionária e conquistou o poder político, para o usar imediatamente depois da vitória na concretização do Estado e da ordem social burguesa.

Só o sucesso da revolução, que consiste na criação da ordem económica capitalista e da adequada ordem social, determina a sua natureza como revolução burguesa. A circunstância do estrato proletário tomar também parte, maior ou menor, na luta revolucionária não se considera para determinar a natureza histórica da revolução. Mesmo quando o proletariado está já formado como classe e marcha na revolução com os seus próprios objetivos políticos de classe – talvez de fato influencie consideravelmente o seu desenvolvimento ou mesmo o controle – nada se altera na natureza histórica da revolução. A mistura proletária fraca ou forte numa revolução burguesa pode retardar ou acelerar, às vezes defletir ou perturbar, a sua realização. Pode ocultar temporariamente ou deformar a sua face; pode afetar ou ameaçar o seu êxito, mas não faz qualquer diferença quanto à essência da revolução, ao seu conteúdo socioeconômico. Tanto no Estado burguês, como no exército, os trabalhadores formam o contingente mais forte, fazem um grande grupo de classe – e, no entanto, ninguém se deixa tentar, neste caso, a chamar proletário ao Estado burguês ou a falar de um exército proletário. Mesmo o Exército Vermelho da Rússia, constituído só por camponeses e operários, é uma máquina militar construída no modelo burguês e funcionando de acordo com as leis políticas do estado burguês, que só a demagogia política, para iludir, pode descrever como exército “proletário”.

Sempre e onde quer que o estrato proletário desempenha um papel na revolução burguesa, aparece a reboque da classe burguesa, em parte como mercenários pagos, em parte como simpatizantes, em parte como auxiliares políticos de uma tendência incerta. Formam frequentemente a retaguarda, mesmo a cauda do movimento, nunca a cabeça. Esta é sempre formada por comerciantes, banqueiros, políticos profissionais, advogados, intelectuais, literatos. Aqui se formulam as reivindicações, se desenvolve o programa, se fixam os objetivos, se tomam as decisões. Aqui se faz a política burguesa. A face histórica da revolução recebe de fora os seus traços.

Nas primeiras revoluções burguesas o proletariado não podia ainda figurar completamente como classe, uma vez que não estava então desenvolvido como tal. Primeiro na Inglaterra começou a marcar a sua presença como classe a partir do corpo principal da burguesia, agrupado em fortes organizações. Mas estava sempre intimamente imiscuído de elementos pequeno-burgueses e os seus programas nunca foram além do radicalismo destas seções. Daí que os funcionários marchassem ao lado das seitas Puritanas de esquerda na verdadeira frente das forças revolucionárias, mas toda a sua atitude perante o problema revolucionário permaneceu limitada pela ideologia do seu tempo que era, quando muito, burguesa. O pivot de toda a orientação burguesa é que a propriedade esteja protegida. Na medida em que os grupos radicais e as seitas transgredissem surgia um Cristianismo primitivo, erradamente entendido, cujos postulados, interpretados demasiado à letra, teriam sido condenados à destruição com as primeiras tentativas para se realizarem, porque todas as condições do meio socioeconômico eram contra eles. Também na Revolução Francesa o proletariado não estava presente como classe: a extensão do desenvolvimento da classe burguesa não lhe deu azo. Nem mesmo sessenta anos mais tarde, na Revolução Francesa como na alemã (1848), veio à luz o setor de classe proletário. Só meia geração mais tarde começou a agitação de Lassalle, com o fito de preparar, através do despertar do sentimento de classe no proletariado, a educação geral para a consciência de classe.

Desde o início, a revolução russa – de acordo com as suas condições históricas -só podia ser uma revolução burguesa. Tinha de se ver livre do czarismo, suavizar o caminho do capitalismo e ajudar a burguesia a instalar-se politicamente.

Através de uma rara cadeia de circunstâncias a burguesia encontrou-se sem posição para desempenhar o seu papel histórico. O proletariado, subindo para o palco em seu lugar, fez-se a si mesmo, num momento, senhor da situação, por um dispêndio de energias sem precedentes, ousadia e presteza tática e inteligência, mas no período seguinte caiu numa situação fatal.

Segundo o padrão fraseológico do desenvolvimento, tal como formulado por Marx, depois do feudalismo czarista na Rússia viria o Estado capitalista burguês, cujo criador e representante é a classe burguesa.

Mas o poder governativo de 1917 foi ocupado não por burgueses, mas por proletários que repudiavam o Estado burguês e estavam prontos a instituir uma nova ordem económica e social segundo a teoria socialista.

