A incoerência da “sociedade de transição” como conceito marxiano – Andrew Kliman

Primeiro, um comentário sobre o título desta palestra[1]. Títulos precisam ser curtos, então eu usei a frase “conceito marxiano”, mas isso é ambíguo. O que eu quero dizer é “de Marx, no contexto do pensamento de Marx”. Não estou dizendo que os proponentes do conceito de uma “sociedade de transição” não podem ser marxistas. A questão de quem é ou não marxista não me interessa.

Já que o tema desta Escola de 1º de Maio é acumulação, eu quero começar discutindo o conceito de “acumulação socialista primitiva” proposto pelo pensador econômico bolchevique Evgeny Preobrazhensky, em seu livro de 1926, A Nova Economia[2]. Na época, ele fazia parte da Oposição de Esquerda a Stalin. Em sua opinião, a economia da URSS naquele momento era parcialmente uma economia produtora de mercadorias e parcialmente uma economia socialista. Ele considerava parte dela socialista porque era de propriedade e de controle estatais, e porque o planejamento determinava os preços, níveis de produção e a alocação de recursos e trabalhadores, ao invés de forças de mercado espontâneas. A relação entre as duas partes da economia era antagônica em sua visão; havia uma “luta do princípio do planejamento socialista contra a espontaneidade da produção de mercadorias”.

Portanto, uma economia completamente socialista era concebida como uma economia totalmente planejada com propriedade e controle estatal completos dos meios de produção. O que era necessário para realizar isto, pensava Preobrazhensky, era um processo de transição, no qual a parte planejada e de propriedade estatal da economia se tornava cada vez maior, substituindo a parte privada e regulada pelo mercado da economia até que esta desaparecesse. A política da “acumulação primitiva socialista” que Preobrazhensky propôs era um esforço para acelerar esta transição. A acumulação rápida de capital estatal e o investimento na produção aumentariam o setor estatal da economia. Além disso, o setor privado seria enfraquecido porque o plano de Preobrazhensky exigia a “alienação de parte do produto excedente da economia privada para o benefício do fundo de acumulação socialista”. Em outras palavras, a expansão do setor estatal aconteceria à custa direta do setor privado, que seria forçado a financiar parte desta expansão. Originalmente, Preobrazhensky chamou este processo de “exploração”.

Algo similar foi posto em prática por Stalin dois anos depois. Preobrazhensky, e a Oposição de Esquerda em geral, consideraram a nova política de Stalin como o triunfo de suas ideias. E em termos de conceitos teóricos básicos, o que Preobrazhensky propôs foi menos distinto do que suas propostas de política. O que eu considero mais problemático e preocupante em suas ideias são aspectos que ele sequer argumenta a favor. Ele tomou estes aspectos como certos, porque eram aspectos comumente aceitos do pensamento econômico marxiano[3] de sua época.

Em especial, suas propostas para a transição do capitalismo ao socialismo se baseiam na ideia de que mais planejamento, propriedade e controle estatais são um progresso em direção ao socialismo, o que, por sua vez, se baseia na equiparação fundamental do socialismo com planejamento, propriedade e controle estatais. Estas noções eram muito comuns e, apesar de tudo que tivemos que aprender através da experiência, continuam muito comuns.

Todos têm o direito de definir o socialismo da maneira que quiserem — incluindo Karl Marx. A noção de que o socialismo equivale a planejamento, propriedade e controle estatais é algo alheio à concepção de Marx do socialismo. Mais exatamente, era alheia à concepção do que ele chamava de sociedade comunista, tanto em sua fase inicial como em sua fase superior.

Permitam-me primeiro abordar a questão da propriedade e controle estatais.

É claro, Marx defendia a abolição da propriedade privada. Mas o que torna a propriedade privada, em sua opinião, não é a propriedade individual, mas a separação dos produtores diretos, trabalhadores, da propriedade que produzem. Assim, na Ideologia Alemã, ele e Friedrich Engels observam que na “propriedade estatal ou comunal da Antiguidade (…) a escravidão continua a existir” e se referiram à propriedade comunitária de escravos como “propriedade privada comunitária”[4].

No livro II d’O Capital, Marx escreveu: “o capital social é = a soma dos capitais individuais (inclusive (…) do capital estatal, na medida em que os governos empregam trabalho assalariado produtivo em minas, ferrovias etc. e, assim, funcionam como capitalistas industriais)”[5]. Igualmente, em suas Notas sobre Wagner, Marx escreveu que “[o]nde o estado é ele mesmo produtor capitalista, como na exploração de minas, florestas etc., seu produto é ‘mercadoria’ e possui, portanto, o caráter específico de toda outra mercadoria”[6].

