A Gestão Operária – Paul Mattick (1969)

Publicado em: Anti-Bolshevik Communism. Paul Mattick, Merlin Press, 1978. A presente versão foi retirada do livro Integração capitalista e ruptura operária. Porto: As Regras do Jogo, 1977.

I

Segundo a teoria socialista, o desenvolvimento do capitalismo provoca a polarização da sociedade numa pequena minoria de possuidores de capital e numa vasta maioria de assalariados e, consequentemente, o gradual desaparecimento das classes médias – artesãos independentes, pequenos camponeses, pequenos comerciantes, todos proprietários. No contexto da sociedade industrial moderna, esta crescente concentração da propriedade dos meios de produção e da riqueza social apresenta-se como uma espécie de reencarnação do sistema feudal. Devido ao facto de possuírem e gerirem os recursos produtivos e, portanto, assumirem a direção dos negócios, um pequeno número de homens dispõe soberanamente da sorte da sociedade. É claro que as decisões que tomam são simultaneamente ditadas pelo poder impessoal do mercado e pelas necessidades imperiosas da acumulação do capital, mas não deixa de ser verdade que o privilégio de fazerem face a estas reações irreprimíveis da economia lhes pertence única e exclusivamente.

Com base nas relações capital trabalho, que caracterizam a ordem estabelecida, os produtores estão privados de toda a autoridade direta sobre a produção e sobre os produtos do seu trabalho. É evidente que as lutas a cabo com vista a uma melhoria da situação, ao modificarem a relação salário-lucro e por isso, o curso ou o ritmo da expansão do capital, podem permitir-lhes em determinados momentos o exercício de um poder indireto. Mas, regra geral, é o capitalista que determina as condições de produção e os trabalhadores têm que se inclinar perante elas para assegurarem a sua subsistência, em virtude de apenas possuírem a venda da sua força de trabalho como meio de existência. É claro que o operário é “livre” de não consentir na sua própria exploração, mas isso só significa que é livre de morrer de fome, eis tudo. E isto já se sabia muito tempo antes do aparecimento do movimento socialista. Desde 1767 que Simon Linguet constatava ser o trabalho assalariado uma forma de escravatura ou pior ainda. “É a impossibilidade de poderem viver de outro modo – escrevia ele – que obriga os nossos trabalhadores a cavarem a terra da qual não comerão os frutos e os nossos pedreiros a erguerem edifícios onde jamais habitarão. É a miséria que os arrasta até aos mercados onde aguardam senhores dispostos à graça de os comprarem. É ela que os ajoelha junto dos ricos para obterem a permissão de os enriquecerem”[1]. A propósito de “operário manual” Linguet exclamava: “Qual o ganho efetivo que a supressão da escravatura lhe trouxe? (…) É livre! – dizeis vós. Mas é essa a sua infelicidade! (…) O escravo era precioso ao seu senhor em razão do dinheiro que lhe custara. Mas o operário nada ao rico voluptuoso que o ocupa”[2]. E conclui, ainda a propósito dos mesmos operários: “Estes, diz-se, não possuem dono. Ora isto é um simples abuso de palavras. O que quer isto dizer? Que têm um dono e o mais imperioso de todos: a necessidade. Esta obriga-os à mais cruel dependência”[3]. Dois séculos após estas linhas terem sido escritas nada do essencial mudou. Se os trabalhadores dos países avançados são obrigados a suportar as leis do capital e a obedecer aos capitalistas, não é de modo algum por devoção mas tão só por serem assalariados; não dispondo de meios de produção, continuam a formar uma classe dirigida, incapaz de forjar o seu próprio destino.

Desde sempre os socialistas perfilharam como objetivo a alcançar a abolição do salariato e, portanto, o fim do capitalismo. O movimento operário nascido no decurso da segunda metade do último século incumbiu-se de realizar esta transformação social por intermédio da socialização dos meios de produção. Tratava-se de substituir um modo de produção baseado na procura do lucro por um outro que tendesse a satisfazer as necessidades e aspirações dos produtores associados. À economia do mercado sucederia assim uma economia planificada. A partir de então a existência dos homens e o desenvolvimento da sociedade deixariam de ser regidos pela expansão e contração do capital, elevado à categoria de fetiche, mas pelas decisões coletivas dos produtores, tomadas com conhecimento de causa, no quadro duma sociedade sem classes.

Produto da sociedade burguesa, o movimento operário encontrava-se fatalmente submetido às vicissitudes do desenvolvimento capitalista. Consequentemente, os seus traços distintivos variam em função da conjuntura e das suas flutuações. Quando numa determinada época, em certa região, esta conjuntura não é favorável à aparição de uma consciência de classe, o movimento ou não se desenvolve ou desaparece mesmo completamente. Em tempo de prosperidade tende a transformar-se e acaba por passar das posições revolucionárias ao reformismo. Em tempo de crise social corre o risco de ser aniquilado pela repressão que as classes dirigentes lançam contra ele.

As organizações operárias constituem parte integrantes da estrutura geral da sociedade. É-lhes portanto impossível ser anti-capitalista de um modo sistemático e intransigente, salvo no plano ideológico. Só mostrando-se oportunistas poderão vir a adquirir uma importância real no seio do sistema capitalista, quer dizer, aproveitando-se de certos processos sociais para realizarem os seus objetivos próprios, mas até hoje limitados. A formação, necessariamente lenta, de poderosas organizações, que reuniriam os elementos revolucionários, com vista a uma intervenção no momento propício, parece se excluir. Só as organizações que de modo algum procuram transformar as relações fundamentais têm a possibilidade de crescer e prosperar. Se alguma vez se apoiaram, no começo, numa ideologia revolucionária, o seu desenvolvimento provoca entre essa ideologia e a função que elas realmente desempenham um afastamento crescente. Opostas ao status quo, mas organizadas no seio dele, estas formações estão, ao fim e ao cabo, condenadas a deixarem-se integrar no modo de produção capitalista na própria proporção do seu sucesso.

No fim do século, as organizações tradicionais – partidos e sindicatos operários – tinham abandonado a via revolucionária. Apenas uma pequena corrente de esquerda se mantinha no seu seio ligada às posições radicais. Lenin e Rosa Luxemburgo lançaram-se num combate doutrinal contra o evolucionismo reformista e oportunista, daí em diante característico das organizações existentes, e por um retorno à prática revolucionária. Enquanto o primeiro pretendia alcançar esse resultado por meio de um partido de tipo novo, estritamente submetido a um Comité Central, Rosa Luxemburgo punha a tônica na autodeterminação do proletariado, quer em geral quer no interior das organizações socialistas, e atribuía como condição primeira para esse retorno a eliminação da burocracia e a intervenção direta da base.

Como os partidos existentes haviam feito do marxismo a sua ideologia, algumas das tendências opostas à sua política tomaram igualmente posição contra as versões reformistas e revisionistas das teorias de Marx. Georges Sorel[4] e os seus sindicatos revolucionários, pelo seu lado, diziam-se convencidos não só da capacidade de emancipação do proletariado sem o auxílio da “intelligentsia”, mas ainda preconizavam que aquele se devia desembaraçar dos elementos pequeno-burgueses que habitualmente dirigiam as organizações operárias. Os sindicalistas revolucionários opunham-se ao parlamentarismo e, segundo Georges Sorel, a entrada dos socialistas no governo em nada viria modificar a condição dos trabalhadores. Estes só conquistariam a liberdade agindo por e para si mesmos. A indústria capitalista, afirmava Sorel, organizara já o proletariado no seu conjunto, tudo quanto faltava era abolir o Estado e a propriedade privada. E para isso ser-lhe-ia necessário possuir a certeza, em todo o caso intuitiva, de que a revolução e o socialismo seriam o termo inevitável de todas as lutas, muito mais do que um conhecimento pretensamente científico das leis fatais do movimento social. Nesta perspectiva a greve aparecia como o grande meio de aprendizagem. E aumentando as greves em número, em amplitude e tempo, abrir-se-ia então a possibilidade de uma greve geral, isto é, de uma revolução social eminente.

