Pannekoek e o Darwinismo – Nildo Viana

[Nota do Crítica Desapiedada]: Análises de Nildo Viana sobre o pensamento de Darwin podem ser vistas em:
Darwin Nu: Marxismo e Darwinismo
Kropotkin e o Darwinismo
Onde Darwin Errou? (Documentário completo)


Publicado originalmente em: VIANA, Nildo. Pannekoek e o darwinismo. in: PANNEKOEK, Anton. Marxismo e Darwinismo. 2a Edição. Goiânia: Edições Redelp, 2022.

Pannekoek e o Darwinismo
Prefácio ao livro de Pannekoek

O pequeno livro de Pannekoek, Marxismo e Darwinismo, é uma obra interessante e que pode ser interpretada sob formas distintas. Um dos problemas interpretativos mais comuns é a descontextualização histórica dos escritos e autores. Isso, acompanhado de outros problemas (tanto os que emergem a partir da época, como dos intérpretes e suas idiossincrasias, entre diversas outras determinações) e assim uma compreensão mais profunda de certos escritos acaba sendo dificultada.

O nosso objetivo aqui é apenas esclarecer alguns elementos do presente texto e assim facilitar a contextualização histórica e, por conseguinte, a interpretação correta do livro de Pannekoek. Além disso, vamos incluir uma discussão sobre o tema do livro, a relação entre marxismo e darwinismo, tanto no âmbito da discussão de Pannekoek como indo além dela. O primeiro ponto a destacar é a questão de quem é Pannekoek e em que contexto insere a presente obra, pois isso é útil para quem não conhece o autor e ajuda no processo interpretativo e compreensão de sua análise da relação entre marxismo e darwinismo. Já realizamos uma análise da evolução intelectual de Pannekoek de forma mais aprofundada em outra oportunidade[1]. No entanto, é necessário que o leitor da presente obra tenha em vista, mesmo que sinteticamente, essa evolução, e por isso vamos realizar alguns apontamentos sobre isso. 

Anton Pannekoek nasceu na Holanda, em 1873, e em sua juventude aderiu ao Partido Social-Democrata Holandês, sendo que em pouco tempo passou a ser um dissidente interno. Nesse sentido, podemos dizer que a primeira fase do pensamento de Pannekoek como militante e escritos é como um social-democrata dissidente. Pannekoek, nesse momento, questionava os setores dominantes do partido e alguns de seus oponentes (que ele denominava, problematicamente, como “anarquista”) e com o passar do tempo realiza uma ruptura com a social-democracia e adere ao “socialismo radical” (o conjunto daqueles que romperam com a social-democracia a partir de 1914)[2]. Após a Revolução Alemã, mais especificamente em 1920, como resultado da radicalização com as revoluções proletárias inacabadas (Rússia, Alemanha, Itália, Hungria), Pannekoek passa a integrar a corrente que passou a ser denominada “comunismo de conselhos”, e manteve tal posição até sua morte em 1960.

Pannekoek também era um cientista natural. Ele foi um renomado astrônomo, bem como escreveu sobre antropogênese e outros temas considerados como campo de pesquisa destas ciências. É por isso que para quem conhece a biografia de Pannekoek, um livro que trata de Darwin e darwinismo não é de todo estranho.

Assim, a contextualização histórica nos remete ao ano de 1912, época em que Pannekoek era um social-democrata dissidente. Isso ajuda a entender sua obra e suas afirmações. O que significa ser um social-democrata dissidente? Um dissidente é uma pessoa que discorda de um grupo, partido, regime, etc. Porém, ele não discorda de tudo, pois ele o faz no interior de uma concordância. Assim, Jung, Adler e outros foram psicanalistas dissidentes, o que significa que não romperam totalmente com Freud e a psicanálise. Um dissidente é alguém que discorda no interior de uma concordância[3]. A dissidência pode gerar ruptura e isto significa a passagem de uma ruptura parcial para uma total. Nesse momento, já não é mais um dissidente, é um opositor ou antagonista. A dissidência também pode ser interna ou externa.