Mais importante, no livro I d’O Capital, ele abordou implicitamente a questão do que aconteceria se o papel do Estado como produtor capitalista se expandisse a tal ponto que substituísse outros capitalistas. Ele argumentou que a tendência ao monopólio, o processo de centralização dos capitais, “teria alcançado seu limite último (…) [n]uma dada sociedade (…) no instante em que o capital social total estivesse reunido nas mãos, seja de um único capitalista, seja de uma única sociedade de capitalistas”[7]. Como Raya Dunayevskaya observou, o texto de Marx implica que tal sociedade “permaneceria capitalista; (…) este desenvolvimento extremo não mudaria absolutamente a lei de movimento dessa sociedade”. Engels, assim, parece estar repetindo a visão de Marx bem como a sua própria quando escreveu no Anti-Dühring:

“Propriedade estatal (…) não elimina a natureza capitalista das forças produtivas (…) Quanto maior é o número de forças produtivas que ele [o Estado] assume como sua propriedade, mais ele se torna um capitalista global real, maior é o número de cidadãos do Estado ele espolia. Os trabalhadores permanecem trabalhadores assalariados, proletários. A relação com o capital não é revogada; ao contrário, é levada ao extremo[8].”

Agora, vamos à questão do planejamento. Preobrazhensky considerava o planejamento e “a lei do valor” como opostos. Isto também era uma perspectiva comum, e continua sendo.

Ele usava o termo “lei do valor”, como basicamente a mesma coisa que a assim chamada lei da oferta e da demanda. Ela operava na medida em que preços, níveis de produção e a alocação de recursos e trabalhadores eram determinados pela competição em mercados — e apenas nessa medida. Porém, a igualação de planejamento com socialismo e determinação pelo mercado com capitalismo não funcionava de fato. Preobrazhensky, assim como outros pensadores que compartilhavam da mesma abordagem teórica, estava perfeitamente ciente de que o capitalismo em si estava se tornando mais planejado e, assim, menos regulado pela “lei do valor”. Ele caracterizou a economia alemã durante a 1ª Guerra assim:

“A regulação de toda a produção capitalista pelo Estado burguês atingiu um grau sem precedentes na história do capitalismo. A produção que formalmente permaneceu produção de mercadorias foi transformada de fato em produção planejada nos ramos mais importantes. A livre concorrência foi abolida, e o funcionamento da lei do valor em muitos aspectos foi quase completamente substituído pelo princípio do planejamento do capitalismo de Estado.”

Assim, na visão de Preobrazhensky, a transição do capitalismo ao socialismo envolvia a extensão adicional de uma tendência que já estava operando sob o capitalismo, a tendência de substituir “a lei do valor” pelo planejamento. Então, na verdade, segundo esta visão, não é correto, estritamente falando, distinguir entre capitalismo e socialismo em termos da lei do valor versus planejamento. Assim, a distinção entre os dois sistemas se reduz à outra distinção, à distinção entre propriedade privada e propriedade e controle estatais.

De qualquer modo, sua concepção muito limitada da “lei do valor” é bastante diferente da de Marx. No livro III d’O Capital, Marx argumentou que “lei do valor [não é] afetada” pela maneira precisa em que preços de mercadorias em particular são determinados, porque uma alteração na maneira em que eles são determinados “não suprime o próprio mais-valor nem o valor total das mercadorias como fonte desses diversos componentes do preço”[9]. Assim, como Marx está usando o termo “lei do valor”, a questão de se esta lei opera ou não nada tem a ver com como os preços de mercadorias individuais são determinados. O que importa é se os produtos são mercadorias, coisas que não só úteis mas também possuem “valor”, e se o valor total — de todas as mercadorias, tomadas em conjunto — é determinado pela quantidade de trabalho necessário para produzi-las. Se sim, então a lei do valor, conforme Marx está usando o termo, está em operação.

Marx reconhecia que a produção socialista deve ser planejada. Mas o planejamento por si só não era a questão central. Ele escreveu no livro I d’O Capital que “o processo material de produção, só se livra de seu místico véu de névoa quando, como produto de homens livremente socializados, encontra-se sob seu controle consciente e planejado”[10]. Então, primeiro, há a questão crucial de se os produtores estão livremente associados, uma questão que estava quase que completamente ausente do livro de Preobrazhensky. Mas, mesmo que restringíssemos nosso foco ao planejamento, observe que Marx indica que a produção deve estar sob o controle consciente e planejado dos produtores diretos. A questão aqui é se os conteúdos do plano são determinados pelos próprios produtores ou se eles são determinados por leis e imperativos econômicos sobre os quais os produtores não têm nenhum controle. Quando a lei do valor no sentido de Marx está operante, “o tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção se impõe com a força de uma lei natural reguladora, assim como a lei da gravidade se impõe quando uma casa desaba sobre a cabeça de alguém”[11].