Em muitos aspectos o sindicalismo revolucionário francês e as tendências a que deu origem, o socialismo de guilda em Inglaterra e os Industrial Workers of the World nos Estados Unidos, constituíram reações à burocratização cada vez maior do movimento socialista assim como à sua política de colaboração de classes. Igualmente os sindicatos se viam atacados devido à sua estrutura centralista e à propriedade atribuída às reivindicações corporativas em detrimento dos interesses de classe do proletariado. Mas todas as organizações – reformistas ou revolucionárias, centralistas ou federalistas – se inclinavam para considerarem o respectivo desenvolvimento de atividades do dia-a-dia como fatores essenciais da transformação social. Quanto à social-democracia, via a progressiva realização do socialismo no crescimento dos efetivos e do aparelho do partido, nos progressos eleitorais e numa maior participação na vida pública. Por seu lado, os I.W.W. eram de opinião que o desenvolvimento da sua organização e a passagem ao estádio de “grande sindicato único”(One Big Union) significariam ipso facto “a formação da sociedade nova no seio da antiga”[5].

Todavia durante a primeira revolução do séc. XX, foi a massa de trabalhadores não organizada que determinou o caráter do movimento e engendrou a sua própria forma de organização: os conselhos operários. Os conselhos russos, ou sovietes, da revolução de 1905 surgiram no contexto de uma vaga de greves espontâneas, quando a necessidade impôs a constituição de comitês encarregados de coordenarem a ação e capazes de representarem os grevistas junto do patronato e autoridades czaristas. Tratava-se de greves espontâneas no sentido em que, longe de haverem rebentado sob a ordem de formações políticas ou sindicatos, foram desencadeadas por operários não organizados que apenas possuíam o local de trabalho como base de organização possível. Nesse tempo os partidos políticos não exerciam, na verdade, uma influência digna deste nome sobre a massa dos trabalhadores russos e os sindicatos apenas existiam em estado embrionário. Trotsky deixou-nos esta excelente definição do Soviete de 1905: “O Conselho dos Deputados Operários foi criado para responder a uma necessidade objetiva, suscitada pela conjuntura da época: faltava uma organização que usufruísse de uma autoridade indiscutível, livre de qualquer tradição, que agrupasse imediatamente as multidões disseminadas e desprovidas de qualquer ligação. Esta organização tinha que ser um complemento para todas as correntes revolucionárias no interior do proletariado; teria de ser capaz de iniciativa e vigilância eficazes. O essencial, enfim, era poder fazê-la atuar em menos de vinte e quatro horas”[6]. E Trotsky faria mais tarde esta distinção: enquanto os partidos revolucionários são “formações no interior do proletariado” o “Soviete torna-se imediatamente a própria organização do proletariado[7].

É claro que a revolução de 1905 foi na sua essência uma revolução burguesa: usufruiu do apoio das classes médias liberais que procuravam a queda do absolutismo czarista e contavam com uma assembleia constituinte que fizesse evoluir a Rússia no sentido do ideal que perfilhavam: as condições predominantes nos países mais desenvolvidos. Na medida em que os operários em greve se preocupavam com política, adotaram em grande parte o programa da burguesia liberal. Tal era igualmente o caso de todas as organizações socialistas que admitiam a necessidade de uma revolução burguesa como condição obrigatória para a formação de um movimento operário vigoroso e uma revolução proletária que se desenvolveria mais tarde, quando a situação estivesse suficientemente apta para isso.

O esmagamento da revolução russa provocou a liquidação do sistema dos sovietes, mas este viria a reaparecer, mais poderoso do que nunca, quando da revolução de 1917. Organismos análogos aos sovietes russos e inesperados no seu exemplo surgiram “espontaneamente” no momento da revolução alemã em 1918 e igualmente – embora com menor amplitude – durante as graves convulsões sociais que então sacudiram a Inglaterra, a França, a Itália e a Hungria. Viu-se assim aparecer uma forma de organização capaz de dirigir e coordenar a ação autônoma das massas, quer com objetivos restritos quer com fins revolucionários. Consoante as suas opções, os novos organismos ora agiam de fora, ao lado, ou ainda contra as formações tradicionais. O que é importante acentuar é que o sistema de conselhos demonstrou que as atividades espontâneas das massas não estão fatalmente condenadas a soçobrar na incoerência, mas podem, em caso de vitória, conduzir a um tipo de organização estruturada, mesmo que provisória.

A revolução russa de 1905 comunicou um novo vigor às oposições de esquerda que se manifestavam no seio dos partidos socialistas do Ocidente, que viriam, no entanto, a acentuar mais o caráter espontâneo das greves de massa do que a forma de organização escolhida. Aparecendo a revolução como uma possibilidade real, foi a atração reformista que sofreu um primeiro golpe. No que diz respeito ao Ocidente, a Esquerda afirmava que daí em diante a revolução seria puramente proletária e nunca mais democrática burguesa. Contudo, mesmo segundo esta ótica, não se chegou ao ponto de concluir da experiência russa e dos seus ensinamentos positivos a necessidade de uma renúncia aos métodos parlamentares, tanto do agrado dos partidos reunidos na Segunda Internacional.

II

A perspectiva de um renascimento da prática revolucionária no Ocidente não deveria, no entanto, tardar a mostrar-se ilusória. Os “revisionistas” não eram os únicos a professar, segundo a fórmula do seu chefe de fila, Bernstein, que “o movimento é tudo, o objetivo nada”. Igualmente os chamados marxistas ortodoxos julgavam que a revolução social não era desejável nem necessária. Embora se afirmassem fiéis ao velho ideal – a abolição do salariato – pretendiam, porém, realizá-lo pouco a pouco, fazendo uso dos meios legais que as instituições democráticas lhes ofereciam. No final de tudo, quando a massa dos eleitores se houvesse pronunciado a favor de um governo socialista, bastariam alguns decretos vindos de cima para instaurar a nova sociedade. Enquanto o aguardavam, a ação sindical e a legislação social permitiam também ao princípio da concorrência generalizada que regia da parte que lhes cabia no progresso.

Os sofrimentos e as misérias inerentes ao capitalismo do “laissez-faire” não provocaram somente a criação de um movimento socialista, mas levaram também os trabalhadores a tentar uma melhoria de vida por meios não políticos. Entre estes últimos figuravam, além das diversas formações sindicais, as cooperativas operárias através das quais se esperava – mas em vão – escapar não só à condição assalariada como também ao princípio da concorrência generalizada que regia a sociedade burguesa. Este movimento originou-se a partir de pequenas coletividades comunistas surgidas na França, Inglaterra e América e que se inspiravam nas ideias dos socialistas utópicos, Owen e Fourier especialmente.

