Rosa Luxemburgo em Retrospectiva – Paul Mattick

por Paul Mattick, originalmente publicado na revista socialista libertária Root and Branch #6, em 1978. Versão em HTML em Marxists.org
Tradução de R. d’ Arêde para o portal Crítica Desapiedada

Em breve completarão sessenta anos[1] desde que os mercenários da liderança social-democrata alemã assassinaram Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo. Embora sejam mencionados na mesma frase, uma vez que ambos simbolizavam o elemento radical no interior da revolução política alemã de 1918, o nome de Rosa Luxemburgo tem um peso maior porque seu trabalho teórico foi de maior poder seminal. De fato, pode-se dizer que ela foi a personalidade mais marcante no movimento operário internacional depois de Marx e Engels, e que sua obra não perdeu relevância política, apesar das mudanças que o sistema capitalista e o movimento operário têm sofrido desde sua morte.

Como se dá em todos os casos, Rosa Luxemburgo foi filha de seu tempo e só pode ser entendida no contexto histórico do movimento social-democrata do qual fez parte. Enquanto a crítica de Marx à sociedade burguesa evoluiu em um período de rápido desenvolvimento capitalista, Rosa Luxemburgo esteve ativa em uma época de crescente instabilidade para o capitalismo, na qual as contradições da produção de capital, abstratamente formuladas, revelavam-se nas formas concretas da competição imperialista e da intensificação das lutas de classes. Embora a autêntica crítica proletária da economia política inicialmente consistisse, de acordo com Marx, na luta dos trabalhadores por melhores condições de trabalho e padrões de vida mais elevados, preparando as lutas futuras para a abolição do capitalismo, essa “luta final”, na visão de Rosa Luxemburgo, não podia mais ser relegada a um futuro distante, pois já estava presente nas lutas de classes em expansão. A luta diária por reformas sociais estava inseparavelmente conectada à necessidade histórica da revolução proletária.

Sem querer entrar na biografia[2] de Rosa Luxemburgo, é preciso dizer que sua origem é de classe média e que ela entrou no movimento socialista ainda bem jovem. Assim como outros, também foi forçada a deixar a Polônia russa e ir para a Suíça estudar. Seu principal interesse, como convém a uma socialista influenciada pelo marxismo, era a economia política. Mas seu trabalho inicial nesse campo é hoje apenas de interesse histórico. Houve sua dissertação inaugural, O Desenvolvimento Industrial da Polônia (1898), quefez pela Polônia, embora de modo menos abrangente, aquilo que O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, de Lênin, fez pela Rússia czarista um ano depois. Houve também suas palestras populares na Escola do Partido Social-Democrata, postumamente publicadas por Paul Levi (1925) sob o título Introdução à Economia Política. Neste último trabalho, deve-se ressaltar, Rosa Luxemburgo afirmou que a validade da economia política se limita ao capitalismo, deixando de existir com o desaparecimento desse sistema. Em sua dissertação, ela chegou à conclusão de que o desenvolvimento da economia polonesa avançaria em conjunto com o desenvolvimento da Rússia, levaria a uma completa integração e, assim, acabaria com as aspirações nacionais da burguesia polaca. Mas este desenvolvimento também unificaria o proletariado polonês e russo, levando à eventual destruição do capitalismo russo-polonês. A principal contradição da produção capitalista era vista por ela como uma contradição entre a capacidade de produção e a limitada capacidade de consumo dentro das relações de produção capitalistas. Essa contradição conduz a crises econômicas recorrentes e à crescente miséria da classe trabalhadora, o que, a longo prazo, conduz à revolução social. 

Foi apenas com seu trabalho sobre A Acumulação do Capital (1912) que as teorias econômicas de Rosa Luxemburgo se tornaram controversas. Embora ela afirmasse que esse livro fosse resultado das complicações surgidas no decorrer de suas palestras populares sobre economia nacional, a saber, sua incapacidade de relacionar o processo global de reprodução capitalista aos limites objetivos postulados da produção de capital, fica claro, a partir da própria obra, que também foi uma reação à deformação da teoria marxista iniciada pelo “revisionismo”, que tomou conta do movimento socialista por volta da virada do século. Revisionismo este operado em dois níveis: o nível empírico-primitivo personificado por Eduard Bernstein[3], que tão somente comparava o desenvolvimento capitalista real com aquele dedutível da teoria marxiana, e a virada teórica mais sofisticada do marxismo acadêmico, culminando na interpretação que Tugan-Baranowsky[4] faz de Marx, e naquelas de seus vários discípulos.

Apenas o primeiro volume d’O Capital foi publicado durante a vida de Marx, enquanto o segundo e terceiro volumes foram preparados por Friedrich Engels a partir de textos não revisados que, embora escritos antes da publicação do primeiro volume, foram deixados a seu cuidado. Se o primeiro volume lida com o processo de produção capitalista, o segundo está preocupado com o processo de circulação. Por fim, o terceiro volume aborda o sistema capitalista como um todo, em sua forma fenomênica, determinado pelas relações de valor que lhe são subjacentes. Como o processo de reprodução necessariamente controla o processo de produção, Marx achou útil expor este fato por meio de alguns diagramas de reprodução abstratos no segundo volume d’O Capital. Os diagramas dividem a produção social total em dois setores: um produzindo meios de produção e o outro meios de consumo. As transações entre esses dois departamentos são pensadas de forma a permitir que a reprodução do capital social total tenha continuidade, seja na mesma escala ou em escala ampliada. Mas aquilo que é um pressuposto para os diagramas de reprodução, isto é, a alocação do trabalho social conforme necessário para o processo de reprodução, deve, na realidade, ser primeiro realizado às cegas, por meio das atividades não coordenadas dos muitos capitais individuais em sua busca competitiva pelo mais-valor.

Os diagramas de reprodução não distinguem entre valores e preços; isto é, eles tratam os valores como se fossem preços. Para aquilo a que se propõem, ou seja, chamar a atenção para a necessidade de uma certa proporcionalidade entre as diferentes esferas de produção, os diagramas cumprem sua função pedagógica. Eles não retratam o mundo real, mas são fundamentais para auxiliar em sua compreensão. Delimitado dessa forma, não é relevante se as inter-relações de produção e troca são expressadas em termos de valor ou preço. Como a forma preço do valor, abordada no terceiro volume d’O Capital, refere-se ao processo efetivo de produção e troca capitalista, as condições imaginárias de equilíbrio dos diagramas de reprodução de Marx não se referem ao mundo capitalista real. Ainda assim, Marx achou muito necessário visualizar o processo de reprodução em sua simplicidade fundamental, a fim de se livrar de todas as inferências enigmáticas e descartar falsos subterfúgios, que assumem a aparência de análise científica mas não podem ser eliminados enquanto o processo de reprodução social for analisado diretamente em sua forma concreta e complicada[5].[6]

Na realidade, de acordo com Marx, o processo de reprodução sob condições capitalistas impossibilita qualquer tipo de equilíbrio e, ao invés disso, implica “a possibilidade de crises, já que o equilíbrio é acidental sob as condições dessa produção[7].[8]” Tugan-Baranowsky, no entanto, interpretou os diagramas de reprodução de modo diferente devido à sua aparente similaridade com a teoria do equilíbrio burguesa, a principal ferramenta da teoria burguesa do preço. Ele chegou à conclusão de que, enquanto o sistema se desenvolver proporcionalmente em relação a seus requerimentos de reprodução, não haveria limites objetivos. As crises seriam causadas pela desproporcionalidade que surge entre as diferentes esferas de produção, mas poderiam sempre ser superadas pelo restabelecimento daquela proporcionalidade que assegura a acumulação de capital. Esta era uma ideia desconcertante para Rosa Luxemburgo, ainda mais porque ela não podia negar as implicações de equilíbrio dos diagramas de reprodução de Marx. Se Tugan-Baranowsky os interpretou corretamente, então Marx estava errado, porque tal interpretação negava o inevitável fim do capitalismo.

A discussão em torno dos diagramas de reprodução abstratos de Marx foi particularmente intensa na Rússia devido às divergências preexistentes entre marxistas e populistas quanto ao futuro da Rússia, em face do seu atraso e de suas instituições socioeconômicas peculiares. Os populistas afirmavam ser tarde demais para que a Rússia entrasse na competição mundial com as potências capitalistas estabelecidas, e que, além do mais, era perfeitamente possível construir uma sociedade socialista com base na coletividade ainda não dissolvida da produção camponesa, ao passo que os marxistas sustentavam que o desenvolvimento nos moldes ocidentais era inevitável, e que esse desenvolvimento por si só criaria os mercados necessários dentro da Rússia e no mundo em geral. Os marxistas enfatizaram que é a produção do capital, e não a satisfação do consumo, que determina a produção capitalista. Portanto, não há razão alguma para assumir que uma restrição do consumo retardaria a acumulação de capital; pelo contrário, quanto menos se consumir, mais rápido crescerá o capital.  