Em 1943[12], Dunayevskaya desafiou a ideia de que a concentração de todo capital nas mãos do Estado torna possível aumentar a qualidade de vida dos trabalhadores[13]. O problema, ela dizia, é que a determinação dos valores dos produtos pelo tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção se imporá, independentemente do que os planejadores quiserem e independentemente do que incluírem no plano. Se o Estado tentar aumentar a qualidade de vida, então “o custo de produção de uma mercadoria sobe além do custo no mercado mundial adjacente. Então (…) a produção para porque a mercadoria não pode competir com uma mercadoria mais barata de uma economia produtora de valor, ou (…) a sociedade (…) será finalmente derrotada pelas nações capitalistas mais eficientes na forma atual da competição capitalista[,] que é a guerra imperialista total”. Para competir efetivamente no contexto do “mercado mundial, governado pela lei do valor”, o planejamento deve ser “governado pela necessidade de pagar o mínimo ao trabalhador (…) e extrair dele o máximo de mais-valor”. Enquanto for esse o caso, “esse é o tanto de tempo que as relações capitalistas existirão, não importa o nome que se dê a elas”.

As políticas econômicas que Preobrazhensky propôs 87 anos atrás, para um país que não existe mais, não são, é claro, de nenhum interesse em particular para nós hoje. Mas suas ideias sobre a transição do capitalismo para o socialismo ainda despertam interesse, por um outro motivo. Elas são um exemplo da visão de que mudanças políticas e/ou legais são os fatores determinantes na mudança social. Isto continua a ser uma opinião geral entre marxistas, anarquistas, autonomistas, etc.

Paresh Chattopadhyay — um importante estudioso de Marx — argumentou, penso que corretamente, que o conceito de transição de Preobrazhensky torna mudanças legais o fator determinante. Este o faz porque iguala o capitalismo a uma forma específica de propriedade, e o socialismo a uma forma diferente de propriedade. Mas formas de propriedade são relações jurídicas. No livro de Preobrazhensky, a transição do capitalismo para o socialismo é, portanto, concebida como a transição de uma forma legal de propriedade para outra forma legal de propriedade. A mudança na forma legal produz uma mudança no caráter da sociedade e uma mudança no caráter de suas relações de produção, e produz estas mudanças automaticamente, ou mais exatamente, como uma questão de definição.

Como Chattopadhyay expressa:

“Preobrazhensky concebe a economia de transição puramente em termos de mudanças nas relações (formas) de propriedade. (…) o capitalismo deve se transformar automaticamente em socialismo junto com elas. (…) Em outras palavras, as relações (formas) de propriedade são tomadas como uma variável independente no processo de transformação social. Preobrazhensky parece, portanto, estar sofrendo do que Marx denunciara há muito como “ilusão metafísica ou jurídica” em sua conhecida crítica de Proudhon[14].”

É interessante que Preobrazhensky abordou esta questão em um momento em seu livro. Ele levantou a questão: “Talvez a substituição da propriedade privada por propriedade social em todos os setores chave seja meramente um ato jurídico formal que não envolve nenhuma mudança na essência do sistema?” Ele, porém, fez essa pergunta apenas de maneira retórica. Evidentemente, ele a considerava um disparate muito grande para ser levada a sério.

Atualmente, a ideia de que a propriedade e controle estatais dos meios de produção são suficientes para “mudar (…) a essência do sistema”, que isto constitui o socialismo, é muito menos popular do que na época de Preobrazhensky, por motivos óbvios. Mas ideias de certa maneira similares continuam populares. Por exemplo, em meio à crise financeira global, alguns economistas de esquerda reivindicaram o controle estatal ou a nacionalização do sistema financeiro.