A dissidência interna é quando há uma discordância que se realiza no interior de uma organização (partido, igreja, etc.) e a externa é quando ela ocorre fora de tal organização. No primeiro caso, há a dissidência, que é uma discordância no interior de uma concordância, dentro da organização e que se manifesta internamente. Esse é o caso das tendências mais extremistas dentro dos partidos social-democratas e da Teologia da Libertação no interior da Igreja Católica. Quando estas tendências mais extremistas ou dissidências internas abandonam a organização, se tornam dissidências externas, caso a ruptura tenha sido apenas parcial. Esse é o caso do PSOL – Partido Socialismo e Liberdade, que saiu do PT – Partido dos Trabalhadores, mas que nunca realizou uma ruptura total, sendo, inclusive, seu apoiador em processos eleitoras e outras posições e ações. Não é o caso do PSTU – Partido Socialista dos Trabalhadores – Unificado, pois este era uma dissidência mais forte dentro do partido e foi expulsa, sendo uma ruptura total[4].

A dissidência interna é realizada, necessariamente, por integrantes da organização. A dissidência externa, por sua vez, é realizada por indivíduos externos à organização, mas que a tem como referência intelectual e é apoiador ou simpatizante, mas com elementos críticos em relação a ela ou suas posições, concepções. Assim como alguns dissidentes internos podem se tornar externos ao sair da organização, outros podem estar no segundo caso sem ter passado pela organização.

Assim, dizer que Pannekoek era um social-democrata dissidente significa que dizer que ele discordava do partido e suas concepções, mas no interior de uma concordância. Ele precisará passar por certas experiências, pessoais e históricas, para realizar a ruptura, inicialmente parcial, e depois total (a partir das revoluções russa e alemã). O texto sobre marxismo e darwinismo foi escrito nesse período de social-democrata dissidente.

Isso ajuda a explicar o pequeno livro que aqui apresentamos. Pannekoek era um crítico da social-democracia, mas ainda no seu interior. Nesse sentido, a sua crítica não tinha a radicalidade do período posterior (socialismo radical) e menos ainda quando realiza a ruptura completa com a social-democracia (e o bolchevismo, seu filho rebelde), ao se tornar um comunista conselhista. Pannekoek já havia entrado em polêmicas, tanto nacionais quanto internacionais, e dentre elas contra Karl Kautsky, considerado por alguns como o grande intelectual da social-democracia e herdeiro de Engels, bem como o maior representante do “marxismo” ortodoxo. A polêmica era sobre a questão da greve e das “ações de massas” no bojo das greves na Bélgica[5].

Assim, tal como criticava a social-democracia, mas não a abandonava, ele critica Kautsky, mas ainda o respeitava. Isso explica alguns elementos do seu texto sobre o darwinismo, pois Kautsky era um entusiasta com o darwinismo e o considerava como elemento importante para completar o marxismo. E ele não estava sozinho nessa posição. A social-democracia como um todo estava perpassada pela influência do cientificismo e positivismo reinante da época. O pseudomarxismo da época era fortemente influenciado pelo paradigma hegemônico, o positivismo[6]. O darwinismo, por sua vez, era hegemônico no âmbito das discussões biológicas e sobre evolução, tendo influência para além das ciências naturais, e servia como arma para combater a religião[7].

Assim, Pannekoek não escapava totalmente desse clima intelectual e do paradigma e ideologias que dominavam a época. Desta forma, a boa recepção dos social-democratas em relação ao darwinismo também teve impacto sobre o seu pensamento. No entanto, ele também não era um mero reprodutor, pois era um dissidente e por isso sua obra tem um significado importante ainda nos dias de hoje. Podemos dizer que Pannekoek era um marxista ambíguo[8] e ainda rudimentar. É com o passar do tempo que ele romperá com a ambiguidade, ao aprofundar intelectualmente e passar por determinadas experiências históricas e militância política. É nesse contexto que ele conseguirá se aproximar mais profundamente do real conteúdo das obras de Marx.

Um outro elemento importante é que em 1912 algumas obras importantes de Marx não haviam ainda sido publicadas, especialmente as que ele aborda a natureza humana e a questão do trabalho e do desenvolvimento histórico, especialmente A Ideologia Alemã e os Manuscritos de Paris (obra na qual trata do trabalho alienado e do trabalho como objetivação, entre outros elementos relacionados). Desta forma, a ideia de materialismo histórico era bastante precária, pois restava, basicamente, o Prefácio ao livro Contribuição à Crítica da Economia Política como síntese e fragmentos em obras como o Manifesto Comunista. Essa lacuna era preenchida pelos complementos problemáticos de Engels (citado por Pannekoek) e por seu “herdeiro intelectual”, Karl Kautsky[9].