As cooperativas de produção eram associações fundadas sobre o princípio da adesão voluntária e gestão autônoma. Algumas delas constituíram-se fora do movimento operário, outras em ligação com ele. Após a colocação em comum dos recursos, os seus membros estavam automaticamente – pensava-se – à altura de se regerem por si próprios e produzirem sem intervenção de capitalistas. O que simplesmente significava uma abstração das condições gerais e das tendências evolutivas da sociedade capitalista, a quais logo de início viriam a conferir àquelas organizações, um mero papel marginal. Na verdade, o desenvolvimento capitalista tem por base a concentração e a centralização do capital sob o estimulo da concorrência: os capitais mais importantes devoram os mais pequenos. Assim, as sociedades cooperativas apenas se poderiam constituir nas pequenas indústrias, que não necessitavam de grande capital. E acentuando-se o domínio do capitalismo sem cessar sobre todos os setores da indústria, estas cooperativas em breve vieram a perder toda a capacidade de enfrentar a concorrência, e desapareceram do circuito de produção.

As cooperativas de consumo tiveram mais êxito e algumas de entre elas absorveram mesmo cooperativas de produção com vista ao seu aprovisionamento. De qualquer modo não se podem considerar como ensaios de gestão operária, mesmo nos casos em que a sua criação correspondeu ao coroamento de aspirações da classe trabalhadora. Quando muito, vieram permitir alguma influência sobre a maneira de dispor dos salários – visto que os trabalhadores correm o perigo de serem roubados duas vezes no local de produção e no local de consumo. Os custos de circulação das mercadorias representam falsos-custos inevitáveis da produção e estão na origem da divisão dos capitalistas em comerciantes e empresários. Uns e outros procuram realizar um máximo de lucro na sua própria esfera de ação e existe confronto de interesses entre ambos os grupos. Os empresários não veem portanto nenhum inconveniente na existência de cooperativas de consumo. Em geral esforçam-se mesmo por porem termo à separação entre capital produtivo e capital comercial, pela combinação das respectivas funções no seio de sociedades encarregadas de operações de produção e venda.

Finalmente absorvido pelo sistema, o movimento cooperativo constituiu em larga medida um elemento do desenvolvimento capitalista. Os próprios economistas burgueses viram nele um fator de conservação social, dado que encorajava a poupança junto das categorias mais pobres da população, estimulava a atividade pela criação de estabelecimentos de crédito mútuo, melhorava os rendimentos agrícolas graças à produção cooperativa e à organização das vendas e levava ainda a classe operária a interessar-se pela esfera do consumo, em detrimento da produção. Na sua qualidade de instituições funcionando segundo as normas capitalistas, as cooperativas operárias conheceram um verdadeiro desenvolvimento e acabaram por se tornar numa forma de empresa como as outras, baseadas na exploração da mão-de-obra e opondo-se aos trabalhadores quando estes se punham em greve a fim de obterem melhoria de salários e condições de trabalho. Contrariamente ao ceticismo, ou mesmo à oposição categórica, tomada primeiramente face às cooperativas de consumo o movimento operário reformista concedeu-lhe de seguida um decidido apoio que apenas era mais uma manifestação do seu caráter cada vez mais “capitalista”. Na Rússia, no entanto, a rede muito espalhada destas cooperativas viria a fornecer aos bolcheviques um sistema de distribuição que não tardariam em converter em administração estatal.

De certo modo, a divisão do movimento “coletivista” em cooperativas de consumo e cooperativas de produção refletia o antagonismo existente entre o sindicalismo revolucionário e os partidos socialistas. As primeiras reuniam todas as classes sociais e visavam todo o gênero de clientela. Tão pouco hesitavam em pronunciar-se por uma centralização à escala nacional ou mesmo internacional. Em contrapartida, as segundas possuíam um mercado tão restrito como a sua produção e não se podiam integrar, com vista à formação de unidades mais importantes, sem perderem as possibilidades de autogestão que constituíam afinal a sua razão de ser.

Sindicalistas revolucionários e socialistas diferiam antes de mais nada pela ideia que tinham respectivamente do controle exercido pelos operários sobre a produção e sobre o produto do seu trabalho. Na medida em que os socialistas ainda se preocupavam com este problema, resolviam-no a seu modo, dando prioridade ao conceito de nacionalização, segundo o qual o Estado, promovido a gerente dos recursos produtivos, ficaria encarregado da organização da vida econômica no seu conjunto, quer no plano da produção quer no da distribuição. Seria somente num estado de desenvolvimento mais avançado que este sistema daria lugar ao desaparecimento do Estado e à livre associação dos produtores socializados.

Quanto aos sindicalistas revolucionários, temiam que o Estado, possuindo então o domínio sobre tudo, se viesse a perpetuar e a impedir a livre disposição dos trabalhadores. Essa a razão porque pretendiam uma sociedade em que cada setor da indústria fosse gerido por aqueles que nele trabalhassem. Todas estas associações de produção unir-se-iam para a formação de federações nacionais cujos organismos, longe de serem dotados de prerrogativas governamentais, só cumpririam funções estatísticas e administrativas. Nesta base, um sistema de produção e distribuição autenticamente coletivista poderia finalmente desenvolver-se. O sindicalismo revolucionário adquiriu importância na Espanha, na Itália e na França. Igualmente influiu em todos os países capitalistas, por vezes assumiu uma forma modificada, como já o observamos a propósito dos I.W.W e do Guild Socialism. Por colocar a tônica na ação direta e numa atividade decididamente militante, o sindicalismo revolucionário separava-se do socialismo parlamentarista e do sindicalismo tradicional no que dizia respeito não só ao objetivo final, mas também à luta de classe cotidiana.

Ainda que a questão do objetivo final não tivesse um interesse imediato, não deixava, porém, de influenciar o comportamento das partes em questão. A rápida burocratização dos partidos socialistas e dos sindicatos, ambos centralizados, viria a privar cada vez mais os operários da sua capacidade de iniciativa e a submete-los a dirigentes beneficiando das condições de vida e trabalho totalmente diferentes. Ao mesmo tempo que os sindicatos rompiam os seus laços de outrora com o movimento socialista, degeneravam em business unionism, em “sindicalismo de regateio”, assumindo daí em diante as únicas funções de negociadores de convenções coletivas e, se possível, a de monopolizadores de contrato. Quanto ao sindicalismo revolucionário, se sofreu uma burocratização infinitamente menor, não foi só devido ao fato de ser o mais fraco numericamente entre as duas correntes que constituíam o movimento operário, mas porque o princípio da autogestão operária não deixou igualmente a influir nos seus métodos de luta cotidiana.

Dado que no modo de produção capitalista os trabalhadores estão; por definição, privados de todo o poder efetivo no seio da sociedade, falar de gestão operária num tal contexto apenas pode significar uma coisa: que as organizações operárias sejam dirigidas pelos próprios operários. Ora, depreende-se da integração destas organizações no sistema, tornadas “propriedade” de uma burocracia e grande meio da sua existência e reprodução, que a única forma concebível de gestão operária direta desaparece. É claro que isso não vem impedir os operários de se continuarem a bater pelo aumento de salários, pela redução do horário de trabalho e pela melhoria das condições em que este se realiza. Mas esta luta em nada altera o fato de os operários não possuírem a menor possibilidade de dirigirem as suas próprias organizações. É, portanto, abusivo pretender que estas lutas sejam uma forma de gestão operária, na medida em que não tendem para a autodeterminação da classe trabalhadora, mas tão só procuram aligeirar a sua situação no contexto do capitalismo. E este desanuviamento tem como condição obrigatória uma elevação da produtividade do trabalho, a qual deve ser mais rápida do que o ritmo de aumento dos níveis de vida operários.