Rick Wolff pediu controle estatal e administração operária dos bancos. Segundo Wolff, “trabalhadores que também servissem em seus próprios conselhos de administração tomariam decisões diferentes (…) dos conselhos de administração tradicionais eleitos por acionistas”, “o bem-estar (…) dos trabalhadores (…) afastaria os lucros individuais (…) como o objetivo predominante”. Fred Moseley e John Weeks[15] apoiaram a nacionalização do sistema financeiro. Moseley argumentou que se o Estado estiver no controle dos bancos, eles podem ser transformados de instituições interessadas em maximizar os lucros em instituições que buscam objetivos de política pública. Assim, “[a] nacionalização dos bancos (…) poderia ser um passo importante na estrada para o socialismo”[16].

Mas não pode haver socialismo em um só país. O que acontece quando se tenta o socialismo em um só país é o capitalismo de Estado, um sistema comandado pelo Estado que ainda está incorporado na economia capitalista global, e que ainda está preso em uma batalha competitiva com capitais em outros lugares do mundo.

Um banco dirigido pelo Estado não deixa de ser um banco. Tem que obter fundos antes de emprestá-los e, para fazê-lo, deve proporcionar um retorno razoável para aqueles que o provêm com esses fundos. (Isto também é verdade para um banco administrado pelos trabalhadores) Mas isso quer dizer que suas decisões de investimento não podem se basear no que melhoraria o bem-estar dos trabalhadores ou nos objetivos de política pública. Se a melhoria no bem-estar dos trabalhadores ou o cumprimento dos objetivos de política pública reduzisse significativamente sua lucratividade em relação à lucratividade dos bancos com os quais ele compete — e é difícil imaginar circunstâncias nas quais isto não aconteceria –, um banco que se atrevesse a perseguir estes objetivos descobriria que credores e investidores não lhe proveriam com os fundos necessários para competir com sucesso, ou até mesmo para se manter solvente. Para sobreviver, um banco administrado pelo Estado (ou pelos trabalhadores) deve perseguir o objetivo da maximização de lucros, exatamente como qualquer banco.

A crença de que alterações políticas e/ou legais são os fatores determinantes na mudança social também assume várias outras formas que são muito populares hoje. Parece que a maioria das pessoas quer ver outro mundo, mas acham que ele pode vir a ser através de votação, ou com os trabalhadores se tornando seus próprios chefes, ou ao se pagar salários iguais a todos, ou através de quaisquer medidas políticas, legais e administrativas, sejam elas quais forem, que foram levados a crer que podem alcançar a redistribuição de poder e riqueza e realmente tornar suas vidas melhores.

E, na esquerda anticapitalista, a visão típica de como superar o capitalismo pode ser resumida conforme segue: primeiro, se muda a consciência das pessoas, ou sua consciência muda através de sua participação em novas formas de organização. A mudança na consciência nos permite aumentar nosso poder político ao ponto em que tomamos o controle, seja por meio de eleições ou pela tomada do poder. E assim que o nosso lado tem o poder político, podemos então mudar a natureza da economia e do Estado simplesmente ao decidirmos colocar as “pessoas à frente do lucro” e implantar o que decidirmos. Precisamos das formas políticas e das formas de organização corretas para realizar isto — e há muito debate sobre quais são as formas corretas de organização. Mas se tivermos as formas corretas de organização, então superar o capitalismo é uma questão simples. Nós decidimos, através destas formas de organização, o que deveria ser produzido e o que não deveria, decidimos como distribuir bens e recursos de forma justa, decidimos sobre outras prioridades sociais, e então simplesmente colocamos estas decisões em prática.

Esta imagem de mudança social está na cabeça de quase toda a esquerda anticapitalista, de vanguardistas a anarquistas.

O problema óbvio que é ignorado aqui é o problema das consequências indesejadas. Se você toma uma decisão e a implementa, você não pode pressupor que o resultado e as consequências serão as que você esperava ou queria. Como diz o ditado, de boas intenções o inferno está cheio. Afinal, ninguém — incluindo Stalin — queria transformar a URSS no monstro em que ela se tornou.

Agora, se as consequências indesejadas são apenas erros, pode ser possível corrigi-las com o passar do tempo através da experimentação, fazendo as coisas um pouco diferente e vendo se isso as melhora. Mas a experimentação não é uma solução se as consequências indesejadas são o resultado do fato de que as leis econômicas do capitalismo continuam a governar sua suposta nova sociedade. Se “o tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção (…) [continua a se impor] com a força de uma lei natural reguladora”, se você precisa pagar o mínimo aos trabalhadores e extrair o máximo — apesar de suas intenções — para competir efetivamente, haverá um fluxo contínuo de consequências indesejadas que você não será capaz de eliminar através da experimentação. Um país que tenta melhorar demais a qualidade de vida de seus trabalhadores não será competitivo. Bancos administrados pelo Estado que forem atrás de objetivos de política pública ao invés de maximizar o lucro, e bancos administrados por trabalhadores que tentarem melhorar o bem-estar dos trabalhadores ao invés de maximizar o lucro, não terão recursos. E assim por diante.