Kautsky era o grande mentor intelectual da social-democracia e buscava complementar Marx, mal interpretado[10], com Engels, Kant e Darwin. Além de Kautsky, diversos manuais e livros de introdução ao marxismo, dialética, etc., eram produzidos e tinham impacto nos militantes da época. No caso de Pannekoek, o livro de Kautsky teve um impacto maior, especialmente por ter um capítulo dedicado à “ética do darwinismo”. Alguns elementos apontados por Pannekoek são bastante próximos ao de Kautsky.

E o que poderíamos destacar da obra, em si, de Pannekoek sobre marxismo e darwinismo? Colocaríamos, em primeiro lugar, a crítica que Pannekoek realiza a Darwin e ao darwinismo. Isso mostra que, apesar da influência de Kautsky e da social- democracia em geral e sua concepção positiva do darwinismo, Pannekoek era um dissidente e que tinha uma análise mais complexa e crítica dessa ideologia. Pannekoek retoma a crítica de Marx a Darwin, “esquecida” pela social-democracia, segundo a qual o famoso naturalista reproduz no mundo animal a competição típica da sociedade inglesa de sua época, ou seja, do capitalismo. E, ao lado disso, mostra a sua fonte de inspiração, também já abordada por Marx, no economista vulgar Thomas Malthus[11].

Porém, a crítica a Darwin é um tanto moderada. O mesmo vale em relação ao darwinismo. Pannekoek usa esse nome e não explica o seu significado, mas, ao que tudo indica, pela forma de uso, que se refere aqueles que são adeptos das teses de Darwin, os darwinistas, e suas concepções, tal como o citado Haeckel. A sua moderação no caso do darwinismo se revela nas suas críticas aos “darwinistas” burgueses, o que significa que existiram darwinistas não-burgueses (e depois ele trata dos social-democratas).

A crítica a Darwin se mostra moderada, em parte, por Pannekoek não aprofundar nas teses do naturalista inglês, bem como nas demais concepções sobre evolução. Ao que tudo indica, Pannekoek desconhecia a diferença fundamental entre as concepções de evolução de Darwin, por um lado, e de Wallace e Bates, por outro lado. A concepção evolucionista de Darwin apontava para uma luta pela sobrevivência intraespécies e a de Wallace e Bates, interespécies[12]. Em outras palavras, a luta pela sobrevivência, em Darwin, ocorria entre as espécies e também no seu interior, o que revela a influência malthusiana, e o que já justificava e legitimava a aplicação disso ao ser humano. A moderação da crítica, talvez por desconhecer tal diferenciação, é reforçada pela seguinte afirmação de Pannekoek:

Darwin considerou-a como tal e por medo de que sua teoria pudesse chocar os pré-conceitos religiosos vigentes, ele propositalmente evitou aplicá-la imediatamente ao homem. Foi somente depois de numerosos adiamentos e depois de outros fazerem antes dele, que decidiu dar esse passo. Em uma carta a Haeckel, ele deplorou o fato de que sua teoria deveria bater de frente com muitos preconceitos e tanta indiferença e que não tinha a perspectiva de viver o suficiente para vê-la transpor estes obstáculos (p. 51).  

Aqui fica parecendo que Darwin apenas aplicou a sua tese ao ser humano posteriormente. No entanto, na primeira edição do livro A Origem das Espécies, ele já tocava nesse assunto, e retirou da sexta edição o trecho que tratava da “seleção sexual” aplicada aos seres humanos. O motivo da retirada foi por causa de um trecho em que dizia que apesar de colocar que se não entrasse em detalhes, o raciocínio pareceria superficial[13]. Em 1871 ele publica A Origem do Homem, obra no qual efetiva de forma mais desenvolvida tal aplicação e foi a razão para retirar o trecho da sexta edição, pois estaria confirmada a “teoria” e assim não poderia considerá-la superficial. Na sexta edição, aparece também referências religiosas que foram produtos da pressão sobre ele.

Pannekoek parece que não tinha acesso ao esboço do livro A Origem das Espécies[14], nem outras obras suas, como o relato sobre a viagem ao redor do Beagle, ou suas cartas. Ele cita a carta acima, mas não demonstra ter acesso a outras. Como na época em que Pannekoek escreveu não havia se instituído o hábito (e até exigência burocrática) de colocar as fontes e seus dados, não sabemos de onde ele retirou tal citação (poderia ser sido de segunda mão, por exemplo, já que não tem referências).