Entre o feudalismo e o socialismo abria-se um hiato de centenas de anos, através do qual o sistema da época burguesa se sentiu abortado e inútil.

Os Bolcheviques comprometeram-se a, nada mais nada menos, saltar toda uma fase de desenvolvimento na Rússia de uma só vez.

Mesmo que se admita que ao fazê-lo apostavam na revolução mundial que viria em sua ajuda e compensaria o vazio no desenvolvimento interno com o apoio do grande fundo cultural do exterior, este cálculo era ainda imprudente, porque se baseava somente numa vaga esperança. Igualmente temerária foi a experiência saída deste cálculo.

O primeiro ato do regime bolchevique foi a paz de Brest-Litovsk. Mas este tratado, concluído com um governo capitalista burguês avançado, foi um ato de política burguesa. Uma verdadeira revolução proletária teria mantido uma atitude hostil, teria continuado a manietar a força de combate alemã para se atravessar no caminho da vitória do imperialismo alemão no ocidente e, por sua vez, teria mobilizado as forças para o avanço da revolução mundial, Rosa Luxemburg deu, no seu tempo, a expressão mais aguda a esta perspectiva.

De acordo com o tratado, os Bolcheviques declararam-se a favor do direito das nações à autodeterminação, na base do qual se seguiu a separação da Rússia da Finlândia, Polônia, Báltico, Ucrânia e Cáucaso. O resultado foi, por um lado, o Estado nacional russo – que não é uma conquista proletária – e por outro o colapso da revolução proletária nos Estados separados. Uma revolução proletária teria estabelecido a solidariedade em todos os postos de fronteira e para além das barreiras nacionais.

Os Bolcheviques, contudo, começaram a perder o estado de graça com a distribuição de grandes herdades aos camponeses. Com isto, os camponeses obtiveram propriedade privada. O socialismo, porém, não devia começar com a introdução, mas sim com a eliminação da propriedade privada: E assim esta medida foi uma bofetada na face da ideia socialista. Tanto quanto este ato seria óbvio para um governo de um Estado do poder burguês (mais ou menos como no tempo da Revolução Francesa) é igualmente inadmissível – de fato grotesco – como expressão de uma política proletária. Pois, tendo o campesinato atingido a propriedade privada, cerca de 85% da população da Rússia foi, por esse meio, recrutada para se fortalecer contra o socialismo.

A consequência desta política é manifesta na oposição irreconciliável entre campo e cidade, campesinato e proletariado industrial. Conduziu ao boicote das cidades, à recusa de alimentos, à sabotagem das organizações de abastecimento do Estado: forçou as táticas de concessões ao campesinato de tendências capitalistas – uma política dirigida aos interesses dos camponeses e uma capitulação perante o lucro.

De fato, o regime Bolchevique tinha que seguir este caminho. Embora em 1918 ainda se baseasse nos camponeses sem terras e estes, juntamente com os trabalhadores da indústria, lhe dessem o mais seguro apoio, alinha agora com os camponeses possuidores de terras, cria lavradores e grandes proprietários, liberaliza o comércio do trigo, permite e encoraja neste sentido o aparecimento de um campesinato com interesses capitalistas, de cuja matéria política cuida.

Paralelamente, com os mesmos traços burgueses, corria a política económica em relação à indústria. Os Bolcheviques levaram a cabo a nacionalização da indústria, de transportes, de bancos, de fábricas, etc., o que despertou uma crença bastante generalizada de que isto envolvia medidas socialistas. No entanto, nacionalizar não é socializar. Através das nacionalizações pode-se chegar a um capitalismo de Estado em larga escala, estreitamente centralizado, que pode exibir diversas vantagens em relação ao capitalismo privado. Só que continua a ser capitalismo. E, por mais que se faça, não há fuga possível ao cerco da política burguesa. Também na Rússia, pois, grandes concessões acabaram por ser feitas aos capitalistas estrangeiros, a quem foram entregues para exploração as riquezas minerais e a força de trabalho – em regime de divisão de lucros com o Estado. A bolsa é aberta de novo. Uma horda de comerciantes, empresários, agentes, corretores, banqueiros, usurários, especuladores e traficantes reapareceu e instalou-se. Por decreto de Maio de 1921 o direito de posse sobre as fábricas e oficinas, estabelecimentos industriais e comerciais, instrumentos e meios de produção, produto agrícola e industrial; o direito sobre invenções, o registro de marcas; o direito de fazer hipotecas e empréstimos, tal como o direito testamentário ou o direito legal de sucessão foram expressamente reconhecidos de novo. Com isto é estabelecida a ordem burguesa no seu todo e em todos os seus componentes essenciais.