O problema aqui não é que você cometeu erros. Então a experimentação, corrigir os erros, não resolverá o problema. O problema é, na verdade, que, apesar de suas boas intenções, das novas prioridades, novas formas de organização, novas formas de propriedade, novas leis, e do nome novo que você dá à sua sociedade, ela continua capitalista. Continua capitalista porque as leis econômicas que governam o capitalismo continuam a governar sua sociedade. E continuam a governar sua sociedade porque novas prioridades, novas formas de organização, novas formas de propriedade e assim por diante não são o suficiente — isoladamente — para transcender as leis econômicas do capitalismo.

E isto, acima de tudo, é porque eu acho que precisamos de Marx hoje. Normalmente se diz que ele era um teórico do capitalismo, não do socialismo. Mas muito de sua obra pertence, direta ou indiretamente, ao conceito de uma nova sociedade. E, até certo ponto, ele descobriu o que seria realmente necessário para transcender o capitalismo. Nós ignoramos esse legado a nosso próprio risco.

Especificamente, Marx lutou contra o proudhonismo e tendências similares na esquerda por toda sua vida adulta. Ele não discordava de seus objetivos finais. Ele compartilhava desses objetivos. Mas ele travou uma luta infindável contra essas tendências porque achava que suas alternativas à sociedade existente não funcionariam. Seriam, simplesmente, o capitalismo em uma forma diferente ou seriam inviáveis e levariam de volta ao capitalismo. E o motivo pelo qual não funcionariam, argumentava, é que todas estas supostas alternativas ao capitalismo tentam se livrar do capitalismo sem se livrar do seu modo de produção.

Por exemplo, ele criticava a proposta de John Gray de se eliminar o dinheiro. Gray queria que houvesse um banco nacional que emitiria certificados denominados em tempo de trabalho. Os trabalhadores dariam os produtos que produziram ao banco e, em troca, o banco lhes daria certificados que eles poderiam usar para obter os produtos mantidos pelo banco. Se você entregasse produtos que levaram uma semana para serem produzidos, por exemplo, você receberia certificados que permitiriam a você retirar mercadorias que outros trabalhadores levaram uma semana para produzir.

Contra isto, Marx argumentou que, para realmente eliminar o dinheiro, é necessário eliminar o valor de troca, o que exige a eliminação das mercadorias, o que exige que se elimine a produção de mercadorias, o que exige que o trabalho seja diretamente social — em contraste à sociedade existente, na qual o trabalho privado se torna social indiretamente, por meio da troca de seus produtos[17]. Se o trabalho fosse diretamente social, “o valor de troca não se converteria em preço, mas tampouco o valor de uso chegaria a ser valor de troca; o produto não se tornaria mercadoria, e desse modo ficaria suprimida a própria base da produção burguesa”[18]. O problema é que a supressão do modo de produção burguês não é o que pensava Gray. O que ele tinha em mente era um sistema no qual “[o]s produtos (…) são criados como mercadorias, mas não (…) trocados como mercadorias”[19]. Em outras palavras, a proposta de Gray não funcionaria porque tentava mudar o sistema capitalista com a eliminação de seus efeitos, mas não das causas destes efeitos.

Quando resumiu estes e críticas similares em termos gerais, Marx tipicamente afirmou que mudanças nas relações de produção são o fator determinante; mudanças nas formas legais e políticas e mudanças na consciência são consequências das mudanças nas relações de produção. Por exemplo, no Prefácio à Contribuição, escreveu:

“A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. (…) A transformação que se produziu na base econômica transforma mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal superestrutura[20].”

Marx reafirmou isso no primeiro capítulo d’O Capital (ver nota 33 na edição da Boitempo).

Tais declarações são frequentemente construídas como determinismo econômico, ou se diz que negam a importância da subjetividade e da atividade humana. Não acho que seja assim. Afinal, são as pessoas que têm que mudar as relações de produção, e isso é atividade políticaconsciente. Acho que o ponto de Marx, na verdade, é este: primeiro, mudanças nas formas políticas e legais e mudanças na consciência não são elas mesmas mudanças nas relações de produção; segundo, se apenas elas foram alteradas, e não as relações de produção, as mudanças não serão bem-sucedidas em alterar o caráter da sociedade.