Assim, Pannekoek poupa Darwin da responsabilidade do “darwinismo social”, o que é um equívoco. O próprio Darwin foi o primeiro darwinista social. E ao fazer isto, ele joga a responsabilidade para o que ele denominou “darwinistas burgueses”. A sua crítica aos darwinistas burgueses pressupõe a existência de darwinistas não burgueses (a começar por alguns social-democratas). Pannekoek não percebe que o darwinismo, assim como Darwin, é essencialmente burguês. Isso ocorre pelo fato de que as ideias de Darwin são produzidas de acordo com a episteme burguesa[15], revelando valores, concepções, etc., da classe dominante, bem como com o seu anistorismo, reducionismo e antinomismo. Ao perceber isso, também ficaria claro que falar em “darwinistas burgueses”[16] é um truísmo, pois o darwinismo é uma concepção burguesa.

Por outro lado, Pannekoek faz uma crítica equivocada ao que ele denomina “darwinismo burguês”, que é, no fundo, a única concepção darwinista coerente e consequente, e que leva as ideias de Darwin até as suas últimas consequências[17]. Isso pode ser visto em sua discordância com Haeckel:

Esta censura, a de estar coligada com os revolucionários vermelhos, causou um grande aborrecimento em Haeckel, seu defensor. Ele não podia suportá-la. Imediatamente depois tentou demonstrar que é precisamente a teoria darwinista que mostra a insustentabilidade das reivindicações socialistas e que darwinismo e marxismo “relacionam-se um ao outro como água e fogo” (p. 56).  

Nesse caso específico, Haeckel está correto e Pannekoek está equivocado. Marxismo e darwinismo são como a água e o fogo, um apaga o outro. A tese de Pannekoek sobre o darwinismo precisa, diante disso, de uma breve análise. O argumento de Pannekoek sobre a relação entre marxismo e darwinismo é a de que o primeiro trata do mundo animal, orgânico, e o marxismo trata da sociedade humana. E ele retira disso uma conclusão que também vai contra alguns representantes do darwinismo e social-democratas. Para alguns, segundo Pannekoek, o darwinismo se restringiria ao mundo animal e o marxismo ao mundo humano, sendo, portanto, ambos corretos em seu campo de análise. Ele discorda disso.

Assim, Pannekoek discorda dos “darwinistas burgueses” por enxergarem um antagonismo entre marxismo e darwinismo e discordam de outros, tal como alguns social-democratas, por conceberem que ambos são corretos, mas para analisar fenômenos distintos. Em relação a essa segunda posição, Pannekoek afirma que realmente há uma diferenciação entre mundo orgânico e sociedade humana, mas que a última emerge do primeiro, mantendo semelhanças e diferenças em relação a este. No mundo orgânico, argumenta Pannekoek, Darwin está correto no que se refere ao mundo orgânico, realmente comandado pela luta pela sobrevivência. Pannekoek faz algumas ressalvas e cita a concepção de Kropotkin sobre a importância da solidariedade no processo evolutivo[18]. Ele também afirma que Marx está correto em sua análise da sociedade. Porém, segundo ele, apesar da diferença de fenômenos, eles não são coisas totalmente separadas. A luta pela sobrevivência também se manifesta no mundo humano, só que sob outra forma.

Pannekoek sustenta toda uma concepção segundo a qual os seres humanos também são oriundos do mundo animal e vai se diferenciando, gerando um processo no qual se mantém a luta, mas modificada pelo desenvolvimento técnico, bem como pela linguagem e pensamento. A luta pela sobrevivência é, fundamentalmente, social. E aí reside que o mais apto ou mais forte não é o vencedor e sim o mais endinheirado. A competição social é diferente do animal pelo fato de que não é a força física, o que garante a supremacia no mundo orgânico, o elemento decisivo e sim a posse dos meios de produção e, no capitalismo, o dinheiro.

Pannekoek aponta para uma supervaloração da técnica, que ele identifica, principalmente, com os “instrumentos” (outra tradução coloca “ferramentas”, mas este é um termo mais restrito e, portanto, é menos adequado, já que torna o pensamento ainda mais limitado e pobre). Sem dúvida, tendo em vista algumas obras de Marx não terem sido publicadas (embora as que já estavam publicadas fossem suficientes para não cair em tal interpretação, tal como O Capital, A Miséria da Filosofia, entre outras), e a influência da social-democracia e das interpretações simplistas e hegemônicas do pensador alemão, então isso tem um certo sentido. De qualquer forma, Pannekoek poderia ter avançado numa leitura e interpretação mais profunda de Marx. A ênfase nos instrumentos é um reducionismo e empobrecimento da análise marxista. O conceito de forças produtivas é muito mais amplo e rico (inclui, inclusive, a força de trabalho) e o de modo de produção é que é o fundamental, especialmente as relações de produção.