A juntar a tudo isto, além da jurisdição burguesa cuja estrutura organizacional está sendo construída, o Exército Vermelho: um exército completamente burguês, funcionando de acordo com interesses capitalistas-burgueses. No contexto das políticas ditadas em primeira instância pela proteção aos lucros agrários, representa a mais terrível arma de defesa básica – primeiro contra os cossacos, Denikin, Wrangel[3] etc., mas mais tarde ou mais cedo também contra as reivindicações da revolução socialista proletária.

Não menos impressionante expressão da política burguesa é a ditadura dos leaders do Partido Comunista instalada na Rússia, falsamente descrita como ditadura do proletariado. Por trás deste cenário protecionista pseudorrevolucionário esconde-se, como toda a gente sabe, a onipotência de uma pequena mão cheia de pessoas que são os mandatários do comissariado burocrático autoritário e centralizado. Como czarismo invertido esta ditadura de partido tem um sentido completamente burguês.

Estes poucos argumentos mostram e provam que o regime russo, contrariamente à sua intenção, sem dúvida honesta, de prosseguir a política socialista proletária, foi empurrado passo a passo pelo poder dos fatos para a política capitalista burguesa.

Apesar de terem conseguido, por momentos, desenvolver os impulsos de uma revolução social e criar os inícios de uma ordem económica e social de natureza socialista, todos os esforços acabaram num fracasso, de tal forma que foi forçoso destruir tentativas e experiências.

E como os melhores e mais notáveis dos combatentes por uma revolução social se opuseram a isto, as autoridades Bolcheviques não se furtaram nem por momentos a atirá-los às centenas e aos milhares, para as prisões – muito à maneira czarista-capitalista-burguesa – mandando-os para a Sibéria ou condenando-os à morte. Um Trotsky fez o papel de carrasco dos marinheiros de Kronstadt[4] com o mesmo sangue frio que um Galifet[5] teve com os revolucionários franceses, ou com que um Noske[6] abateu os revolucionários alemães.

Foi um erro histórico acreditar que a Revolução Russa foi o início de uma revolução social. Equivale a uma fraude demagógica despertar e manter esta crença na cabeça dos trabalhadores.

Quando os socialistas no governo russo, depois da vitória sobre o czarismo, imaginaram que se podia saltar uma fase do desenvolvimento histórico e realizar estruturalmente o socialismo, esqueceram o ABC do Marxismo, segundo o qual o socialismo só pode ser o resultado de um desenvolvimento do capitalismo até aos limites da sua maturidade. O preço deste esquecimento foi um largo, penoso, desvio, com grandes rastros de vítimas, que em breve conduz até ao capitalismo.

Instituir o capitalismo e organizar o Estado burguês é a função histórica da revolução burguesa. A Revolução Russa foi e é uma revolução burguesa, nem mais nem menos: a forte mistura socialista nada altera na sua essência. Portanto, cumprirá a sua tarefa eliminando, mais cedo ou mais tarde, os últimos vestígios do “Comunismo de Guerra” e revelando a face de um capitalismo real, genuíno. As lutas no interior do partido Bolchevique estão a preparar esta conclusão, e com ela o fim da ditadura do partido Bolchevique. A linha de desenvolvimento – seja de uma coligação de partido que apressa e facilita a fase de lançamento do capitalismo, ou a de um Bonaparte que a protela e agrava – não é ainda clara; ambas são possíveis.

O paralelogramo de forças encontrará as suas diagonais corretas.


[1] É a revolução russa de 1905 que se refere aqui.

[2] Políticos burgueses envolvidos na tentativa fracassada para estabelecer governos efetivos antes da revolução de Outubro de 1917.

[3] Refere-se a alguns dos exércitos da contrarrevolução na Rússia no período do “comunismo de guerra”.

[4] A insurreição de Kronstadt de 1921.

[5] Conhecido no movimento operário como “o carniceiro da Comuna” pelo seu papel preponderante na supressão da Comuna de Paris de 1871.

[6] Social-democrata alemão de direita que organizou o esmagamento da revolução de Novembro na Alemanha em 1918 e das subsequentes insurreições no princípio de 1919, os motins de Janeiro e a “Ação de Março”.

Transcrito por Joaquim Pina. O presente texto foi retirado do livro Da Revolução Burguesa à Revolução Proletária. Publicações VOSSTANIE ÉDITONS. Collecçaõ Arqoperaria. Junho 2019.