Essa “produção pela produção” não fazia sentido para Rosa Luxemburgo – não porque ela ignorasse o lucro como motivador da produção capitalista, que procura constantemente reduzir a participação dos trabalhadores na produção social, mas porque ela não pôde ver como o mais-valor extraído poderia ser realizado na forma dinheiro em um mercado composto apenas por capital e trabalho, tal como é retratado nos diagramas de reprodução. A produção tem que atravessar o processo de circulação. Ela começa com o dinheiro, investido em meios de produção e força de trabalho, e termina com uma quantidade maior de dinheiro nas mãos dos capitalistas, a ser reinvestido em outro ciclo de produção. De onde viria esse dinheiro adicional? Na visão de Rosa Luxemburgo, não poderia vir dos capitalistas; pois, se viesse, eles não seriam os beneficiários do mais-valor, mas pagariam com seu próprio dinheiro pelo equivalente em mercadoria. Nem poderia vir das compras dos trabalhadores, que recebem apenas o valor de sua força de trabalho, deixando o mais-valor em sua forma mercadoria para os capitalistas. Para tornar o sistema funcional, deve haver um “terceiro mercado” separado das relações de troca entre capital e trabalho, no qual o mais-valor produzido possa ser transformado em dinheiro adicional.

Nesse sentido, Rosa Luxemburgo encontrou uma lacuna em Marx. Ela pretendia fechá-la e, com isso, fundamentar a convicção de Marx quanto ao necessário colapso do capitalismo. Não obstante A Acumulação do Capital aborde o problema da realização em perspectiva histórica — começando pela economia clássica e terminando com Tugan-Baranowsky e seus muitos imitadores — buscando mostrar que esse sempre foi o calcanhar de Aquiles da economia política, sua própria solução para o problema não é, essencialmente, mais do que um mal-entendido quanto à relação entre dinheiro e capital, e uma interpretação equivocada do texto marxiano. Conforme ela apresenta o assunto, no entanto, tudo parece se encaixar no devido lugar: o caráter dialético do processo de expansão do capital, como uma fusão resultante da destruição das economias pré-capitalistas; a necessária extensão desse processo para todo o mundo, como demonstrado pela criação do mercado global e pelo crescente imperialismo em busca de mercados para a realização do mais-valor; a resultante transformação da economia mundial em um sistema semelhante ao sistema fechado do diagrama de reprodução de Marx; e com isso, finalmente, o inevitável colapso do capitalismo por falta de oportunidades para realizar seu mais-valor.

Rosa Luxemburgo se deixou levar pela lógica de sua própria construção, a ponto de revisar Marx mais profundamente do que haviam feito os revisionistas com a concepção de um desenvolvimento teoricamente possível e harmonioso do capital, o que, para eles, transformou o socialismo em um problema puramente ético e de reforma social pela via política. Por outro lado, os diagramas de reprodução marxianos, se interpretados como uma versão da Lei de Say[9] da identidade de oferta e procura, tinham que ser rejeitados. Assim como seus adversários, Rosa Luxemburgo falhou em ver que estes diagramas não tinham qualquer conexão com a questão da viabilidade do sistema capitalista, sendo apenas um passo intermediário, metodologicamente determinado, na análise das leis de movimento do sistema capitalista como um todo, cuja dinâmica deriva da produção de mais-valor. Embora o capitalismo seja de fato afetado pelas dificuldades na esfera da circulação e, com isto, na realização do mais-valor, não foi nela que Marx procurou ou achou a chave para o entendimento da suscetibilidade do capitalismo às crises e ao seu inevitável fim. Mesmo presumindo que não haja problema algum com a realização do mais-valor, o capitalismo encontra seus limites objetivos naqueles da produção de mais-valor.

De acordo com Marx, a contradição básica do capitalismo, da qual surgem todas as demais dificuldades, encontra-se nas relações de valor e mais-valor da produção capitalista. É a produção de valor de troca em sua forma monetária, derivada da forma valor de uso da força de trabalho, que produz, além de seu próprio equivalente em valor de troca, um mais-valor para os capitalistas. A busca pelo valor de troca se transforma em acumulação de capital, manifestando-se em um crescimento do capital investido em meios de produção relativamente mais rápido do que o capital investido em força de trabalho. Embora esse processo expanda o sistema capitalista através do aumento da produtividade do trabalho associado a ele, também tende a reduzir a taxa de lucro sobre o capital, à medida que parte do capital investido em força de trabalho — que é a única fonte de mais-valor — diminui em relação ao capital social total. Esse longo e complicado processo não pode ser tratado de forma satisfatória neste curto artigo, mas deve ao menos ser mencionado para diferenciar as teorias da acumulação de Marx e de Rosa Luxemburgo. No modelo abstrato de desenvolvimento do capital de Marx, as crises capitalistas, assim como o inevitável fim do sistema, têm sua origem no colapso momentâneo, ou finalmente total, do processo de acumulação devido à ausência de mais-valor ou lucro.

Assim, para Marx, os limites objetivos do capitalismo são determinados pelas relações sociais de produção enquanto relações de valor, ao passo que para Rosa Luxemburgo o capitalismo não poderia existir de nenhuma outra forma senão através da absorção de seu mais-valor pelas economias pró-capitalistas. Isso implica o absurdo de que estas nações atrasadas tenham um excedente em forma monetária suficientemente grande para acomodar o mais-valor dos países capitalisticamente avançados. Mas, como já mencionado, esse erro foi o corolário da falsa noção de Rosa Luxemburgo de que a totalidade do mais-valor, destinado à acumulação, deveria gerar um equivalente em forma de dinheiro, a ser realizado como capital. Na verdade, é claro, o capital assume às vezes a forma de dinheiro e, outras vezes, a forma de todo tipo de mercadoria — todas sendo expressas em termos de dinheiro, sem, contudo, assumirem simultaneamente a forma do dinheiro. Apenas uma pequena e decrescente parte da riqueza capitalista precisa estar na forma dinheiro; a maior parte, embora seja expressa em termos de dinheiro, permanece em sua forma mercadoria, e, como tal, permite a realização do mais-valor e do capital adicional. 

De modo geral, a teoria de Rosa Luxemburgo foi considerada uma aberração e uma crítica injustificada a Marx. No entanto, seus críticos estavam tão distantes da posição de Marx quanto Rosa Luxemburgo. A maioria desses críticos aderiu a uma teoria rudimentar do subconsumo, a uma teoria da desproporcionalidade, ou uma combinação de ambas[10]. Lênin, por exemplo — para não falar dos revisionistas — identificou a causa das crises nas desproporcionalidades que resultam do caráter anárquico da produção capitalista, e meramente acrescentou ao argumento de Tugan-Baranowsky aquele do subconsumo dos trabalhadores. Em todo caso, ele não acreditava que o capitalismo estava fadado ao colapso em função de suas contradições imanentes. Foi somente com a Primeira Guerra Mundial, e com as convulsões revolucionárias que a seguiram, que a teoria de Rosa Luxemburgo encontrou uma receptividade maior na seção radical do movimento socialista. Contudo, não tanto por causa de sua análise particular sobre a acumulação de capital, mas por sua insistência sobre os limites objetivos do capitalismo. A guerra imperialista deu à sua teoria alguma plausibilidade, e, de fato, o fim do capitalismo parecia realmente próximo. O colapso do capitalismo se tornou a ideologia revolucionária da época e respaldou as tentativas frustradas de transformar agitações políticas em revoluções sociais.

Certamente que a teoria de Rosa Luxemburgo não era menos abstrata que a de Marx. A hipótese de Marx sobre uma queda tendencial da taxa de lucro não podia revelar em que ponto específico do tempo não mais seria possível compensar essa queda por meio de uma exploração cada vez maior do número relativamente menor de trabalhadores, o que aumentaria a massa de mais-valor o suficiente para manter uma taxa de lucro que garantisse a continuidade da expansão do capital. De modo similar, Rosa Luxemburgo não podia dizer em que momento a conclusão da capitalização do mundo iria excluir a realização de seu mais-valor. A expansão do capital para o exterior também era apenas uma tendência, implicando uma competição imperialista progressivamente mais devastadora por territórios cada vez menores onde o mais-valor pudesse ser realizado. A realidade do imperialismo mostrou a precariedade do sistema, o que poderia levar a situações revolucionárias muito antes que seus limites objetivos fossem alcançados. Assim, para todos os efeitos práticos, ambas as teorias assumiram a possibilidade de ações revolucionárias, não como resultado lógico de seus modelos abstratos de desenvolvimento, mas porque estas teorias indicavam de forma inequívoca as crescentes dificuldades do sistema capitalista, o que poderia, em qualquer crise mais grave, transformar a luta de classe em um combate pela abolição do capitalismo.

Embora certamente equivocada, a teoria de Rosa Luxemburgo manteve um caráter revolucionário, porque, assim como a de Marx, levava à conclusão da insustentabilidade histórica do capitalismo. Ainda que com os argumentos duvidosos, ela restaurou — contra o revisionismo, o reformismo e o oportunismo — a proposição marxiana perdida de que o capitalismo está condenado a desaparecer por causa de suas próprias e intransponíveis contradições, e que esse fim, embora objetivamente determinado, seria acarretado pelas ações revolucionárias da classe trabalhadora.