Deixando de lado esse equívoco de Pannekoek, passemos para a questão principal, que é sua concepção da relação entre marxismo e darwinismo. Ele diz:

Aqui vemos que marxismo e darwinismo não são duas teorias independentes, cada qual aplicada ao seu domínio especial, sem ter nada em comum com a outra. Na realidade, o mesmo princípio subjaz em ambas as teorias. Elas formam uma unidade. O novo curso tomado pelos homens, a substituição dos órgãos naturais pelos instrumentos, faz com que esse princípio fundamental se manifesta diferentemente nos dois domínios; aquele do mundo animal que se desenvolve de acordo com o princípio de Darwin, enquanto entre o gênero humano o princípio de Marx é aplicado (p. 88).

A ideia de “mesmo princípio” entre marxismo e darwinismo é um equívoco colossal. E, mais curioso, Pannekoek não aprofunda a discussão sobre tal princípio (se o fizesse, seria constrangido a ver a radical diferença entre ambos) e por isso pode parecer que realmente ele existe. O suposto “princípio comum” seria a ideia de luta pela sobrevivência, que Darwin aplicou ao mundo orgânico e Marx ao mundo social.

A ideia de luta tem significados antagônicos em Marx e Darwin. A luta em Darwin é pela sobrevivência, na qual os mais aptos sobrevivem, devido ao processo de herança, e os menos aptos perecem, numa competição existente no mundo natural e humano (e aí que reside a crítica de Pannekoek a Darwin). A luta, em Marx, é a luta de classes (e pouco aparece a questão das classes na discussão de Pannekoek, e é acompanhadas, às vezes, pelo aparecimento do indivíduo ou mesmo da “raça”). A ideia de luta em Darwin é uma lei da natureza[19] e da qual não se pode escapar. A ideia de luta em Marx é um fenômeno social e histórico, ou seja, transitório, que surgiu e deixará de existir. Não é um princípio dogmático, uma “lei”, e sim uma constatação do que ocorreu e continua ocorrendo na história da humanidade. Em Darwin ocorre uma naturalização e eternização, em Marx há uma historicização.

Assim, há uma distinção fundamental na ideia de luta nos dois autores. Além disso, a concepção darwinista de luta pela sobrevivência foi criticada por Marx e por diversos marxistas posteriores[20]. A ideia de uma luta pela sobrevivência passa por cima da ideia de solidariedade, existente no mundo animal, bem como as outras determinações do processo evolutivo, o que é resultado do reducionismo darwinista, típico da episteme burguesa.

Pannekoek fez uma crítica limitada a Darwin e ao darwinismo, ao não perceber que ele partia da episteme burguesa (elemento que ele não poderia discutir nessa época e contexto, mas poderia abordar e reconhecer sobre outra linguagem, mais inexata e sem o mesmo significado, pois possibilitaria ver a diferença radical entre ambas as concepções, como é o caso do uso dos termos “concepção de mundo” ou “visão de mundo”). Por outro lado, não percebeu que o que ele afirmou sobre o darwinismo burguês se aplica a Darwin em sua integralidade, tanto nos interesses de classe quanto no conteúdo de sua ideologia. Pannekoek não analisou o caráter de classe do darwinismo e por isso não pode fazer uma crítica mais radical do mesmo.

O equívoco fundamental de Pannekoek é ter considerado as concepções de Marx e Darwin como semelhantes, como partindo de um mesmo princípio, e, assim, realizou uma análise da sociedade utilizando elementos extraídos do darwinismo, por sua  suposta  “similaridade”  com  o  marxismo,  e  acabou empobrecendo este último. Isso estava de acordo com o pseudomarxismo hegemônico da época, pois era uma vulgarização do marxismo. Desse equívoco principal decorrem os demais. Felizmente, Pannekoek avançaria em suas análises posteriores, especialmente em alguns aspectos, embora sem retomar e aprofundar a questão do darwinismo.