Os capitalistas continuam a exercer uma autoridade total quer sobre as condições de trabalho quer sobre a parte da produção geradora de mais-valor. Quando os operários alcançam uma diminuição do horário de trabalho, de modo algum estão a reduzir a quantidade de sobretrabalho açambarcado pelos capitalistas. Na verdade, os capitalistas dispõem de dois métodos para extrair sobretrabalho: ou alargando a duração do trabalho, ou encurtando, graças às inovações em matéria de técnica ou organização de trabalho, o tempo exigido para a produção do equivalente da massa salarial. Como é imprescindível que o capital ofereça uma determinada taxa de lucro, os capitalistas pararão a produção a partir do momento em que esta taxa ameace decrescer. Estreitamente submetidos à necessidade de acumular capital, veem-se simultaneamente constrangidos a agir de um modo tal que permita aos operários produzirem a soma de sobretrabalho indispensável à alimentação do processo de acumulação. O capitalista tenta obter o máximo de lucro, mas, por diversas razões, entre as quais a resistência oferecida pelos trabalhadores à exploração suscitada pela procura de um lucro ótimo, corre o perigo de só extrair o mínimo. Porém, enquanto se situar no terreno do capitalismo, a resistência operaria não pode esperar resultados melhores do que estes. Se os operários acabaram por perder toda a autoridade no seio das suas organizações, a causa disso foi, é evidente, a sua complacência face ao modo de produção capitalista. Organizados ou não, os trabalhadores tomaram partido pela economia de mercado que se revelava capaz de lhes melhorar a condição e ainda prometia à medida que progredisse. Numa situação não revolucionária deste gênero, os partidos socialistas reformistas e os sindicatos de estrutura centralizada constituíam o tipo de organização eficaz. E, por outro lado, a burguesia lúcida via no businesse unionism o meio ideal de fazer reinar a paz social graças à conclusão de convenções coletivas. Deixando face diretamente operários, os capitalistas tinham daí em diante pela frente os seus representantes, cuja existência estava ligada à das relações capital-trabalho, ou seja, à perpetuação da ordem capitalista.

III

Se os operários acabaram por perder toda a autoridade no seio das suas organizações, a causa disso foi, é evidente, a sua complacência face ao sistema capitalista. Organizados ou não, os trabalhadores tomaram partido pela economia de mercado que se revelava capaz de lhes melhorar a condição e ainda prometia melhor à medida que progredisse. Numa situação não revolucionária deste gênero, os partidos socialistas reformistas e os sindicatos de estrutura centralizada constituíam o tipo de organização eficaz. E, por outro lado, a burguesia lúcida via no business unionism o meio ideal de fazer reinar a paz social graças à conclusão de convenções coletivas. Deixando de fazer face diretamente aos operários, os capitalistas tinham daí em diante pela frente os seus representantes, cuja existência estava ligada à das relações capital-trabalho, ou seja, à perpetuação da ordem capitalista. Os trabalhadores, ao aprovarem as suas novas organizações, mostraram assim haverem abandonado a preocupação de transformar a sociedade. Ao mesmo tempo, a ideologia socialista já não expressava as verdadeiras aspirações das massas trabalhadoras. Este estado de coisas foi posto a nu, de modo dramático, pelo acesso de chauvinismo de que a classe operária de todos os países capitalistas deu provas quando do desencadear da primeira guerra mundial.

Na base das concepções que a corrente de esquerda do movimento operário professava, havia aquilo que os seus adversários reformistas gostavam de qualificar de “política da catástrofe”. Os revolucionários confiavam não só numa degradação do nível de vida operário, mas também em crises econômicas tão devastadoras que não deixariam de provocar convulsões sociais, as quais levariam finalmente à revolução. Na ausência desta necessidade objetiva, a revolução – diziam – era perfeitamente inconcebível. E, na verdade, as revoluções que se seguiram à primeira guerra mundial tiveram a sua origem na catastrófica situação em que as potências imperialistas mais fracas se encontravam mergulhadas. Pela primeira vez na história elas tiveram que colocar a questão da gestão operária e fazer da realização prática do socialismo uma possibilidade real.

A revolução russa de 1917 foi a consequência de movimentos de revolta espontâneos contra as condições de vida cada vez mais intoleráveis que a guerra e a derrota impunham à população. Uma longa série de greves e manifestações originaram um levantamento geral que veio a beneficiar do apoio de certas unidades do exército e provocou a queda do regime czarista. No entanto, os membros do primeiro governo provisório eram todos originários da burguesia que em boa parte tinha apoiado a revolução. Nem os partidos socialistas nem os sindicatos haviam tomado a iniciativa do movimento, se bem que nele viessem a ter um papel mais importante do que o que haviam assumido doze anos antes.

Em 1917, como em 1905, os sovietes nunca pensaram em substituir-se imediatamente ao governo. Mas à medida que o processo revolucionário ganhava terreno, vinham a assumir responsabilidades cada vez maiores. Na prática, havia dualidade e poder entre sovietes e governo. Continuando a situação a degradar-se e o movimento a radicalizar-se, enquanto os partidos burgueses e socialistas não decidiam qual a atitude a tomar, rapidamente os bolcheviques conquistaram a maioria dos sovietes-chave. E foi o golpe de Estado de Outubro que pôs termo à fase democrático-burguesa da revolução.

Foi devido ao fato de terem adotado como incondicionalmente seus os objetivos das massas revoltadas, – isto é, o fim da guerra e a expropriação da propriedade rural, seguida da distribuição da terra aos camponeses pobres – que os bolcheviques puderam exercer uma influência crescente no movimento revolucionário. Desde o seu regresso à Rússia, em Abril de 1917, Lênin deu claramente a compreender que, segundo a sua opinião, o poder dos sovietes estava destinado a substituir o regime democrático burguês. No entanto, ao convidar os seus partidários para o golpe de Estado, falou não no poder para os sovietes mas simplesmente para os bolcheviques. Sendo a maioria dos deputados soviéticos bolcheviques ou simpatizantes, era lógico, para ele, que o governo formado pelos sovietes ficaria nas mãos do seu partido. E assim aconteceu, sabe-se, apesar da presença no governo de alguns socialistas-revolucionários e mencheviques de esquerda. Mas para que os bolcheviques pudessem continuar a dirigir o país, era necessário que camponeses e operários os continuassem a eleger nos sovietes. Ora isto era uma coisa já menos certa. Após haverem recolhido a maioria dos sufrágios, não estariam os bolcheviques ameaçados por uma sorte idêntica à dos mencheviques e socialistas revolucionários, caso se viessem a encontrar de repente numa posição minoritária? Assim, o único meio de conservar definitivamente o poder consistia em assegurar o monopólio do governo. Os bolcheviques não hesitaram.

Todavia, assim como Lênin estabelecera uma relação de identidade entre poder dos Sovietes e poder do partido, do mesmo modo não viu no monopólio das funções governamentais pelo Partido nada mais do que a organização de um regime soviético. Ou seja, apenas existia uma alternativa: ou o Estado parlamentar de estilo burguês e o capitalismo, ou um governo operário e camponês, capaz de impedir qualquer retorno ao reinado da burguesia. Considerando-se como a vanguarda do proletariado e considerando este último como a vanguarda da “revolução popular”, os bolcheviques pretendiam realizar em proveito dos operários e camponeses aquilo que estes corriam perigo de, por si sós, não poderem fazer. Com falta de discernimento, não se deixariam os sovietes seduzir pelas promessas da burguesia liberal e seus aliados, os social-reformistas, e não cederiam assim o poder? A revolução só manteria portanto o seu caráter “socialista” desde que fossem os bolcheviques a conservar o poder e, para isso, era necessário acabar com todos os elementos de oposição no seio e fora dos sovietes. Em pouco tempo o regime soviético transformou-se numa ditadura de partido. Os sovietes, assim esvaziados de sentido, foram mantidos num simples plano formal para camuflar a realidade.