A derrubada do capitalismo tornaria todas as teorias sobre seu desenvolvimento redundantes. Mas, enquanto durar o sistema, o realismo de uma teoria pode ser julgado por sua própria história. Levando em conta que a teoria de Marx, apesar das tentativas feitas nessa direção, não pode ser integrada ao corpo do pensamento econômico burguês, a teoria de Rosa Luxemburgo encontrou algum reconhecimento na teoria burguesa, embora de um modo bem distorcido. Com a rejeição, pela própria economia burguesa, da concepção do mercado como um mecanismo de equilíbrio, a teoria de Rosa Luxemburgo passou, de certa forma, a ser aceita como precursora da economia keynesiana. Seu trabalho foi interpretado por Michael Kalecki[11] e Joan Robinson[12], por exemplo, como uma teoria da “demanda efetiva”, cuja falta, presumivelmente, explicaria as recorrentes dificuldades capitalistas. Rosa Luxemburgo imaginava que o imperialismo, o militarismo e a preparação para a guerra auxiliavam na realização do mais-valor por meio da transferência do poder de compra da população em geral para as mãos do Estado; assim como o keynesianismo moderno tentou alcançar o pleno emprego através do financiamento do déficit e de manipulações monetárias. No entanto, embora sem dúvida seja possível alcançar temporariamente o pleno emprego dessa forma, não é possível manter esse estado de plenitude, uma vez que as leis de movimento da produção capitalista exigem não uma distribuição diferente do mais-valor, mas seu aumento constante. Falta de demanda efetiva é apenas um outro termo para falta de acumulação, já que a demanda necessária para [assegurar] condições de prosperidade é gerada unicamente pela expansão do capital. Seja como for, a atual bancarrota do keynesianismo torna desnecessário matar essa teoria de forma teórica. É suficiente dizer que sua absurdidade se manifesta hoje no crescimento incessante do desemprego e da inflação.

Embora Rosa Luxemburgo não tenha tido muito êxito com sua teoria da acumulação, ela foi mais bem-sucedida em seu consistente internacionalismo, que estava conectado, é claro, com sua concepção de acumulação enquanto extensão global do modo de produção capitalista. Em sua visão, a competição imperialista estava transformando rapidamente o mundo em um mundo capitalista e, com isso, desenvolvendo a confrontação direta e irrestrita entre capital e trabalho. Se a ascensão da burguesia coincidiu com a formação do Estado-nação moderno, dando origem à ideologia do nacionalismo, a maturidade e declínio do capitalismo subentendia o “internacionalismo” imperialista da burguesia e, dessa forma, também o internacionalismo das classes trabalhadoras, se elas quisessem tornar suas lutas de classe efetivas. A integração reformista das aspirações proletárias no sistema capitalista levou ao social-imperialismo, como o outro lado da moeda nacionalista. Objetivamente, não havia nada por trás do frenético crescimento do nacionalismo que não o imperativo imperialista. Opor-se ao imperialismo exigia, então, uma total rejeição a todas as formas de nacionalismo, mesmo aquelas adotadas pelas vítimas da agressão imperialista. Nacionalismo e imperialismo eram inseparáveis e tinham que ser combatidos com igual fervor.

Diante do inicialmente dissimulado, mas logo evidente social-patriotismo do movimento operário oficial, o internacionalismo de Rosa Luxemburgo representou a ala esquerda deste movimento — mas não completamente. De certa maneira, ele era uma generalização de suas experiências específicas no movimento socialista polonês, que tinha se dividido sobre a questão da autodeterminação nacional. Como já sabemos, através de seu trabalho sobre o desenvolvimento industrial da Polônia, Rosa Luxemburgo esperava uma completa integração do capitalismo russo e polonês, além de uma subsequente unificação de suas respectivas organizações socialistas, tanto em termos práticos quanto em termos de princípios. Ela não podia imaginar movimentos socialistas nacionalmente orientados, muito menos um socialismo limitado nacionalmente. Aquilo que era verdade para a Rússia e a Polônia, também seria verdade para o mundo como um todo; as cisões nacionais tinham de ser encerradas com a unidade do socialismo internacional.  

A seção bolchevique do Partido Social-Democrata Russo não compartilhava do rígido internacionalismo de Rosa Luxemburgo. Para Lênin, a subjugação de nacionalidades pelos países capitalistas mais fortes trouxe clivagens adicionais aos atritos sociais básicos, os quais poderiam, eventualmente, voltar-se contra os poderes dominantes. É completamente irrelevante considerar se a defesa de Lênin em prol da autodeterminação das nações refletia uma convicção subjetiva ou uma atitude democrática quanto às necessidades nacionais especiais e peculiaridades culturais, ou se era simplesmente uma repulsa contra todas as formas de opressão. Lênin era, antes de mais nada, um político pragmático, mesmo que só pudesse cumprir esse papel tardiamente. Como um político pragmático, ele percebeu que as diferentes nacionalidades dentro do Império Russo representavam uma constante ameaça ao regime czarista. 

Para deixar claro, Lênin também era um internacionalista, e viu a revolução socialista em termos de revolução mundial. Mas essa revolução tinha que começar em algum lugar, e ele presumiu que ela quebraria primeiro o elo mais fraco da cadeia de potências imperialistas concorrentes. No contexto russo, apoiar a autodeterminação das nações, até o ponto de secessão, subentendia a conquista de “aliados” em qualquer tentativa de derrubar o czarismo. Essa estratégia estava amparada na esperança de que, uma vez livre, as diferentes nacionalidades optariam por permanecer dentro da nova comunidade russa, fosse por interesse próprio ou pelas pressões de suas próprias organizações socialistas.

Até a Revolução Russa, no entanto, toda essa discussão em torno da questão nacional permaneceu estritamente acadêmica. Mesmo depois da revolução, a concessão de autodeterminação às várias nacionalidades dentro da Rússia não foi muito significativa, pois a maioria dos territórios envolvidos estavam ocupados por potências estrangeiras. Ainda assim, o regime bolchevique continuou pressionando pela autodeterminação, a fim de enfraquecer outras nações imperialistas, particularmente a Inglaterra, em uma tentativa de fomentar revoluções coloniais contra o capitalismo ocidental, que ameaçava destruir o Estado bolchevique. 

A Revolução Russa encontrou Rosa Luxemburgo em uma prisão na Alemanha, onde ela permaneceu até a derrubada da monarquia alemã. Mas ela foi capaz de acompanhar o progresso da Revolução Russa. Embora encantada com a tomada do poder pelos bolcheviques, ela não podia aceitar as políticas de Lênin em relação aos camponeses e às minorias nacionais. Em ambos os casos ela se preocupou desnecessariamente. Não obstante sua previsão de que a concessão de autodeterminação às várias nacionalidades dentro da Rússia apenas cercaria o novo Estado com um cordão de países contrarrevolucionários reacionários tenha se mostrado correta, isso se deu apenas no curto prazo. Rosa Luxemburgo falhou em perceber que era o princípio da autodeterminação que ditava a política bolchevique em relação às nacionalidades russas, mais do que a força das circunstâncias sobre as quais os bolcheviques não tinham controle[13]. Na primeira oportunidade, eles começaram a enfraquecer gradualmente a autodeterminação das nações, terminando por incorporar todas as novas nações independentes a um restaurado Império Russo e, além disso, forjando para si mesmos esferas de interesse nos territórios extrarrussos.  

Com base em sua própria teoria do nacionalismo e do imperialismo, Rosa Luxemburgo deveria ter percebido que a teoria de Lênin não poderia ser atualizada em um mundo de potências imperialistas concorrentes, e muito provavelmente não seria necessário colocá-la em prática caso o capitalismo fosse derrubado por uma revolução internacional. A desintegração do império russo não se deveu ao, nem foi auxiliada pelo princípio da autodeterminação, mas ocasionada pela perda da guerra; assim como foi a vitória em outra guerra que levou à recuperação do território anteriormente perdido e ao renascimento do imperialismo russo. O capitalismo é um sistema expansionista e, portanto, necessariamente imperialista. É a maneira capitalista de superar as limitações nacionais [postas] à produção de capital e sua centralização — de ganhar ou assegurar posições privilegiadas ou dominantes dentro da economia mundial. Portanto, também é uma defesa contra essa tendência geral; mas, em todos os casos, é o resultado inevitável da acumulação de capital.

Como Rosa Luxemburgo indicou, a contraditória “integração” capitalista da economia mundial não consegue alterar a dominação das nações mais fracas pelas nações mais fortes através do controle destas sobre o mercado mundial. Tal situação torna ilusória uma independência nacional verdadeira. O que a independência política pode alcançar, na melhor das hipóteses, é a subjugação dos trabalhadores ao controle nativo, ao invés do controle internacional. É claro que o internacionalismo proletário não pode impedir, e nem há razão para isso, os movimentos de autodeterminação nacional em um contexto imperialista e colonial. Estes movimentos são parte da sociedade capitalista, assim como o imperialismo. Contudo, “utilizar” tais movimentos em prol do socialismo pode apenas significar uma tentativa de destituí-los de seu caráter nacionalista, através de um consistente internacionalismo por parte do movimento socialista. Embora as pessoas oprimidas tenham a simpatia dos socialistas, isso não está relacionado ao emergente nacionalismo delas, mas à sua situação particular de pessoas duplamente oprimidas, que sofrem tanto com a exploração nativa quanto com a estrangeira. A tarefa socialista é acabar com o capitalismo, e isso inclui apoiar as forças anti-imperialistas; no entanto, não se trata de criar novos Estados-nação capitalistas, mas de dificultar ou impossibilitar seu surgimento por meio de revoluções proletárias nos países capitalistas avançados.