Enfim, estes são alguns dos principais elementos da obra de Pannekoek que merecem destaque. Nesta obra existem outros problemas, tal como sua discussão sobre a “perfeição”, a sua afirmação de que a divisão social do trabalho[21] permanece no socialismo ou a de que os animais pensam (mas não abstratamente), o uso do termo “sistema” (que na época não era tão problemático como hoje), ou, ainda, sobre o cérebro, entre outras. Porém, não cabe aqui uma crítica geral a todos os detalhes e problemas da obra. No entanto, há uma afirmação em particular que merece uma observação mais ampla, pelas consequências que más interpretações podem gerar. É a sua afirmação sobre raças. Vamos citar dois trechos e comentar:

O cérebro humano teve que se desenvolver junto com os instrumentos; e, de fato, vemos que a diferença entre as raças mais evoluídas da humanidade e a mais baixa reside principalmente no conteúdo de seu cérebro. Mas até mesmo o desenvolvimento deste órgão tem de parar num certo estágio (p. 86).

As comunidades tribais que usam melhores instrumentos e armas podem melhor se sustentar, e quando entram em conflito direto com outra raça, a raça que é melhor equipada com instrumentos artificiais ganhará e exterminará as mais fracas. As grandes melhorias na técnica e nos métodos de trabalho no início da humanidade, tal como a introdução da agricultura e da criação, tornam o homem uma raça fisicamente mais forte, que sofre menos com a dureza dos elementos naturais. As raças cujo equipamento técnico é melhor desenvolvido, podem caçar ou submeter aqueles cujo material artificial não é desenvolvido, pode garantir a melhor terra e desenvolver sua civilização. A dominação da raça europeia é baseada em sua supremacia técnica (p. 87). 

As duas afirmações poderiam dar a impressão de que Pannekoek é racista ou que, pelo menos, concebe a existência de “raças superiores” e “raças inferiores”. Como Marx foi acusado de racista por intérpretes deformadores, então é útil esclarecer também o caso de Pannekoek. A primeira é sobre a importância do cérebro e as diferenças entre “raças mais evoluídas” e “mais baixa”. Obviamente que a discussão sobre cérebro é equivocada, pois o cérebro, enquanto órgão, possibilita o desenvolvimento da mente humana, mas não cria o seu conteúdo. O seu conteúdo não reside no cérebro e sim na mente e esta é produzida socialmente[22].

O desenvolvimento do órgão, o cérebro, na humanidade, não significa desenvolvimento do pensamento, mas apenas potencialidade, possibilidade. Todos os seres humanos (com exceção daqueles que tem algum problema orgânico no cérebro) tem a mesma potencialidade e qualquer um poderia ser um grande intelectual como Marx, mas nem todos tem os interesses, as informações, os valores, a determinação, as condições sociais e históricas, a família, a bagagem cultural, etc., que este indivíduo particular teve. Até hoje existem pessoas que acreditam que a terra é plana, apesar de toda a produção científica e tecnológica existente hoje. O conteúdo do cérebro, que é a mente, é um produto social e não orgânico e este apenas possibilita aquele. A mente de um indivíduo é resultado de múltiplas determinações e somente numa concepção biologicista e ideológica poderia ser produto do cérebro. Esse “deslize” de Pannekoek é compreensível e ele mesmo, no futuro, vai avançar mais nessa discussão[23].

No que se refere ao problema da raça, temos duas afirmações. A primeira afirma que o conteúdo do cérebro das raças mais evoluídas difere da raça mais baixa. Na segunda afirma que a raça que possui melhor equipamento técnico “ganhará e exterminará” as mais fracas e que a “raça europeia” realizou a dominação (colonial) por causa de sua supremacia técnica. Sobre a primeira afirmação, fica claro que ele apenas constatava o que acontecia de fato (ou seja, não é um princípio, um desejo, ou uma defesa disso). A segunda afirmação também, ou seja, os europeus realmente dominaram outras sociedades. A razão da dominação dos europeus, foi a supremacia técnica, tal como as armas, o que é nova constatação e não defesa.

Mas, independentemente disso, pode, ainda, haver impressão de racismo pelos termos utilizados (evoluída, mais baixa, extermínio, etc.). Porém, é preciso, para entender essas afirmações, compreender o que ele está denominando “raça”. Ele usa raça não no sentido biológico do termo, seja na tese das duas raças (brancos e negros) ou três raças (caucasoide, negroide, mongoloide), ou qualquer outra, e sim num sentido cultural. No fundo, ele está tratando de etnias. Apesar disso, comete o equívoco de falar em “raça europeia”, pois na Europa existiam várias etnias que formaram estados-nações, que, por sua vez, mantém diferenças internas (que foi diminuindo com o passar do tempo, mas ainda tem resquícios, como, por exemplo os bascos na Espanha). O que ele quis dizer foi que determinadas sociedades (ou “comunidades”, “etnias”, dependendo de como se definem tais termos) tem uma superioridade técnica sobre outras e por isso acaba vencendo-as, tal como ocorreu com a colonização espanhola e portuguesa. Isso torna evidente que não há nenhum racismo nas afirmações de Pannekoek, apesar de serem afirmações problemáticas pela forma como foram realizadas, dando margem para mal-entendidos interpretativos.