Ainda que a principal palavra de ordem dos bolcheviques fosse “Todo o poder aos sovietes!” o novo governo reduziu o seu significado, restringindo-o a um mero controle operário. E pôs-se circunspectamente a aplicar o seu programa de socialização que, longe de confiar aos trabalhadores poderes de gestão efetivos, lhes reconhecia simplesmente um direito de vigilância sobre o funcionamento das empresas industriais, ainda nesse momento nas mãos dos capitalistas. Um primeiro decreto instituiu o “controle operário da produção, conservação, venda e compra de todos os produtos e matéria bruta, assim como sobre as finanças da empresa. Este é exercido por todos os sovietes locais de deputados e os comitês de oficina e fábrica (…). Igualmente os empregados de escritório e os técnicos devem ser representados nestes comitês (…). Os órgãos do controle operário têm o direito de vigiar a produção (…). O segredo comercial é abolido. Os proprietários terão que submeter aos órgãos de controle operário todos os livros e documentos para o ano em curso e para os anos precedentes”[8].

Todavia, produção capitalista e gestão operária excluem-se mutuamente. Por isso, a política de expediente, com a qual numa certa medida os bolcheviques tentavam satisfazer as aspirações dos operários que queriam tomar posse das fábricas à semelhança do que os camponeses haviam feito com as terras, foi provisória. Um ano após a promulgação do decreto atrás citado, Lênin exprimia-se assim: “Nós não decretamos o socialismo logo de início em toda a indústria porque ele apenas se pode estabelecer e consolidar no dia em que a classe operária tiver aprendido a dirigir (…). Essa a razão porque instituímos o controle operário sabendo que é uma medida contraditória, imperfeita (…). O mais importante e precioso, segundo a nossa opinião, é que os próprios operários hajam tomado em mão esta gestão e que o controle que era caótico, fragmentado, artesanal, incompleto, nos setores-chave da indústria, se tenha transformado na gestão operária à escala do país inteiro”.[9]

Mas a passagem do “controle” à gestão significaria na verdade a supressão dum e doutra. Sem dúvida, como os sovietes não foram esvaziados da sua substância de um dia para o outro, também a influência dos operários no seio das empresas foi eliminada pouco a pouco, pela entrega ao sindicato dos poderes gestionários dos sovietes e, mais tarde, pela transformação dos sindicatos em órgãos estatais, destinados a dirigirem os trabalhadores em vez de serem por eles dirigidos. A quebra econômica, a guerra civil, a oposição dos camponeses a qualquer coletivização na agricultura, a agitação social na indústria e o retorno parcial à economia de mercado, levaram à prática de políticas contraditórias – da “militarização do trabalho” à revificação das empresas privadas – todas concebidas no único desejo de manter, a todo o custo, os bolcheviques no poder. Assim, o governo ditatorial teve que fazer face não só aos capitalistas, mas também aos operários. Dada a imperiosa necessidade de relançar a produção, e não chegando os discursos, evidentemente, para convencer os trabalhadores a consentir numa exploração pelos menos idêntica à que haviam sofrido sob o antigo regime, os membros do novo aparelho de Estado assumiram as funções de uma classe dirigente que visava a reconstrução da indústria e a acumulação do capital.

A ideia que Lênin, no contexto da primeira guerra mundial, formava da revolução russa, era a de um processo ininterrupto conduzindo da revolução burguesa à revolução socialista. Lênin temia que a burguesia preferisse um compromisso com o czarismo face ao perigo de ver uma revolução democrática levada até ao fim dos seus objetivos. Desde esse momento, incumbia aos operários e aos camponeses pobres a direção da revolução imanente, concepção que o fundador do bolchevismo partilhava com teóricos tão conhecedores das realidades russas como Trotsky e Rosa Luxemburgo. Foi do ponto de vista internacional que Lênin abordou então os problemas da revolução: contando prematuramente que ela viesse a conquistar o Ocidente, pensava desse modo derrotar a burguesia russa na própria base da sua hegemonia. Essa a razão porque Lênin julgou necessário ater-se ao poder, sem se importar com os compromissos e violações de princípios que seria necessário consentir com esse fim, até ao dia em que a revolução no ocidente viesse aliar-se à Revolução russa, de modo a permitir à cooperação internacional remediar o melhor possível a imaturidade das condições objetivas do socialismo na Rússia. Mas, mantendo-se isolada a revolução, esta perspectiva viria em pouco tempo a perder qualquer espécie de fundamento. E na situação de fato que se seguiu, ficar no poder significava tomar à sua conta o papel histórico da burguesia, embora a coberto de instituições sociais e ideológicas diferentes.

Agarrando-se assim à direção dos negócios, os bolcheviques procuravam na verdade salvar a pele. Perdido o poder, apenas a morte teriam como certa. Mas por outro lado Lênin já tinha a firme convicção de que o desenvolvimento do capital na Rússia assumiria um caráter mais “progressista” sob os auspícios do Estado do que sob os da burguesia liberal, sendo a primeira opção preferível à segunda na medida em que o partido bolchevique estava perfeitamente à altura de a traduzir em atos. A Rússia, afirmava Lênin, “foi durante largo tempo governada por 150.000 proprietários. Porque 240.000 bolcheviques não poderão fazer o mesmo?”. E foi o que de fato fizeram. Repetindo constantemente que o controle estatal da economia era sinônimo de controle operário, edificaram um Estado autoritário e hierarquizado, apto a reger como senhor absoluto toda a economia. Foi dentro deste espírito que Lênin afirmou um dia que a criação do socialismo “exige uma unidade de vontade rigorosa, total, dirigindo o trabalho comum de centenas, milhares e dezenas de milhares de homens (…). E como assegurar uma perfeita unidade de vontade? Pela submissão da vontade de milhares de indivíduos à de uma única pessoa. Esta submissão lembra talvez a delicada direção de um chefe de orquestra, desde que os que participam no trabalho comum sejam perfeitamente conscientes e disciplinados. Pelo contrário, na ausência desta perfeita disciplina e consciência, aquela direção apenas assumirá formas truncadas, ditatoriais. Porém, em todo o caso, a submissão sem reserva a uma única vontade é absolutamente indispensável ao sucesso de um trabalho organizado sobre o modelo da grande indústria mecânica[10]”. A serem tomadas à letra estas afirmações é forçoso concluir que a consciência de classe deveria estar totalmente ausente da Rússia, na medida em que nela a gestão da produção e da vida social revestiram formas de tal modo ditatoriais que ultrapassaram tudo quanto os países capitalistas conheceram nesse plano e excluindo até agora tudo o que pudessem lembrar, por pouco que fosse, uma gestão operária.

O que todavia nada muda ao fato de terem sido os sovietes e só eles que derrubaram simultaneamente o czarismo e a burguesia. É possível pensar que, num contexto nacional e internacional diferente, os sovietes teriam podido conservar o poder e impedir totalmente o desenvolvimento de um capitalismo de Estado totalitário. Dito isto, convém lembrar que o conteúdo efetivo da revolução não correspondeu à sua forma não apenas na Rússia mas igualmente na Alemanha. Todavia, se no primeiro caso a razão essencial do fracasso do movimento dos conselhos foi a imaturidade geral objetiva do país, em relação às exigências de uma transformação socialista, no segundo esta razão foi a recusa subjetiva de instaurar o socialismo por meios revolucionários.