O regime bolchevique declarou-se socialista, e, sob essa bandeira, deveria acabar com toda discriminação contra minorias nacionais. Em tais condições, aos olhos de Rosa Luxemburgo, a autodeterminação nacional era não apenas sem sentido, mas um convite ao reavivamento das condições de restauração do capitalismo por meio da ideologia nacionalista. Em sua visão, Lênin e Trotsky equivocadamente sacrificaram o princípio do internacionalismo em prol de uma vantagem tática momentânea. Embora talvez fosse inevitável, isso não deve ser convertido em uma virtude socialista. Rosa Luxemburgo estava certa, sem dúvida, em não questionar a sinceridade subjetiva dos bolcheviques quanto ao estabelecimento do socialismo na Rússia e ao avanço da revolução mundial. Ela mesma achava possível, com a expansão da revolução a oeste, enfrentar a falta de amadurecimento das condições objetivas da Rússia para uma transformação socialista. Ela culpou os socialistas da Europa ocidental, em particular os alemães, pelas dificuldades que os bolcheviques encontraram, e que os forçaram a concessões, compromissos e ações oportunistas. Ela também assumiu que a internacionalização da revolução acabaria com as demandas nacionalistas de Lênin e ressuscitaria o princípio do internacionalismo no movimento revolucionário.

Como a revolução mundial não se materializou, o Estado-nação continuou a ser o campo de ação para o desenvolvimento econômico e a luta de classes. O “internacionalismo” da Terceira Internacional, então sob domínio russo, serviu estritamente aos interesses da Rússia, acobertados pela ideia de que a defesa do primeiro Estado socialista era uma pré-condição para o socialismo internacional. Assim como a autodeterminação, esse tipo de “internacionalismo” foi concebido para enfraquecer os adversários do Estado russo. Após 1920, no entanto, os bolcheviques não mais esperavam um retorno do processo revolucionário mundial, e se concentraram na consolidação de seu próprio regime. Seu “internacionalismo” expressava agora seu próprio nacionalismo, assim como o internacionalismo econômico da burguesia não tem outra finalidade que não o enriquecimento de entidades de capital nacionalmente organizadas.

O resultado da Segunda Guerra Mundial, e seus desdobramentos, acabaram com o colonialismo das potências europeias e levaram à formação de várias nações “independentes”; contudo, e ao mesmo tempo, surgiram dois grandes blocos de poder, dominados pelas nações vitoriosas: Rússia e Estados Unidos. Dentro de cada bloco não havia uma verdadeira independência nacional, mas sim a subordinação dos países considerados autodeterminados às exigências imperialistas das principais potências. Essa subordinação foi forçada tanto por meios econômicos e políticos quanto pela necessidade geral de adaptar as economias e, com isso, a vida política das nações satélites às realidades do mercado mundial capitalista.

Para as ex-colônias, isso significou uma nova forma de subjugação e dependência, que encontrou sua expressão no termo neocolonialismo; para as nações renascidas e capitalisticamente mais avançadas, isso significou o controle direto de sua estrutura política, através dos métodos já comprovados de ocupação militar e governos fantoches. Essa situação conduziu, é claro, a novos “movimentos de libertação”, não apenas no campo capitalista, mas também no assim chamado campo socialista, provando que não existe algo como autodeterminação nacional, seja nas economias controladas pelo mercado, seja naquelas controladas pelo Estado.

Que o nacionalismo seja de fato um meio de defesa da classe dirigente logo se tornaria evidente em todas as nações libertadas, uma vez que fornecia aos oportunistas políticos um instrumento para seu próprio despontar como classe dirigente, em colaboração com as classes dirigentes dos países dominantes. Quer estas novas classes dirigentes se alinhem ao “mundo livre” ou à parte autoritária do mundo, em ambos os casos a forma nacional na qual seu domínio está baseado inviabiliza qualquer avanço na direção de uma sociedade socialista. Sempre que possível, seu nacionalismo implica um fervoroso, ainda que diminuto, imperialismo, que coloca as “nações socialistas” contra outras nações, inclusive contra outras “nações socialistas”. E assim temos o lamentável espetáculo da ameaçadora guerra entre os grandes “países socialistas”, Rússia e China[14], e, em menor escala, a guerra aberta entre a Etiópia e a Somália “marxistas” pelo controle da Ogadénia[15].

Com algumas variações, esta história pode ser prolongada quase que infinitamente, caracterizando o presente estado da política mundial, no qual pequenas nações atuam como procuradoras das grandes potências imperialistas ou lutam por conta própria, apenas para se tornarem vítimas de um ou outro bloco de poder. Tudo isso corrobora a afirmação de Rosa Luxemburgo, de que todas as formas de nacionalismo são prejudiciais ao socialismo, e que apenas um internacionalismo consistente pode auxiliar a emancipação da classe trabalhadora. Esse inabalável internacionalismo é uma de suas maiores contribuições para a teoria e prática revolucionárias, e a coloca bem longe do social-imperialismo da social-democracia, assim como da oportunista concepção bolchevique de revolução mundial, tal como preconizada por seu grande “estadista”, Lênin.

Assim como ele, Rosa Luxemburgo viu a Revolução de Outubro como uma revolução proletária, que, no entanto, dependia inteiramente de acontecimentos internacionais. Naquela época, essa era a visão compartilhada por todos os revolucionários, fossem eles marxistas ou não. Afinal, como ela disse, ao tomar o poder os bolcheviques tinham “proclamado, pela primeira vez, os objetivos finais do socialismo como programa imediato de políticas práticas”[16]. Eles haviam resolvido a “célebre questão de ‘conquistar a maioria do povo’, por meio de táticas revolucionárias que levassem à essa maioria, ao invés de esperar pela última para desenvolver táticas revolucionárias”[17].[18] Na visão de Rosa Luxemburgo, o partido de Lênin havia compreendido os verdadeiros interesses das massas urbanas ao exigir todo poder aos sovietes para garantir a revolução. Contudo, a questão agrária era o eixo central da revolução, e, nesse sentido, os bolcheviques se mostraram oportunistas em suas políticas a respeito das minorias nacionais.

Na Rússia pré-revolucionária, os bolcheviques compartilhavam com Rosa Luxemburgo a posição marxista de que a nacionalização da terra era um pré-requisito para a organização da produção agrícola em larga escala, em conformidade com a socialização da indústria. Para ganhar o apoio dos camponeses, Lênin abandonou o programa agrícola marxista em prol do programa dos socialistas-revolucionários — os herdeiros do velho movimento populista. Embora Rosa Luxemburgo reconheça essa reviravolta como uma “excelente tática”, para ela isso não tinha nada a ver com a busca pelo socialismo. Os direitos de propriedade devem ser entregues à nação, ou ao Estado, pois somente assim é possível organizar a produção agrícola sobre uma base socialista. O slogan bolchevique — “confisco imediato das terras, e sua distribuição pelos camponeses”[19] — não representava uma medida socialista, mas uma que, ao criar uma nova forma de propriedade privada, impedia o caminho para tais medidas. “A reforma agrária leninista”, escreveu ela, “criou uma nova e poderosa camada popular de inimigos do socialismo no campo, inimigos cuja resistência será muito mais perigosa e obstinada que a da grande aristocracia fundiária”[20].

Isso se provou verdadeiro, dificultando tanto a restauração da economia russa quanto a socialização da indústria. Contudo, assim como no caso da autodeterminação nacional, também aqui a situação foi determinada não pela política bolchevique, mas por circunstâncias além de seu controle. Os bolcheviques estavam prisioneiros do movimento camponês; eles não poderiam manter o poder, exceto com seu apoio passivo, nem poderiam avançar em direção ao socialismo por causa dos camponeses. Além disso, [em] seu astuto oportunismo, não iniciaram o confisco de terras pelos camponeses, apenas ratificaram um fato consumado, independente de sua própria atitude. Enquanto outros partidos hesitaram em legalizar a expropriação de terras, os bolcheviques a favoreceram para ganhar o apoio dos camponeses e, assim, consolidar o poder que haviam conquistado com um coup d’etat [golpe de Estado] nos centros urbanos. Eles esperavam manter este apoio por meio de uma política de baixa tributação, enquanto os camponeses exigiam um governo que impedisse o retorno dos senhores de terras por meio de uma contrarrevolução.