Acho que os pensamentos mais importantes de Marx sobre esta questão são aqueles em sua Crítica do Programa de Gotha. Esta Crítica é importante em parte porque contém uma declaração madura e uma das expressões mais desenvolvidas de sua opinião, oito anos após a publicação d’O Capital. Também é importante porque trata explicitamente dos respectivos papéis desempenhados pelo modo de produção e pelas relações políticas e legais na transformação da sociedade capitalista na sociedade socialista (“comunista”). E é importante porque é um documento político. Marx estava se opondo ao programa político do novo Partido Socialdemocrata Alemão unificado e, portanto, se opondo à unificação. E a base fundamental de sua oposição é o pedido do programa pela eliminação de um efeito chave do capitalismo, a distribuição de renda “injusta”, sem se livrar de suas causas.

O núcleo de todo seu argumento é que as noções de justiça, as relações jurídicas e a distribuição de renda de uma sociedade dependem de e correspondem a seu modo de produção. Com relação aos direitos e à lei (das Recht), ele comenta que “[o] direito nunca pode ultrapassar a forma econômica e o desenvolvimento cultural, por ela condicionado, da sociedade”[21]. A respeito das relações jurídicas, Marx escreve: “As relações econômicas são reguladas por conceitos jurídicos ou, ao contrário, são as relações jurídicas que derivam das relações econômicas?”[22] Ele também critica o Programa de Gotha por não “afirmar a sociedade existente (…) como base do Estado existente”[23] e a sociedade futura como a base do Estado futuro, mas ao invés disso, “afirmar o Estado (…) como uma coisa independente”[24].

E com relação à reivindicação do Programa de Gotha por “distribuição justa” da renda, Marx responde que o “trata[mento] [d]a distribuição como algo independente do modo de produção e, por conseguinte, de expor o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição” é “socialismo vulgar (…) herd[ado] da economia burguesa”[25]. Ele também escreve:

“O modo de produção capitalista (…) baseia-se no fato de que as condições materiais de produção estão dadas aos não trabalhadores sob a forma de propriedade do capital e de propriedade fundiária, enquanto a massa é proprietária somente (…) da força de trabalho. Estando assim distribuídos os elementos da produção, daí decorre por si mesma a atual distribuição dos meios de consumo. Se as condições materiais de produção fossem propriedade coletiva dos próprios trabalhadores, então o resultado seria uma distribuição dos meios de consumo diferente da atual[26].”

Tenha em mente que, para Marx, “propriedade coletiva” não é uma questão de título legal. Ele diz aqui que “as relações jurídicas derivam das relações econômicas”, e ele reconheceu, como observei anteriormente, a existência de “propriedade privada comunitária”.

Da maneira pela qual eu compreendo a Crítica, Marx argumenta que, para os meios de produção serem a propriedade coletiva dos trabalhadores, a troca dos produtos deve ser suprimida, o que requer a supressão do valor e da produção de valor, o que por sua vez exige que o trabalho se torne diretamente social, no sentido de que uma hora do trabalho de um trabalhador seja igual a uma hora do trabalho de todo trabalhador. E esta igualdade de trabalhos, novamente, não é o resultado de um decreto jurídico, mas de mudanças na base econômica da sociedade.

Não tenho tempo para explicar ou defender esta leitura aqui. Caso queiram, posso fazê-lo na discussão. Quero me debruçar agora sobre algo que Marx não disse na Crítica. Aqui está o que ele disse:

“Entre a sociedade capitalista e a comunista, situa-se o período da transformação revolucionária de uma na outra. A ele corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado[27].”

A transição política é a transição do Estado capitalista, que impõe o domínio da minoria sobre a maioria, a um Estado dos trabalhadores, que impõe o domínio da maioria sobre a minoria, à situação em que não há Estado. Assim que a sociedade capitalista tiver se transformado em sociedade socialista (isto é, a primeira fase do comunismo), não há classes sociais e, portanto, nenhuma necessidade para impor o domínio de classe. O Estado desaparece, fenece.

Então Marx se refere a uma transição, mas não a uma sociedade de transição. Há a transformação revolucionária da sociedade capitalista em sociedade comunista, e um correspondente período de transição. O mito de que ele era um defensor de uma sociedade de transição se baseia em uma confusão entre “transformação” e “transição”. Esta confusão pode ter se iniciado com Lenin. Em Estado e Revolução, Lenin citou o que Marx escreveu, e então comentou: “Agora a questão coloca-se de maneira um pouco diferente: a transição da sociedade capitalista, que se desenvolve em direção ao comunismo, para a sociedade comunista, é impossível sem um ‘período de transição política’, e o Estado deste período só pode ser a ditadura revolucionária do proletariado”[28].