Na Alemanha, a oposição à guerra tomou a forma de greves na indústria, as quais, devido à atitude patriótica da social-democracia e dos sindicatos, tinham que ser organizadas clandestinamente nos locais de trabalho, função essa cumprida por comitês de ação inter-empresas. Depois, em 1918, conselhos de operários e de soldados surgiram em todo o país e deitaram abaixo o regime. As organizações operárias, ligadas à colaboração de classes, viram-se no entanto obrigadas a apoiar e a participar no movimento, quanto mais não fosse para abafarem as aspirações revolucionárias. Aliás, atingiram esse objetivo tanto mais facilmente quanto os conselhos operários compreendiam não só comunistas, mas também socialistas, sindicalistas, apolíticos e mesmo aderentes de partidos burgueses. Assim, do ponto de vista revolucionário, a palavra de ordem “todo o poder aos conselhos operários” apenas levava ao impasse, salvo, é claro, se o caráter e composição dos novos órgãos viesse a mudar completamente.

No entanto, a grande massa dos trabalhadores considerou a revolução política como uma revolução social. A ideologia e o poder organizativo da social-democracia tinham-na marcado profundamente: os trabalhadores consideravam a socialização da produção não como um assunto que lhes dissesse diretamente respeito, mas como assunto do governo. É claro que estavam em revolta. Porém, esta não abandonava o velho contexto reformista. “Todo o poder aos conselhos operários!” significava nem mais nem menos a ditadura do proletariado, ou seja, um regime que não deixasse nenhuma possibilidade de representação política aos não-trabalhadores. Ora os operários, na sua grande maioria, pronunciavam-se pela democracia fundada no sufrágio universal, pelo sistema de conselhos e pelo sistema parlamentar, a Assembleia Nacional. De fato, obtiveram ambos: conselhos operários sem conteúdo, reconhecidos de direito pela constituição de Weimar, consagração legal esta acompanhada por uma contrarrevolução que levou, decididamente, à ditadura nazi.

O mesmo aconteceu noutros países – na Itália, na Hungria, em Espanha, por exemplo, onde as aspirações revolucionárias das massas trabalhadoras tomaram corpo na formação de conselhos operários. É de concluir assim que a auto-organização dos trabalhadores em nada garante o proletariado contra políticas e ações opostas aos seus interesses de classe, sendo os conselhos operários suplantados pelas antigas autoridades ou outras novas, as quais vêm a dominar a classe operária servindo-se dos métodos tradicionais, ou de outros inéditos. Se os movimentos espontâneos que assumem formas de organização que permitem a livre disposição dos trabalhadores não se decidirem a usurpar o poder e a gerir a sociedade, estarão sem dúvida condenados a desaparecer, afundando-se no anonimato da virtualidade pura.

IV

Tudo o que acabamos de dizer interessa unicamente ao passado e parece impertinente quer para o presente quer para o futuro. No que diz respeito ao Ocidente, a segunda guerra mundial de modo algum ocasionou uma vaga revolucionária comparável à provocada pela guerra de 1914-1918 e pela revolução russa, por mais fraca que aquela vaga tenha sido. Pelo contrário, a burguesia pode, após algumas dificuldades, exercer melhor do que nunca o seu poder. Ela vangloria-se de uma economia de pleno emprego, de um desenvolvimento econômico e de uma estabilidade social que exclui simultaneamente a necessidade e a vontade coletiva de transformação social. É claro que se trata de um quadro muito aproximado, que encobre ainda certas sombras como o são por exemplo a existência em todos os países capitalistas de grupos sociais pauperizados. Mas a longo prazo, dizem, estes problemas acabarão por encontrar solução.

Não surpreende, portanto, que a estabilização e o progresso reais do capitalismo ocidental, após a segunda guerra mundial, tenham tido como consequência não apenas o completo desaparecimento de um autêntico movimento revolucionário da classe operária, mas ainda a transformação da ideologia e prática próprias à social-democracia reformista numa ideologia e prática ligadas à economia mista e ao Estado-Providência. Glorifica-se (e por vezes também se condena) nesta evolução a fusão do Capital e do Trabalho e a emergência de um novo sistema sócio-econômico, isento de crises, fazendo a união dos aspectos positivos do capitalismo e do socialismo, despojados, é evidente, dos seus elementos negativos. Tal é o que frequentemente se apresenta como um sistema post-capitalista no qual o antagonismo Capital-Trabalho teria perdido a sua realidade de outrora. Muitas mudanças são ainda concebíveis no seio do sistema mas passou-se a considerar a revolução social como uma perspectiva sem o menor fundamento. Tudo se passa como se a história, enquanto história das lutas de classes, houvesse chegado ao seu termo.

Em contrapartida, o que pode provocar surpresa são as diversas tentativas, aqui e além esboçadas, com o fim de conciliar a ideia do socialismo com este novo estado de coisas. Continua-se a professar que o socialismo é possível, apesar da existência de condições que tornam supérflua a sua realização. O movimento de oposição ao capitalismo, havendo perdido a base material que outrora encontrava nas relações de exploração, encontra agora uma nova base na esfera da ética e da filosofia, onde apenas está em questão a dignidade do homem e a nobreza do trabalho. A miséria, afirma-se[11], nunca constituiu nem pode constituir um fator revolucionário. Aliás, ainda que não tivesse sido esse o caso, a questão já não tinha atualidade na medida em que o capitalismo se encontra, de agora em diante, com capacidade para satisfazer as exigências da população trabalhadora em matéria de consumo. E acrescenta-se que mesmo no caso de lutas por reivindicações imediatas, elas nunca colocarão radicalmente em causa a ordem estabelecida. Assim, na luta pelo socialismo, convém muito mais por a tônica nas necessidades qualitativas dos trabalhadores do que sobre as de ordem quantitativa. O imperativo da época, conclui-se, é a conquista progressiva do poder pelos operários graças a “reformas não-reformistas”.

Se se apresenta a gestão operária como uma “reforma não reformista” deste gênero, é precisamente porque ela não pode ser estabelecida dentro do sistema capitalista. Ora, a partir daí, a luta pela gestão operária passa a confundir-se com a luta pela queda do sistema e a questão conserva-se de pé: como realizar tal tarefa sem que nada obrigue incondicionalmente a fazê-la? Ao que vem juntar-se esta outra questão: que forma de organização será preciso empregar para atingir tal resultado? A integração das organizações operárias na estrutura capitalista tornou-se viável pelo fato de o sistema se ter revelado capaz de aumentar o nível de vida da maioria dos trabalhadores e, caso esta tendência se prossiga, não se vê razão para que a luta de classes tenha que continuar a representar um fator determinante do desenvolvimento social. Neste caso – e sendo o homem o produto das condições em que vive – os operários nunca mais atingirão uma consciência de classe, nem tão pouco pensarão em arriscar o seu bem-estar relativo de hoje pelas incertezas de uma revolução proletária. Não foi sem razão que Marx fundamentou a sua teoria da revolução na crescente miséria da classe operária, mesmo que esta miséria não se deva medir unicamente através das flutuações que os salários sofrem no mercado de trabalho.