Na perspectiva dos camponeses, a revolução envolveu a ampliação dos direitos de propriedade, e, nesse sentido, foi uma revolução burguesa. Ela só podia conduzir a uma economia de mercado e ao aumento da capitalização da Rússia. Para os trabalhadores industriais, assim como para Lênin e Luxemburgo, foi uma revolução proletária, mesmo em um estágio inicial do desenvolvimento capitalista. Mas como a classe trabalhadora industrial abrangia apenas uma parte minúscula da população, parecia claro que, mais cedo ou mais tarde, o elemento burguês no interior da revolução levaria a melhor. O poder estatal bolchevique só poderia ser mantido pela arbitragem entre estes interesses conflituosos, mas o sucesso desse esforço negaria tanto as aspirações socialistas quanto as burguesas dentro da revolução.

Esta situação não foi prevista pelo movimento marxista e não era predizível nos termos da teoria marxiana, que sustentava que a revolução proletária exigiria um alto desenvolvimento capitalista, no qual a classe trabalhadora se torna maioria e, portanto, capaz de determinar o curso dos eventos. Embora Lênin não estivesse interessado em uma revolução burguesa, exceto como preliminar para uma revolução socialista, ele foi burguês na medida em que estava convencido ser possível mudar a sociedade por meios puramente políticos, isto é, pela vontade de um partido político. Esta reversão idealista do marxismo, com a consciência determinando o desenvolvimento material, ao invés de ser produzida por ele, significou, na prática, não mais que uma cópia do próprio regime czarista, no qual a autocracia governava toda a sociedade. De fato, Lênin insistiu que se o czar pôde governar a Rússia com a ajuda de uma burocracia de poucas centenas de milhares de homens, os bolcheviques seriam capazes de fazer o mesmo e melhor com um partido que excedesse esse número. De qualquer forma, uma vez no poder, os bolcheviques não tinham escolha a não ser tentar mantê-lo, a fim de garantir ao menos sua existência. Com o passar do tempo, emergiu um aparato estatal que assumiu para si o controle autoritário não apenas da população, mas também do desenvolvimento econômico, transformando a propriedade privada em propriedade estatal sem que houvesse mudanças nas relações sociais de produção — ou seja, mantendo a relação capital-trabalho que permite a exploração da classe trabalhadora. Esse novo tipo de capitalismo — propriamente chamado capitalismo de Estado — persiste nos dias atuais sob a roupagem ideológica do “socialismo”. 

Em 1918, Rosa Luxemburgo não poderia imaginar esse desenvolvimento, uma vez que ele estava fora de todos os pressupostos marxistas. Para ela, os bolcheviques estavam cometendo vários erros que poderiam comprometer seu objetivo socialista. E se esses erros eram inevitáveis no cenário de isolamento da Revolução Russa, eles não deveriam ser generalizados como uma tática revolucionária para os tempos futuros e para todas as nações seguirem. Ainda que impotente, ela opôs a realidade russa com princípios marxianos, de modo a salvar pelo menos a teoria de Marx. Mas foi tudo em vão, pois verificou-se que o capitalismo privado não é necessariamente seguido por um regime socialista, podendo se transformar em um capitalismo controlado pelo Estado, no qual a velha burguesia é substituída por uma nova classe dominante, cujo poder se baseia em seu controle coletivo do Estado e dos meios de produção. Ela sabia tão pouco quanto Lênin sobre como construir uma sociedade socialista, mas, enquanto ele procedeu de forma pragmática, a partir das experiências de controle estatal das nações capitalistas em tempos de guerra, e pensou o socialismo como o monopólio do Estado sobre todas as atividades econômicas, Rosa Luxemburgo insistiu em proclamar que um tal estado de coisas não poderia emancipar a classe trabalhadora. Ela não conseguia imaginar que a sociedade bolchevique em ascensão representava uma formação social historicamente nova, vendo nela apenas uma falsa aplicação dos princípios socialistas. Assim, ela receava uma possível restauração do capitalismo através das reformas agrárias do bolchevismo.

Como se viu, a questão agrária agitou o Estado bolchevique de forma incessante e, por fim, levou à compulsória coletivização do campesinato como solução intermediária entre as relações de propriedade privada da terra e a nacionalização da agricultura. Isso não era uma verdadeira rejeição às políticas camponesas de Lênin, que haviam se baseado na necessidade, não na convicção. Exceto no papel, Lênin simplesmente não ousou nacionalizar a terra, e Stalin não ousou mais do que a coletivização forçada dos camponeses, a fim de aumentar sua produção e exploração sem privá-los de toda a iniciativa privada. Mesmo assim, foi uma empreitada assustadora que quase destruiu o regime bolchevique. Se Rosa Luxemburgo estava certa em relação a Lênin, no que diz respeito à questão camponesa, seus argumentos, no entanto, não tinham relevância, pois era apenas questão de tempo e força do aparato estatal até que os camponeses perdessem sua relativa e recém-conquistada independência, caindo novamente sob o controle de um regime autoritário.  

Deveria ter ficado evidente, a partir da concepção de Lênin sobre o partido e o papel deste no processo revolucionário, que, uma vez no poder, o mesmo só poderia funcionar de modo ditatorial. Independentemente das condições específicas da Rússia, a ideia do partido como consciência da revolução socialista claramente transferia todo o poder de decisão para as mãos do aparato estatal bolchevique. Esse pressuposto geral encontrou uma ênfase ainda maior na Revolução Russa, dividida como estava entre suas aspirações burguesas e proletárias. Se o proletariado não era, de acordo com Lênin, capaz de desenvolver mais do que uma consciência sindical (isto é, de lutar por seus interesses dentro do sistema capitalista), certamente seria ainda mais incapaz de realizar o socialismo, que pressupõe uma ruptura ideológica com toda a sua experiência anterior. Ecoando Karl Kautsky, Lênin estava convencido de que a consciência socialista tinha de ser levada ao proletariado a partir de fora, através do conhecimento da classe média educada. O partido era a organização da intelligentsia socialista, representando a consciência revolucionária para o proletariado, embora também pudesse incluir em seus quadros alguns trabalhadores inteligentes. Era necessário que esses especialistas em política revolucionária se tornassem senhores do Estado socialista, nem que fosse apenas para impedir a classe trabalhadora de ser derrotada por sua própria ignorância. E assim, do mesmo modo que o partido deveria conduzir o proletariado, também a liderança do partido deveria conduzir seus membros por um caminho de centralização semi-militarista.

Foi essa atitude arrogante de Lênin, imposta ao seu partido, que deixou Rosa Luxemburgo bem cautelosa quanto às possíveis consequências da tomada de poder pelos bolcheviques. Já em 1904 ela havia atacado a concepção de partido bolchevique, tanto por sua separação artificial de uma vanguarda revolucionária da massa de trabalhadores quanto por sua ultracentralização em geral, além de questões partidárias em particular. “Nada contribuirá mais para subjugar um movimento operário a uma elite intelectual faminta por poder”, escreveu ela, “do que essa camisa de força burocrática, que vai imobilizar o partido e transformá-lo em um Comitê Central autômato e manipulado”[21]. Ao negar o caráter revolucionário da concepção de partido de Lênin, Rosa Luxemburgo prefigurou o curso real do governo bolchevique até os dias atuais. Para ser exato, sua condenação às ideias organizacionais de Lênin estava baseada no confronto destas com a estrutura organizacional do Partido Social-Democrata, que, embora altamente centralizado, almejava uma ampla base de massa para seu trabalho evolutivo. Esse partido não pensava em termo de tomada de poder, contentando-se com seus sucessos eleitorais e a propagação da ideologia socialista com uma base para seu crescimento. Em todo caso, Rosa Luxemburgo não acreditava que qualquer tipo de partido pudesse desencadear uma revolução socialista. O partido poderia apenas servir de auxílio à revolução, a qual continuava sendo prerrogativa da classe trabalhadora e exigindo seu envolvimento integral. Ela não viu o partido socialista como um organizador independente do proletariado, mas como uma parte dele, sem quaisquer funções ou interesses diferentes daqueles da classe trabalhadora.

Com essa convicção, Rosa Luxemburgo foi apenas fiel a si mesma e ao marxismo quando ergueu sua voz contra as políticas ditatoriais do partido bolchevique. Embora este partido tenha alcançado sua posição dominante reivindicando de forma demagógica o governo único dos sovietes, ele não tinha a intenção de delegar qualquer poder aos sovietes, exceto talvez onde eles fossem compostos por bolcheviques. É verdade que os bolcheviques formavam, em Petrogrado e em outras poucas cidades, a maioria dos sovietes, mas essa situação poderia mudar novamente, fazendo com que o partido retornasse à posição minoritária que tinha durante os primeiros meses após a Revolução de Fevereiro. Os bolcheviques não consideravam os sovietes como órgãos de uma emergente sociedade socialista, enxergando neles não mais do que um veículo para a formação de um governo bolchevique. Já em 1905, quando da primeira ascensão dos sovietes, Lênin reconheceu seu potencial revolucionário, o que, no entanto, apenas deu a ele mais uma razão para fortalecer seu próprio partido e prepará-lo para [tomar] as rédeas do governo. Para Lênin, o poder revolucionário latente da forma de organização dos sovietes não alterava sua natureza espontânea, o que implicava o risco da dissipação deste poder em atividades infrutíferas. Embora façam parte da realidade social, movimentos espontâneos, na visão de Lênin, poderiam no máximo dar suporte, mas nunca suplantar um partido orientado a objetivos. Para os bolcheviques, em outubro de 1917, a questão não era escolher entre o governo dos sovietes ou do partido, mas entre este último e a Assembleia Constituinte. Como não havia chances de conquistar a maioria na Assembleia, e assim ganhar o governo, era necessário dispensá-la, de modo a realizar a ditadura do partido no proletariado.