Mas “transformação” e “transição” são conceitos diferentes. Uma transformação é uma mudança radical. Uma coisa se torna outra coisa. Isso é tudo. Como essa mudança ocorre não é parte do conceito de transformação em si. E a mudança não necessariamente ocorre por meio de uma transição. Se eu desligo o interruptor, eu transformo uma sala iluminada em uma sala escura.

Em todo caso, não acho que a ideia de uma sociedade de transição — uma sociedade intermediária entre o capitalismo e o socialismo — faça qualquer sentido no contexto do pensamento de Marx. Faz sentido em outras concepções dadas de capitalismo e socialismo, mas não nas de Marx. Por exemplo, a ideia de uma sociedade de transição faz todo o sentido se considerar, como Preobrazhensky, que o capitalismo é propriedade privada enquanto que o socialismo é propriedade estatal. Nesse caso, há de fato um terceiro tipo de sociedade entre elas, na qual há tanto propriedade privada como propriedade estatal. E a mudança do capitalismo para o socialismo é, assim, uma transição, de pouca a muita e a total propriedade estatal.

E há outras concepções de mudança social nas quais a ideia de uma sociedade de transição também faz todo o sentido. Por exemplo, uma ideia que se popularizou recentemente é que a nova sociedade é o processo completo da ocupação de espaços e do estabelecimento de novas formas de organização no espaço ocupado. Nesta concepção, há novamente um terceiro tipo de sociedade entre o capitalismo e a nova sociedade, uma sociedade com elementos de ambas, e a mudança do capitalismo para a nova sociedade é novamente um processo de transição — neste caso, o aumento quantitativo do espaço ocupado e das novas formas de organização.

Mas não acho que a ideia de uma sociedade de transição entre o capitalismo e o socialismo seja coerente como um conceito marxiano. Um Estado de transição entre o Estado capitalista e o não-Estado socialista faz todo o sentido como um conceito marxiano, mas uma sociedade de transição não.

A diferença tem a ver com a diferença que venho enfatizando nessa palestra: entre as formas políticas e jurídicas, de um lado, e o modo de produção, a base econômica da sociedade, de outro. Na visão de Marx, alterações nas formas políticas e jurídicas são produzidas por mudanças na base econômica da sociedade, e não o contrário.

A dominação política está radicada nos antagonismos de classe. Os antagonismos de classe estão, por sua vez, radicados na existência da divisão da sociedade em classes. E a divisão da sociedade em classes está radicada no modo de produção. Então a transição do Estado capitalista ao não-Estado socialista é inteligível, como um conceito marxiano, porque esta transição está baseada na e corresponde à transformação revolucionária do modo de produção. Assim que o modo de produção for transformado, a sociedade não estará dividida em classes; então, é claro, não haverá antagonismos de classe. E isso elimina a necessidade de um Estado no sentido próprio do termo. Há uma transição do domínio pela minoria, ao domínio pela maioria, ao domínio por todos.

Então a transformação do modo de produção capitalista no modo de produção socialista produz a transição do Estado capitalista ao não-Estado socialista. Mas que transformação do modo de produção capitalista no modo de produção socialista poderia produzir uma transição do modo de produção capitalista ao modo de produção socialista? Isso simplesmente não faz sentido.

Assim, não existe uma analogia genuína entre a transição política e a transformação revolucionária do modo de produção. Na visão de Marx e Engels, as relações de produção capitalistas são a base da existência do Estado. Então se a base se modifica, isto faz com que a superestrutura política e jurídica se modifiquem. Mas podemos dizer que, se a base se modificar, isso fará com que a base se modifique?[29] Não. Isso é um disparate incoerente.

O capitalismo se baseia no modo de produção capitalista; o socialismo se baseia no modo de produção socialista. Se houver um terceiro tipo de sociedade entre eles, qual é o seu modo de produção? O capitalismo é governado pela lei do valor (no sentido de Marx) e pelos imperativos econômicos relacionados que são específicos a ela. O socialismo não. E quanto ao terceiro tipo de sociedade, distinto, que supostamente está entre eles? Ele é governado por estas leis e imperativos especificamente capitalistas ou não?