Por fim, o mérito de Pannekoek, que escreveu essa obra em 1912, foi destoar da interpretação social-democrata do darwinismo, apontar diferenças entre os seus adeptos, mostrar suas fontes, embora com certa moderação.

O que resta para o leitor atual é ler e assimilar essa contribuição e avançar no sentido de uma crítica mais radical do darwinismo[24] e apontar para sua superação. Uma verdadeira teoria da evolução ainda precisa ser constituída e isso significa a superação do darwinismo. Depois de Pannekoek, outros avançaram, seja na crítica do darwinismo, seja na análise do processo evolutivo. A obra de Pannekoek emerge na história do debate sobre o darwinismo como umas das primeiras que avança numa reflexão que, apesar dos seus equívocos, abre espaço para novas reflexões e que se efetivaram posteriormente, conhecendo ou não tal escrito.


[1] VIANA, Nildo. Pannekoek: Das Organizações Burocráticas à Auto-Organização. In: PANNEKOEK, Anton. Partidos, Conselhos e Sindicatos. Goiânia: Edições Enfrentamento, 2021

[2] Esse é o caso de Rosa Luxemburgo e a Liga Spartakus e Otto Rühle e os comunistas internacionalistas, na Alemanha; o bolchevismo, na Rússia; Sylvia Pankhurst e outros na Inglaterra, entre diversos outros. Pannekoek contava com outros dissidentes no interior da social-democracia, e que, em sua maioria, aderiram ao que foi denominado “socialismo radical”, um nome para denominar as diversas e heterogêneas forças políticas que eram dissidentes e passam a ser oponentes da social-democracia.

[3] Existem outras definições e concepções a respeito da dissidência, mas essa é a nossa posição a respeito deste termo e que ajuda a entender os processos políticos e intelectuais.

[4] O PSTU teve como principal organização geradora a tendência interna do PT, chamada Convergência Socialista (de orientação trotskista), que ao ser expulsa do partido, se juntou com diversos pequenos grupos dissidentes internos e alguns externos ao partido e com o PLP – Partido da Libertação Proletária, e fundou o novo partido.

[5] Outro momento importante do debate foi entre Rosa Luxemburgo e Emile Vandervelde. Os textos deste debate estão reunidos em: PARVUS, A. e outros. Debate sobre la Huelga de Masas. 1ª parte. 2ª edição, México: PYP, 1978.

[6] Sobre o paradigma positivista, seu significado e força na época do regime de acumulação intensivo, cf. VIANA, Nildo. Hegemonia Burguesa e Renovações Hegemônicas. Curitiba: CRV, 2019.

[7] Isso pode ser visto no caso do genro de Marx, Fulano, que escreveu um livro contra a religião baseando-se no darwinismo e solicitou a Darwin que o prefaciasse. Este, obviamente, recusou, pois não queria problemas com a religião e Igreja, tal como coloca Pannekoek nesta obra, e familiares. O fato curioso é que a resposta a essa carta gerou uma confusão, pois foi considerada uma resposta a Marx. É devido a isto que se criou a lenda segundo a qual Marx teria solicitado a Darwin fazer o prefácio de O Capital (cf. VIANA, Nildo. A Verdade sobre o Darwinismo. Goiânia: Edições Redelp, 2020).

[8] A sua ambiguidade vinha de sua leitura de Marx e convicção revolucionária, por um lado, e a influência da social-democracia, por outro lado, que era uma deformação do marxismo.

[9]  Um retrato intelectual e político de Kautsky é oferecido por Paul Mattick, com o sugestivo título: “Karl Kautsky: de Marx a Hitler” (cf. MATTICK, Paul. Integração Capitalista e Ruptura Operária. Porto: A Regra do Jogo, 1977).