Apesar de Rosa Luxemburgo sustentar que, de uma forma ou de outra, toda a massa do povo deveria tomar parte na construção do socialismo, ela não reconhecia os sovietes como a tipificação da forma organizacional que tornaria isso possível. Impressionada com as grandes greves em massa que estavam ocorrendo na Rússia em 1905, ela prestou pouca atenção à forma de organização soviética dessas greves. Aos seus olhos, os sovietes eram meramente comitês de greve, na ausência de outras organizações trabalhistas mais efetivas. Mesmo depois da Revolução de 1917, ela sentia que “a realização prática do socialismo como um sistema econômico, social e jurídico é algo completamente encoberto pelas brumas do futuro.”[22] Conhecia-se apenas a direção geral a ser seguida, e não o detalhamento dos passos concretos que deveriam ser dados para se consolidar e desenvolver a nova sociedade. O socialismo não poderia derivar de planos pré-fabricados e ser realizado por decreto governamental. É necessário que haja a mais ampla participação dos trabalhadores, isto é, uma democracia real, e era precisamente esta democracia, e apenas ela, que poderia ser designada como ditadura do proletariado. Uma ditadura do partido não era, para ela, mais do que “uma ditadura no sentido burguês, no sentido da dominação jacobina”[23]

Tudo isso certamente é verdadeiro a nível geral, mas o caráter burguês do governo bolchevique refletia — tanto de forma ideológica quanto na prática — a natureza objetivamente não socialista desta revolução em particular, que simplesmente não poderia avançar para uma sociedade socialista a partir das condições quase feudais do czarismo. Foi um tipo de “revolução burguesa” sem a burguesia, assim como foi uma revolução proletária sem um proletariado suficientemente amplo: uma revolução na qual as funções históricas da burguesia foram assumidas por um partido aparentemente anti-burguês por meio de sua apropriação do poder político. Sob estas condições, o conteúdo revolucionário do marxismo ocidental não era aplicável, nem mesmo de uma forma modificada. Isso pode explicar o vazio dos argumentos de Rosa Luxemburgo contra os bolcheviques, sua denúncia contra o desrespeito deles à Assembleia Constituinte e seus atos terroristas contra toda oposição, fosse ela de direita ou de esquerda. Contudo, suas próprias sugestões de como avançar na construção do socialismo, por corretas e louváveis que fossem, não caberiam em uma Assembleia Constituinte, que é, em si, uma instituição burguesa. Sua tolerância para com todos os pontos de vista, e o desejo destes de se expressarem e influenciar o curso dos acontecimentos, não pode ser realizada sob condições de guerra civil. A construção do socialismo não pode ser entregue a um descompromissado método de tentativa e erro, pelo qual o futuro venha a ser discernido nas “brumas” do presente, mas deve ser ditada pelas necessidades atuais, que exigem ações bem definidas.

A falta de realismo de Rosa Luxemburgo no que diz respeito ao bolchevismo e à Revolução Russa pode ser atribuída às suas próprias ambiguidades. Por um lado, ela era uma social-democrata, e por outro, uma revolucionária, num período em que ambas as posições haviam se desfeito. Ela olhou para a Rússia com olhos social-democratas, e para a social-democracia com olhos revolucionários; o que ela desejava era uma social-democracia revolucionária. Já em seu famoso debate com Eduard Bernstein[24], ela recusou escolher entre reforma ou revolução, esforçando-se para dialeticamente combinar ambas as atividades numa mesma política. Em sua visão, era possível travar a luta de classe tanto no parlamento quanto nas ruas, não apenas através do partido e dos sindicatos, mas também com os [trabalhadores] não organizados. O ponto de apoio jurídico obtido dentro da democracia burguesa deveria ser assegurado pela ação direta das massas em suas lutas salariais cotidianas. A ação das massas, contudo, era o mais importante, pois ela aumentava a consciência das massas sobre sua posição de classe e, portanto, sua consciência revolucionária. A luta direta dos trabalhadores contra os capitalistas era a verdadeira “escola do socialismo”. Na propagação de greves em massa, onde os trabalhadores agiam como classe, ela viu necessária precondição para a revolução que estava por vir, e que iria derrubar a burguesia e instalar governos apoiados e controlados por uma classe proletária amadurecida e consciente[25].

Até a deflagração da Primeira Guerra Mundial, Rosa Luxemburgo não compreendia completamente a verdadeira natureza da social-democracia. Havia uma ala direita, uma de centro e uma de esquerda. Liebknecht e Luxemburgo representavam esta última. Houve uma luta ideológica entre essas tendências, que foi tolerada pela burocracia do partido por se manter puramente ideológica. A prática do partido era reformista e oportunista, intocada pela retórica de esquerda, se não auxiliada indiretamente por ela. Mas havia a ilusão de que o partido poderia mudar e restaurar o caráter revolucionário de suas origens. As sugestões para dividir o partido foram rejeitadas por Rosa Luxemburgo, que temia perder contato com a maior parte dos trabalhadores socialistas. Sua confiança nestes trabalhadores não foi afetada por sua falta de confiança em seus líderes. Ela ficou, portanto, mais do que surpresa com o fato de que o social-chauvinismo mostrado em 1914 tenha unido lideranças e se voltado contra a ala esquerda do partido. Mesmo assim, ela não estava pronta para deixar o partido até sua divisão, em 1917, sobre a questão dos objetivos de guerra, que levou à formação do Partido Socialista Independente (USPD), no qual a Liga Espartaquista, então composta por um círculo de pessoas em torno de Liebknecht, Luxemburgo, Mehring e Jogiches, formou uma pequena facção. No que tange ao envolvimento dessa facção em atividades independentes, tratava-se de propaganda contra a guerra e contra as políticas colaboracionistas de classe do antigo partido. Somente perto do final de 1918, Rosa Luxemburgo reconheceu a necessidade de um novo partido revolucionário e uma nova Internacional.

A Revolução Alemã de 1918 não foi produto de alguma organização de esquerda, embora membros de todas as organizações tenham desempenhado nela diferentes papéis. Foi um levante estritamente político para acabar com a guerra e remover a monarquia, responsabilizada por ela. Ele ocorreu como uma consequência da derrota militar alemã, e não foi seriamente contestado pela burguesia e pelo exército, pois lhes permitiu colocar o ônus da derrota sobre o movimento socialista. Essa revolução levou a social-democracia ao governo, que então se aliou aos militares para esmagar qualquer tentativa de transformar uma revolução política em uma revolução social. Ainda sob a influência da tradição e da velha ideologia reformista, a maioria dos conselhos operários e de soldados, surgidos de forma espontânea, apoiou o governo social-democrata e declarou sua prontidão para abdicar em favor da Assembleia Nacional, dentro do quadro da democracia burguesa. Essa revolução, como apropriadamente disseram, “foi uma revolução social-democrata, suprimida pelos líderes social-democratas: um processo que dificilmente pode ser comparado na história mundial.”[26] Havia também uma minoria revolucionária, sem dúvida, defendendo e lutando pela formação de um sistema social de conselhos operários como uma instituição permanente; mas isto logo foi sistematicamente submetido pelas forças militares perfiladas contra ela. A fim de organizar essa minoria revolucionária para ações contínuas, a Liga Espartaquista, em colaboração com outros grupos revolucionários, transformou-se no Partido Comunista da Alemanha. Seu programa foi escrito por Rosa Luxemburgo.

Já em seu congresso de fundação, ficou claro que o novo partido estava dividido internamente. Mesmo a essa altura, Rosa Luxemburgo não foi capaz de romper totalmente com as tradições social-democratas. Embora tenha declarado que o momento para um programa mínimo reduzido de socialismo tivesse passado, ela ainda aderiu à política da dupla perspectiva, isto é, à visão de que a incerteza de uma revolução proletária precoce exigiu a consideração de políticas definidas no âmbito das instituições e organizações sociais existentes. Na prática, isso significava a participação na Assembleia Nacional e nos sindicatos. Entretanto, a maioria do congresso votou a favor do antiparlamentarismo e pela luta contra os sindicatos. Embora relutante, Rosa Luxemburgo se dobrou a essa decisão, escrevendo e agindo neste espírito. Como foi assassinada apenas duas semanas depois, não é possível dizer se ela teria ou não mantido essa posição. Em todo caso, encorajada por Lênin através de seu emissário, Radek, os discípulos de Rosa logo dividiram o novo partido e fundiram sua seção parlamentar com uma parte dos Socialistas Independentes, a fim de formar um “partido verdadeiramente bolchevique”; mas, desta vez, como uma organização de massa no sentido social-democrata, competindo com os velho Partido Social-Democrata pela lealdade dos trabalhadores, a fim de forjar um instrumento para defender a Rússia bolchevique.