Se a resposta é que a sociedade de transição é governada parcialmente por eles, me deixe perguntar: uma mulher que carrega um feto está apenas parcialmente grávida? A lógica do capital é totalizante. Os fracassos do capitalismo de Estado e dos Estados de bem-estar social demonstraram que eles não podem controlar esta lógica. Ela derruba todas as muralhas da China, cria um mundo à sua própria imagem. Então eu consigo com certeza imaginar um estado de fluxo instável no processo de transformar o capitalismo no socialismo, um estado de fluxo no qual as leis e imperativos econômicos do capitalismo ainda não foram completamente desmantelados. Mas eu não consigo imaginar um terceiro tipo de sociedade — tão distinta de um estado de fluxo — na qual as leis e imperativos econômicos do capitalismo tanto operam quanto não operam.

Não estou dizendo que tudo tem que mudar de uma só vez. Não estou negando que algumas mudanças devem ser graduais. Meu ponto é, na verdade, que a “sociedade de transição” é incoerente como um conceito marxiano. Não ajuda, pelo contrário, prejudica, os esforços para compreender e voltar à perspectiva da transformação revolucionária da sociedade que Marx projetou.


[1] Transcrição de palestra ministrada por Kliman em Ljubljana, Eslovênia, em 27 de abril de 2013, disponível no youtube. Kliman não é um comunista de esquerda, porém esta palestra aborda um tema relevante para o comunismo de esquerda.

[2] [N.T.] O livro foi publicado no Brasil em 1979, com o nome A Nova Econômica, pela editora Paz e Terra, porém não conseguimos acesso a esta edição.

[3] [N.T.] Kliman usa “marxiano” como sinônimo de “marxista” em vários momentos de sua palestra. 

[4] Karl Marx e Friedrich Engels, A Ideologia Alemã, Boitempo, 2007, p. 90.

[5] Karl Marx, O capital: crítica da economia política: livro II: o processo de circulação do capital, Boitempo, 2014, p. 195.

[6] Karl Marx, Notas sobre Wagner, Verinotio — Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas, Ano XII, nov./2017, v. 23, n.2, p. 266.

[7] Karl Marx, O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital, Boitempo, 2013, p. 703.

[8] Friedrich Engels, Anti-Dühring, Boitempo, 2015, p. 314–315.

[9] Karl Marx, O capital: crítica da economia política: livro III: o processo global da produção capitalista, Boitempo, 2017, p. 907–908.

[10] Marx, 2013, p. 154. Essa tradução usa “socializados” ao invés “associados”.

[11] Marx, 2013, p. 150.

[12] Apesar de Dunayevskaya ter escrito o primeiro rascunho deste artigo em 1943, ele não foi publicado até o final de 1946 e o início de 1947.

[13] Raya Dunayevskaya, The Nature of the Russian Economy (https://www.marxists.org/archive/dunayevskaya/works/1946/statecap.htm).

[14] Paresh Chattopadhyay, “Socialism and Value Categories in Early Soviet Doctrine: Lenin, Trotsky, Bukharin, Preobrazhensky”, in Alan Freeman, Andrew Kliman & Julian Wells (eds.), The New Value Controversy and the Foundations of Economics, Cheltenham, UK, Edward Elgar, 2004.

[15] https://tinyurl.com/y86py8z9.

[16] https://tinyurl.com/y9wlft4t.

[17] Karl Marx, Contribuição à Crítica da Economia Política, 2ª edição, Expressão Popular, 2008, p. 107–118.

[18] Ibid., p. 117.

[19] Ibid.

[20] Ibid., p. 47–48.

[21] Karl Marx, Crítica do Programa de Gotha, Boitempo, 2012, p. 31.

[22] Ibid., p. 27.

[23] Ibid., p 42.

[24] [N.T.] Essa passagem não foi encontrada nem na tradução inglesa nem na tradução brasileira; provavelmente se trata de uma adaptação da passagem da p. 33, onde Marx critica o socialismo vulgar por “tratar a distribuição como algo independente do modo de produção”.

[25] Ibid., p. 33.

[26] Ibid., p. 32–33.

[27] Ibid., p. 43, ênfase minha.

[28] https://tinyurl.com/yclktuyq. Na edição brasileira disponível na internet, diferentemente das edições em inglês e da edição portuguesa, adota-se o termo “passagem” ao invés de “transição”.

[29] [N.T.] Parece se tratar de um ato falho de Kliman; imaginamos que ele queria dizer “que, se a superestrutura se modificar, isso fará com que a base se modifique?”.

Tradução feita pelo Coletivo Proelium Finale.
https://medium.com/@Proelium/a-incoer%C3%AAncia-da-sociedade-de-transi%C3%A7%C3%A3o-como-conceito-marxiano-a26f024ddfee

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