A gestão operária da produção pressupõe a revolução social. Impossível pô-la em prática através de ações de classe que permaneçam no contexto do capitalismo. De cada vez que, à guisa de reforma, um “controle operário” se estabeleceu, não tardou a revelar-se como um meio suplementar de direção dos trabalhadores através das suas próprias organizações. Por exemplo, os comitês de empresa legais, criados na Alemanha após a revolução de Novembro de 1918, não passaram de prolongamentos dos sindicatos e não abandonaram o contexto restrito da ação sindical. Se foi possível notar-se na altura certas tentativas de substituição dos sindicatos pelos conselhos, os primeiros, secundados pelo Estado e pelo patronato, não tiveram nenhuma dificuldade em assegurar a sua predominância. Esta relação de dependência não se modificou após a segunda guerra mundial, quando o restabelecimento dos comitês de empresa foi acompanhado por uma lei instituindo uma pseudo co-gestão, através da qual os trabalhadores teriam então direito a voto nas questões que diziam respeito à produção e investimentos. Porém, é fácil descobrir o espírito de toda esta legislação social através da leitura do artigo 49 da “Constituição do Trabalho” alemã de 1952: “No âmbito das convenções coletivas aplicáveis, o empresário e o comitê de empresa devem colaborar lealmente, trabalhador de acordo com os sindicatos operários e patronais representados no estabelecimento e no interesse deste e dos seus assalariados, tendo sempre em vista o bem público. Empresário e comitê de empresa devem abster-se de todo o ato que possa prejudicar o bom funcionamento da empresa. Em especial, não devem ser tomadas medidas suscetíveis de deteriorar a paz social. Tudo isto não visa os conflitos que poderiam surgir entre as partes habilitadas a concluir convenções coletivas[12]”.

A co-gestão em nada alterou o fato de ser o patrão o único a dispor da sua propriedade, ou seja, da empresa e da produção. Ela devia outorgar aos representantes operários o direito de fazer propostas à direção da empresa, propostas que podiam, pelo menos em teoria, chegar a dizer respeito à aplicação dos lucros. Porém, o patrão de modo algum é obrigado a aceitar as sugestões e é evidente que as recusará no caso de colidirem com os seus interesses. Para que a co-gestão possua verdadeiramente um sentido, terá que ser acompanhada de co-propriedade, mas então isso seria a abolição do salariato. Na verdade, a co-gestão tem por único efeito facilitar as atividades costumeiras das organizações sindicais: a organização e aplicação das convenções salariais, dos regulamentos da empresa e dos preceitos de arbitragem que garantem a manutenção da paz social.

O que se acaba de dizer acerca do controle operário na Alemanha é válido igualmente – com variantes, é claro, mas secundárias – para todos os países capitalistas onde os shop stewards (delegados de oficinas), os comitês de empresa e outras formas de representação operária gozam de um estatuto legal. Na verdade, tudo leva a pensar que estas medidas legislativas não significam um desenvolvimento da democracia na empresa mas que simplesmente servem à salvaguarda das relações de produção existentes e à diminuição dos antagonismos que lhes são inerentes. Longe de visarem uma transformação da sociedade, tendem antes a evitá-la. Uma revolução social não conduzirá à gestão operária se os trabalhadores não assegurarem o domínio dos meios de produção e delegarem no governo o poder de organizar soberanamente o processo de transformação social. Assim aconteceu na Rússia, exemplo chamado a servir em seguida como modelo aos “estados socialistas” criados a seguir à segunda guerra mundial. A Iugoslávia parece ser uma exceção à regra, na medida em que foi o governo que concedeu aos conselhos operários funções de gestão e um certo direito de controle sobre a produção.

Ainda que em última instância o governo iugoslavo se mantenha hoje idêntico ao que foi ontem, o detentor de todos os poderes, ele optou, após haver rompido com a Rússia, por uma descentralização econômica, baseada no restabelecimento das relações de mercado e, consequentemente, na autonomia das empresas particulares, daí em diante colocadas sob o controle de conselhos operários. Estes administram a empresa e vigiam a manutenção da sua competitividade no contexto do plano geral de desenvolvimento fixado pelo Estado. Dentro de certos limites que o governo se encarrega de traçar, os conselhos operários e os órgãos de gestão eleitos por aqueles decidem da regulamentação do trabalho, dos planos de produção, dos salários, das compras e vendas, do orçamento, dos empréstimos, dos investimentos, etc. À frente de cada empresa um diretor nomeado por uma comissão que reúne representantes do conselho operário e da comuna de que depende o estabelecimento trata de todas as questões do funcionamento cotidiano e possui todos os poderes disciplinares. É ele que contrata, despede e designa os postos de trabalho, além de ter o direito de veto sobre qualquer decisão do conselho operário que não esteja de acordo com as instruções do Estado.

Os poderes do conselho operário em matéria de autogestão são circunscritos por uma regulamentação extremamente complexa, parte com base em decretos governamentais e outra parte emanada das autoridades comunais em acordo com o conselho. Cada estabelecimento, após o pagamento dos impostos, tem direito a dispor livremente de uma certa fração da sua receita global. No plano dos investimentos e dos salários o seu grau de autonomia é portanto determinado pela importância da sua punção fiscal. Assim, o Estado retira uma parte dos lucros com vista à cobertura das suas próprias despesas e ao investimento nas empresas que estão diretamente dependentes dele.

É o governo que fixa a taxa geral de aumento das receitas pessoais mas, embora impondo o respeito por um salário mínimo, autoriza o pagamento de suplementos de salários e de prêmios, ligados à elevação da produtividade do trabalho. Mais de metade da receita operária bruta destina-se ao sistema de segurança social. Investimentos e reinvestimentos são decididos em função do princípio da rentabilidade e orientados pelo poder no sentido desejado, através de políticas de preços, salários e de crédito ad hoc. Finalmente, na medida do possível e apesar de uma autogestão restrita, a direção da economia mantém-se em definitivo nas mãos do Estado. Os conselhos operários não podem infringir as decisões do governo. É este que fixa os limites dentro dos quais os conselhos podem intervir.  

Todavia, a impossibilidade objetiva de instaurar, na base de uma economia de mercado, uma autêntica gestão operária da produção e da distribuição é mais importante que as relações entre Estado e conselhos. Na verdade, um projeto deste gênero enfrenta o mesmo dilema que vitimou as cooperativas operárias a partir da sua origem e isso se bem que, contrariamente a estas últimas, o controle operário tenha a possibilidade de fazer face à concorrência do capital privado, se o governo assim o decidiu. Acerca das cooperativas de produção Rosa Luxemburgo notara já “a necessidade contraditória, para os operários de se governarem com todo o absolutismo indispensável e, simultaneamente, assumirem em relação a si próprios o papel de empresários capitalistas”. E concluía com razão: “Esta contradição é a causa da morte da cooperativa de produção, na medida em que se torna numa empresa capitalista ou, no caso de os interesses operários ganharem vantagem, se vem a dissolver”[13].

Trabalhando no selo de uma economia de mercado, baseada na concorrência, os trabalhadores iugoslavos são obrigados a explorar-se a si próprios tanto como se fossem ainda explorados por capitalistas. Embora esta situação lhes possa parecer preferível, ela não impede no entanto que continuem submetidos a processos econômicos contra os quais nada podem. Produzir lucro e acumular capital, eis o que lhes continua a modelar o comportamento e a perpetuar consequentemente a miséria e a insegurança. Os salários iugoslavos contam-se entre os mais baixos da Europa; só podem aumentar a receita do efetivo global dos trabalhadores, os poucos poderes de gestão concedidos aos conselhos operários têm por efeito encorajar atitudes antissociais. Aliás, há operários reduzidos ao desemprego porque não seria rentável oferecer-lhes trabalho. Ou seja, o seu trabalho, depois de coberto o custo da sua reprodução, não fornece excedente, obrigando-os então a errar por toda a Europa capitalista na procura do trabalho e salários que o seu “socialismo de mercado” não lhes permite obter. A integração do mercado nacional no mercado capitalista mundial não só obriga a classe operária a explorar-se a si mesma e a ser explorada por uma nova classe dirigente; ela sujeita-se ainda ao capitalismo mundial através das trocas comerciais e dos investimentos estrangeiros. Nestas condições, falar de gestão ou de controle operário é simplesmente enganar as pessoas.