Mas tudo isso é história. As revoluções fracassadas na Europa Central e o desenvolvimento capitalista estatal na Rússia superaram a crise política do capitalismo que se seguiu à Primeira Guerra Mundial. Suas dificuldades econômicas, contudo, não foram bem resolvidas, e levaram a uma nova crise mundial e à Segunda Guerra Mundial. Como as classes dominantes — velhas e novas — lembravam-se das repercussões revolucionárias na esteira da Primeira Guerra Mundial, elas derrotaram antecipadamente a possibilidade de sua reincidência pelo método direto da ocupação militar. A imensa destruição de capital e sua maior centralização por meio da guerra, assim como o aumento da produtividade do trabalho, possibilitaram um grande crescimento da produção de capital após a Segunda Guerra. Isso implicou um eclipse quase total das aspirações revolucionárias, exceto aquelas de natureza estritamente nacionalista e capitalista estatal.

Esse efeito foi fortalecido pelo desenvolvimento da “economia mista”, tanto nacional quanto internacionalmente, com a qual os governos influenciaram as atividades econômicas. Assim como todas as coisas do passado, o marxismo se tornou uma disciplina acadêmica — uma indicação de seu declínio enquanto teoria de transformação social. A social-democracia deixou de enxergar a si própria como uma organização da classe trabalhadora, mas sim como um partido do povo, pronto para cumprir funções governamentais para a sociedade capitalista. As organizações comunistas assumiram o papel clássico da social-democracia — e também sua prontidão para formar ou tomar parte em governos que sustentam o sistema capitalista. O movimento operário — dividido em bolchevismo e social-democracia, que era a preocupação de Rosa Luxemburgo — deixou de existir.    

Ainda assim, o capitalismo permanece suscetível às crises e ao colapso. Tendo em vista os atuais métodos de destruição, ele pode destruir a si próprio em outra conflagração. Mas também pode ser superado através da luta de classes, levando à sua transformação socialista. A alternativa apresentada por Rosa Luxemburgo — socialismo ou barbárie — conserva sua validade. O estado atual do movimento operário, desprovido de quaisquer inclinações revolucionárias, deixa claro que um futuro socialista depende mais de ações espontâneas da classe trabalhadora como um todo do que de antecipações ideológicas sobre tal futuro, que podem se manifestar em organizações revolucionárias recém-surgidas. Nessa situação, não há muito o que aprender com as experiências anteriores, exceto a lição negativa de que nem a social-democracia nem o bolchevismo tinham qualquer influência sobre os problemas da revolução proletária. Ao opor-se a ambos, contudo, e de forma inconsistente, Rosa Luxemburgo abriu uma outra rota para a revolução socialista. Apesar de algumas noções equivocadas a respeito da teoria e algumas ilusões quanto à prática socialista, seu impulso revolucionário rendeu os elementos essenciais exigidos para uma revolução socialista: um inabalável internacionalismo e o princípio da autodeterminação da classe trabalhadora dentro de suas organizações e na sociedade. Levando a sério a máxima de que a emancipação do proletariado só pode ser obra dele próprio[27], ela ligou o passado revolucionário ao futuro revolucionário. Assim, suas ideias permanecem tão vivas quanto a própria ideia da revolução, ao passo que todos os seus adversários no velho movimento operário tornaram-se parte integrante da decadente sociedade capitalista.


[1] O presente artigo foi escrito em 1978. À data desta tradução, agosto de 2024, contam-se 105 anos da morte de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, assassinados em 15 de janeiro de 1919. [N.T.]

[2] Para informações biográficas, ver John P. Nettl, “Rosa Luxemburg”, 2 vols. (London: Oxford University Press, 1966).

[3] Eduard Bernstein, “Die Voraussetzungen des Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie”, traduzido como “Evolutionary Socialism” (1899; NY: Schocken, 1961) [Socialismo Evolucionário (São Paulo: Zahar, 1997)]

[4] Mikhail I. Tugan-Baranowsky, “Die Theoretischen Grundlagen des Marxismus” [Os Fundamentos Teóricos do Marxismo] (Leipzig: Duncker and Humblot, 1905).

[5] Karl Marx, Capital, vol. 2, “The Process of Circulation of Capital(1885; Chicago: Charles Kerr, 1926), p. 532.

[6] “Vemos aqui, para além de nosso verdadeiro objetivo, como é absolutamente necessária a consideração do processo de reprodução em sua forma fundamental — livre de todas as circunstâncias menores que o obscurecem — a fim de nos desembaraçarmos desses falsos subterfúgios que proporcionam a aparência de uma explicação ‘científica’ quando o processo da reprodução social, em sua complicada forma concreta, é imediatamente transformado em objeto da análise”, cf. MARX, Karl. O Capital – Livro 2. São Paulo: Boitempo, 2015. E-book p. 551 [N.T.]

[7] ibid., p. 578.

[8] “O fato de a produção de mercadorias ser a forma geral da produção capitalista implica já o papel que o dinheiro desempenha nesta última, não só como meio de circulação, mas como capital monetário, e gera certas condições do intercâmbio normal — ou seja, do transcurso normal da reprodução — que são peculiares a esse modo de produção, seja em escala simples ou ampliada, condições estas que se convertem em outras tantas condições do transcurso anormal, em possibilidades de crises, já que o próprio equilíbrio, dada a configuração natural-espontânea dessa produção, é algo acidental”, cf. Ibid.  [N.T.]

[9] “Também conhecida como Lei dos Mercados (…) estabelece que a oferta cria sua própria demanda, impossibilitando uma crise geral de superprodução. De acordo com esse conceito de equilíbrio econômico, a soma dos valores de todas as mercadorias produzidas seria sempre equivalente à soma dos valores de todas as mercadorias compradas. Ou, em outras palavras, ao ser criado, um produto está ao mesmo tempo abrindo um mercado para outro produto do mesmo valor. Em consequência, a economia capitalista seria perfeitamente auto-regulável, não exigindo a intervenção estatal. A Lei de Say constituiu a pedra angular da teoria econômica neoclássica”, cf. Lei de Say in SANDRONI, Paulo (Org.). Novíssimo Dicionário de Economia. São Paulo; Editora Best Seller, 1999. p. 338 [N.T.]

[10] A título de revisão crítica das teorias marxistas da crise, um artigo de pesquisa na Revista Estudos Econômicos da Universidade de São Paulo/USP destaca que “não é possível encontrar uma teoria da crise abrangente na obra de Marx, mas somente observações dispersas, mais ou menos elaboradas, a partir das quais os autores marxistas desenvolveram teorias bem distintas” (Heinrich), e que “existem três variantes principais de interpretação monocausal da teoria da crise de Marx” (Mandel), a saber, “1) A teoria da desproporcionalidade, [que] explica a crise através da desproporção, em termos de valor de uso e/ou de valor, entre os vários ramos de negócio que compõem a economia capitalista. Em suma, a crise é atribuída à ‘anarquia do mercado’ (Clarke). Dois dos principais proponentes desta teoria são Rudolf Hilferding e Nikolai Bukharin; 2) A teoria do subconsumo, predominante desde o final dos anos 30 até o início dos anos 70(Clarke),[que] explica a crise através do ‘defasamento entre o output (ou capacidade produtiva) e o consumo da massa da população (os salários reais ou o poder de compra dos trabalhadores)’ (Mandel), pelo que a causa derradeira da crise é a ‘sobreprodução de mercadorias’ (Mandel). Os principais defensores desta teoria são Rosa Luxemburgo – que coloca uma grande ênfase nas dificuldades de realização da mais-valia, no contexto dos esquemas de reprodução do Livro Segundo [d’ O Capital] – e os autores estadunidenses associados à revista Monthly Review (cf. Baran e Sweezy); e 3) A teoria da sobreacumulação, predominante desde o início da década de 1970 (Clarke, justifica a crise com a queda da taxa de lucro, provocada pelo aumento da composição orgânica do capital, i.e., pela adoção de ‘tecnologia de produção cada vez mais capital-intensiva’ (Clarke). A taxa de lucro é diretamente proporcional à taxa de exploração e inversamente proporcional à composição orgânica do capital (Clarke). A teoria da sobreacumulação defende que a evolução ‘histórica da produção capitalista’ vai no sentido de uma ‘tendência constante para o aumento da composição do capital em termos de valor’ (Clarke). Com uma dada taxa de exploração, isto implica a queda da taxa de lucro (Clarke). Neste contexto, o capital variável reduzido, em termos relativos, seria supostamente incapaz de providenciar a mais-valia exigida para valorizar o capital de grandeza acrescida. Os principais defensores desta teoria são Henryk Grossman e Paul Mattick” (cf. MACHADO, Nuno Miguel Cardoso. A “Primeira Versão” da Teoria da Crise de Marx: a queda da massa de mais-valia social e o limite interno absoluto do capital. Estudos Econômicos, São Paulo, vol. 49 n.1, p.163-203, jan.-mar. 2019. DOI: https://doi.org/10.1590/0101-41614916ncm) [N.T.]

[11] Michael Kalecki, ‘The Problem of Effective Demand with Tugan-Baranowsky and Rosa Luxemburg.

[12] Joan Robinson, Introduction to Rosa Luxemburg, “The Accumulation of Capital” (1913; London: Routledge and Kegan Paul, 1951).