[10] Mesmo sem a publicação de certas obras de Marx, a versão kautskista é extremamente empobrecedora e limitada e inclusive sobre a teoria do capitalismo de Marx, cuja obra máxima já havia sido publicada (o volume 01 pelo próprio Marx e os outros dois volumes por Engels a partir de seus manuscritos e o quarto pelo próprio Kautsky). Cf. KAUTSKY, Carlos. La Doctrina Economica de Carlos Marx. Buenos Aires: El Yunque Editora, 1973.

[11] Marx divide a economia política em três tendências principais: a clássica (Adam Smith, David Ricardo), a eclética (Jean-Baptiste Say, Stuart Mill, etc.) e vulgar, cujo grande nome é Malthus (cf. MARX, Karl. O Capital. 3ª edição, vol. 01, São Paulo: Nova Cultural, 1988). Marx também realiza uma crítica à “teoria” da população de Malthus. Malthus ficou famoso por naturalizar a fome e trazer termos que posteriormente Darwin irá trabalhar e essa foi a sua base para ele ser contra a chamada “lei dos pobres”, pois devem sobreviver apenas os “mais aptos”.

[12] Sobre isso veja o já citado A Verdade sobre o Darwinismo e também: FERREIRA, Ricardo. Bates, Darwin, Wallace e a Teoria da Evolução. Brasília: UnB, 1990.

[13] Sobre isso veja o prefácio de Nélio Marco Bizzo na publicação da primeira edição de A Origem das Espécies (DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. São Paulo: Edipro, 2018).

[14] Cf. DARWIN, Charles. A Origem das Espécies – Esboço de 1842. São Paulo: Clássicos Econômicos Newton, 1996.

[15] Sobre episteme burguesa, veja: VIANA, Nildo. O Modo de Pensar Burguês. Episteme Burguesa e Episteme Marxista. Curitiba: CRV, 2018.

[16] Obviamente que aqui se trata de “burgueses” não como classe e sim como portadores de uma concepção burguesa, ou seja, no plano intelectual.

[17] E que ele mesmo já levava, pois basta ver o seu racismo e sexismo explícitos, bem como a sua aprovação das ideias do seu primo, Francis Galton, um eugenista, para se ter clareza disso (DARWIN, Charles. A Origem do Homem e a Seleção Sexual. São Paulo: Hemus, 1974.). A esse respeito, cf. A Verdade sobre o Darwinismo.

[18] Trata-se do livro “Ajuda Mútua”, de Kropotkin (KROPOTKIN, Piotr. Ajuda Mútua: Um fator de evolução. São Sebastião: A Senhora Editora, 2009). Uma crítica da interpretação kropotkista de Darwin pode ser vista em A Verdade sobre o Darwinismo.

[19] Pannekoek reconhece o seu vínculo com a “teoria” da população de Malthus, mas acaba desconsiderando o significado disso.

[20] Veja: PRENANT, Marcel. Darwin. México, Ediciones Quetzal, 1940; MARCO (BIZZO), Nélio. O Que é Darwinismo? São Paulo: Brasiliense, 1987; VIANA, Nildo. A Verdade sobre o Darwinismo. Goiânia: Edições Redelp, 2020.

[21] É na obra A Ideologia Alemã (MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª edição, São Paulo: Ciências Humanas, 1982) que Marx explicita melhor sua posição diante da questão da divisão social do trabalho e a relaciona com a propriedade privada e, posteriormente, com as relações de produção. A posição de Marx é que no comunismo há uma abolição da divisão social do trabalho e ele explicita isso com sua afirmação de que na nova sociedade os indivíduos poderão pescar de manhã, escrever poesia pela tarde e fazer crítica a noite. Independente disso, o vínculo entre divisão social do trabalho e exploração de classe aponta para a necessidade de tal abolição.

[22] Cf. VIANA, Nildo. Cérebro e Ideologia. Uma Crítica ao Determinismo Cerebral. Jundiaí: Paco, 2010.

[23] Veja: PANNEKOEK, Anton. Lenin Filosofo. Córdoba: PYP, 1973.

[24] Outras concepções de evolução emergiram após o darwinismo, como o neolamarckismo, a teoria do equilíbrio pontual, o cladismo, a “biologia dialética”, etc. Sem dúvida, algumas dessas concepções se aproximam do marxismo, mas seria necessário uma transformação social radical e total para se desenvolver a episteme marxista e pesquisas sobre a natureza livre das determinações da sociedade capitalista (episteme burguesa, ideologias, pressão social, financiamento, etc.) para poder avançar efetivamente na compreensão da gênese da humanidade e na evolução das espécies.

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