O socialismo não existe sem a gestão operária e vice-versa. Assim, quem defender que a gestão operária tem verdadeiras possibilidades de progredir no sistema capitalista pratica o jogo da demagogia de que as classes dirigentes se servem para dissimular o seu total domínio, a utilização de reformas tampão com nomes bem sonantes como co-direção, participação ou co-gestão. A gestão operária exclui a colaboração de classes; o seu pressuposto é a abolição do modo de produção capitalista e não a sua participação neste sistema. Em parte alguma o socialismo é praticado e muito menos a gestão operária. Seja no capitalismo de Estado seja no socialismo de mercado, ou ainda numa mistura de ambos, a classe trabalhadora continua a ser uma classe de assalariados que não pode dispor como entende do produto do seu trabalho. Estes assalariados têm uma posição idêntica à dos trabalhadores dos países capitalistas de economia mista ou não mista. Em todo o lado, a luta pela emancipação operária aguarda ainda o seu início e só terminará com a socialização da produção e o desaparecimento das classes como consequência da abolição do salariato.

Todavia, seria absurdo esperar que uma classe operária satisfeita com o status quo social se lance numa luta pelo poder, de preferência a uma luta por salários mais elevados e conduzida no próprio terreno do sistema dominante. Se em geral se faz um quadro singularmente exagerado da melhoria da condição proletária nos países capitalistas, não deixa de ser verdade no entanto que esta melhoria foi suficiente para abafar o espírito revolucionário das massas trabalhadoras. Ainda que a força de trabalho de modo algum possa ter um “valor” superior ao dos produtos que cria, este “valor” pode referir-se a condições de vida totalmente diferentes, a um dia de seis horas ou de doze, a um bom alojamento ou a uma barraca, a um elevado consumo ou a um outro reduzido. No entanto, não importa em que momento, são os salários e o poder de compra que estes conferem que determinam a condição dos trabalhadores e com isso as suas reivindicações e aspirações. Adquire-se rapidamente o hábito de melhores condições de vida e para obter o consentimento dos operários é preciso pelo menos mantê-los ao nível já atingido. Se este se vier a degradar, a oposição da classe operária renascerá exatamente do mesmo modo que outrora se manifestava, quando aquelas condições eram piores. Se o consenso social se mantiver será unicamente porque existe a persuasão de que os níveis de vida atuais se vão manter ou que virão mesmo a sofrer uma melhoria.

Embora pareça confirmada pela experiência dos últimos anos, esta hipótese não tem nenhuma justificação. Sem dúvida, contestar-lhe o valor teórico[14] não modifica uma prática social fundamentada na ilusão do progresso permanente. Mas é de colocar a hipótese segundo a qual o mecanismo das crises estará em vias de reentrar em funcionamento, apesar das múltiplas transformações ocorridas no interior do sistema capitalista. Face à estagnação que persiste nos Estados Unidos e a uma expansão que marca passo na Europa, começa a fazer-se sentir um certo desencantamento. Em razão da produção provocada pelo Estado deparar com dificuldades cada vez maiores, o capital sente com mais urgência a necessidade de adotar medidas que visem a manutenção da sua rentabilidade, independentemente da instabilidade social que corre o perigo de vir a originar. A utilização de inovações tecnológicas e outras, permite-lhe adiar a crise mas não eliminar-lhe definitivamente a ameaça. Assim sendo, tudo parece indicar que no dia em que a crise latente assumir um caráter agudo e manifesto, na ocasião em que a pseudo-prosperidade vier a desembocar na depressão real, o consenso social, que caracteriza a história atual, cederá lugar a um novo renascimento da consciência revolucionária – tanto mais que a irracionalidade do sistema se torna evidente mesmo aos olhos das categorias sociais que dela beneficiam. Além da situação pré-revolucionária existente em quase todos os países sub-desenvolvidos e das guerras, à primeira vista limitadas mas que, na verdade, se prosseguem sem tréguas nas mais diversas regiões do globo, uma agitação generalizada não cessa de perturbar a tranquilidade social do mundo ocidental. De tempos a tempos assiste-se a uma brusca ruptura das condições estabelecidas, como o foi o Maio francês. Se tais acontecimentos se produzem no contexto de uma relativa estabilidade, eles têm toda a possibilidade de se reproduzirem aquando de uma crise generalizada.

A integração das organizações operárias tradicionais do sistema capitalista só constitui um adorno para este último na medida em que a colaboração de classes der frutos reais ou prometer dá-los. Mas quando estas organizações são obrigadas, devido às circunstâncias, a atuarem como instrumentos de repressão, elas perdem a confiança dos trabalhadores e ao mesmo tempo o seu valor perante a burguesia. Então, ainda que elas subsistam, há possibilidades de a classe operária, além de passar a opor-se-lhes, se lançar também numa ação autônoma. Na verdade, a História ensina que a ausência de organizações de classe não impede o aparecimento de uma revolução organizada – a Rússia é disso prova – e também que a existência de um movimento reformista de influência bem assente pode ser derrotada por novas organizações de classe – a prova é a Alemanha de 1918 e os movimentos dos shop stewards na Inglaterra durante e depois da primeira guerra mundial.

Enquanto o capitalismo se prestar a reformas, a natureza revolucionária da classe operária será apenas latente. Deixando mesmo de possuir consciência da sua situação de classe, adotará como se suas fossem as aspirações da classe dirigente. Porém, a partir do dia em que o capitalismo vir forçado, em razão do seu próprio desenvolvimento, a recriar condições favoráveis ao reaparecimento duma consciência de classe, a reivindicação revolucionária de gestão operária como condição primeira do socialismo aparecerá de novo. É claro que todas as tentativas neste sentido falharam e as futuras correm igualmente o risco de sofrerem a mesma sorte. No entanto, é apenas pela aprendizagem da ação autônoma, da auto-determinação – por mais limitadas que possam ser a princípio tais experiências – que a classe operária conseguirá progredir em direção à sua emancipação.


[1] Théorie des lois civiles, ou Principes fondamentaux de la société, pages 274, 464, 470.

[2] Id., II, pp. 464-467.

[3] Id., II, pp. 470.

[4] Cf. G. Sorel, Réflections sur la Violence, Paris, 1960.

[5] Preamble of the Industrial Workers of the World, Chicago, 1905.

[6] L. Trotsky, 1905, Paris, 1923, p. 94.

[7] Id., p. 212.

[8] Citado por J. Bunyan e H. Fischer, The Bolchevik Revolution, Stanford, 1934, p. 308.

[9] “Discurso no Aniversário da Revolução, 6 de Novembro de 1918” in: Lenine, Oeuvres, 28, pp. 139-140.

[10] “As tarefas imediatas do poder dos Sovietes” in: Lenine, Oeuvres, 27, p. 279.

[11] Cf., por exemplo, André Gorz, Stratégie ouvrière et néo-capitalisme, Paris, 1964.

[12] Citado por A. Sturmthal, La Participation ouvrière à l’Est et à l’Ouest, Paris, 1967, p. 121.

[13] R. Luxemburg, Reforma social ou Revolução?

[14] P. Mattick, Marx et Keynes. Les limitesde l’économie miste, Éd. Gallimard, Paris, 1972.