[13] No original: “as Rosa Luxemburgo failed to see that it was the principle of self-determination which dictated Bolshevik policy with regard to the Russian nationalities, than the force of circumstances over which the Bolsheviks had no control“. Ou seja, Mattick afirma que Rosa falhou em ver que o princípio de autodeterminação ditou as políticas bolcheviques mais do que as forças das circunstâncias, sobre as quais não haveria controle. Duas páginas depois, estranhamente lemos a seguinte passagem no original: “as in the case of national self-determination, here too the situation was determined not by the Bolsheviks policy but by circumstances beyond their control“. Isto é, assim como no caso da autodeterminação nacional, a situação foi determinada não pela política bolchevique, mas por circunstâncias além de seu controle. Comparando as duas passagens, observa-se que Mattick inverte o que de fato teria sido determinante em ambos os casos, o que pode ter sido um lapso do autor. Em nossa análise, é provável que, em ambos os casos, Mattick quis dizer que a “força das circunstâncias” foi a principal determinação. [N.T.]

[14] O autor se refere à guerra sino-soviética de 1969, ápice das tensões acumuladas no processo de ruptura entre a China e a URSS, durante a década de 1950 e 1960. Um processo que envolveu fatores culturais, ideológicos e geopolíticos, entre os quais a disputa pela defesa de suas  interpretações do “marxismo-leninismo” e para se apresentar como modelo comunista, com a liderança chinesa reivindicando-se revolucionária e ortodoxa, e criticando a URSS como reformista/revisionista, sobretudo pela política de coexistência pacífica implementada após o período stalinista, que trouxe a possibilidade de reaproximação entre URSS e EUA. A questão geopolítica das fronteiras entre os dois países remonta a tratados seculares e foi o fator que levou à emboscada realizada por tropas chinesas na fronteira da ilha de Zhenbao/Damansky em 2 de março de 1969, matando um grupo de soldados russos e dando início a um confronto que mobilizou grande poder militar de ambos os lados. A URSS interpretou as ações da China como um acirramento do já crescente antagonismo entre as duas nações, e, após os enfrentamentos de março de 1969, “a URSS adotou uma estratégia de diplomacia coercitiva em relação à China e, assim, sugeriu que poderia usar armas nucleares nos conflitos, especialmente para atingir instalações nucleares chinesas que estavam em construção” (cf. DOS SANTOS, Isabella Santana. Guerra Sino-Soviética de 1969. Revista de graduação de estudos sinológicos. São Paulo: Portal de Revistas da USP, v.1, n.1, 2020). Ao final da década de 1970, as tensões sino-soviéticas diminuíram gradualmente, sendo marcos importantes a troca de liderança, com a morte de Mao Zedong, em 1976, e a retomada das negociações diplomáticas entre os dois países em 1979. [N.T.]

[15] Nos anos de 1970 ocorreram várias revoluções decorrentes de longas guerras anticoloniais no então chamado Terceiro Mundo. Entre elas, contudo, também se desenvolveram “golpes militares de novo tipo, que introduziram regimes revolucionários autodenominados marxistas-leninistas”, sendo o caso da Somália, em 1969, e da Etiópia, em 1974, o mais emblemático. As Revoluções Africanas “resultantes da implantação de Regimes Militares Marxistas” foram, contudo, “implantadas via golpe de Estado por militares sem iniciação no marxismo”. Em 1974, “castigada pela miséria, fome, arcaísmo sociopolítico feudal e pelas guerrilhas muçulmanas e esquerdistas na Eritreia”, a Etiópia, sob grandes protestos populares urbanos e revoltas rurais, viu seu regime pró-EUA ser derrubado e substituído por uma junta militar de populismo impreciso. Ameaçado pelo caos e pela luta de facções no grupo dirigente, o regime “ligava-se cada vez mais ao programa das correntes da esquerda civil, que o apoiavam criticamente, e implementava uma ampla reforma agrária, mobilizava a população nos Comitês de Defesa da Revolução, rompia com os EUA e enfrentava os movimentos de oposição”. Em 1977, enquanto a nova direção da junta militar definia-se pelo socialismo, “as rebeliões da extrema-esquerda, dos separatistas ou autonomistas e dos contrarrevolucionários conservadores agitavam quase todas das províncias, e a Somália atacou a Etiópia em apoio à guerrilha local em Ogaden […], encorajada pela Arábia Saudita, Egito e Estados Unidos”. A URSS e Cuba acolheram o pedido de auxílio da junta militar, e Fidel Castro visitou os países em litígio para mediar uma solução propondo a formação de uma confederação. Contudo, os somalis expulsaram os assessores soviéticos do país, e Moscou passou a enviar armas, assessores soviéticos, alemães orientais e soldados cubanos. A guerra “encerrou-se com a vitória da Etiópia, que consolidou seus laços com o campo socialista, enquanto a Somália aliava-se aos Estados Unidos e às petromonarquias árabes”. (cf. VISENTINI, Paulo Gilberto Fagundes. Regimes Militares Marxistas Africanos, Ascensão e Queda. Revista Brasileira de Estudos Africanos, Porto Alegre: UFRGS, v. 5, n.9, Jan./Jun. 2020, p. 33-53). [N.T.]

[16] Luxemburg, “The Russian Revolution” (1922), in “The Russian Revolution and Leninism or Marxism?” (Ann Arbor: University of Michigan Press, 1961), p. 39.

[17] Ibid.

[18] O autor aparentemente cita de forma livre “famous problem of winning a majority of the people, by revolutionary tactics that led to a majority, instead of waiting for the latter to evolve a revolutionary tactic”, suprimindo uma parte do texto sem indicar adequadamente o salto e a ocorrência de aspas. Verificando a edição utilizada pelo autor, e destacando em negrito os trechos utilizados na citação, lemos “famous problem of ‘winning a majority of the people,’ which problem has ever weighed on the German Social-Democracy like a nightmare. As bred-in-the-bone disciples of parliamentary cretinism, these German Social-Democrats have sought to apply to revolutions the home made wisdom of the parliamentary nursery: in order to carry anything, you must first have a majority. The same, they say, applies to revolution: first let’s become a ‘majority.’ The true dialectic of revolutions, however, stands this wisdom of parliamentary moles on its head: not through a majority to revolutionary tactics, but through revolutionary tactics to a majority – that is the way the road runs.” A título de verificação, na tradução de Isabel Loureiro para este trecho, direto do alemão para o português, lemos “a célebre questão da ‘maioria do povo’, pesadelo que sempre oprimiu os social-democratas alemães. Pupilos incorrigíveis do cretinismo parlamentar, eles transpõem simplesmente para a revolução a sabedoria caseira do jardim de infância parlamentar: para fazer alguma coisa, é preciso ter antes a maioria. Portanto, também na revolução, conquistemos primeiro a ‘maioria’. Mas a dialética real das revoluções inverte essa sabedoria de toupeira parlamentar: o caminho não leva à tática revolucionária pela maioria; ele leva à maioria pela tática revolucionária.” (cf. LUXEMBURGO, Rosa. A Revolução Russa. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo, 2017. Ebook, p. 47-48. Disponível gratuitamente na biblioteca da fundação, em https://frl.rosalux.org.br/multimidia/#pdf). Feita a ressalva, a presente tradução segue a citação do autor [N.T.]

[19] cf. VII Conferência do POSDR. Os três primeiros dos nove pontos registrados por Lênin na resolução sobre a questão agrária informavam que, baseando-se na situação de classe e correlação de forças então identificadas, “1. O partido do proletariado luta com todas as suas forças pelo confisco imediato e completo de todas as terras dos latifundiários da Rússia (assim como das pertencentes à Coroa, à Igreja, ao Tzar, etc., etc.); 2. O Partido defende resolutamente a passagem imediata de todas as terras para as mãos dos camponeses, organizados nos sovietes de deputados camponeses ou em outros organismos de administração local de caráter autônomo, eleitos de um modo real e plenamente democrático e independentes em absoluto dos latifundiários e dos funcionários; 3. O partido do proletariado exige a nacionalização de todas as terras existentes no país, uma nacionalização que, pondo o direito de propriedade de todas as terras em mãos o Estado, entregue o direito a dispor delas às instituições democráticas locais” (cf. LÊNIN, V. I., Resolução sobre a questão agrária. VII Conferência do POSDR, abril de 1917. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/05/13-1.htm) [N.T.] 

[20] Ibid.

[21] Luxemburg, “Organizational Questions of Russian Social Democracy” (1904), Ibid., p. 102.

[22] Luxemburg, “The Russian Revolution,” Ibid. p. 69.

[23] Ibid., p. 72

[24] Luxemburg, “Social Reform or Revolution” (1899; NY: Pathfinder, 1973).

[25] Luxemburg, “The Mass Strike, the Political Party, and the Trade Unions” (1906; NY: Harper and Row, 1971).

[26] Sebastian Haffner, “Failure of a Revolution” (NY: Library Press, 1972), p. 12.

[27] Referência à formulação de Marx nos Estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores, onde lemos que “a emancipação das classes trabalhadoras tem de ser conquistada pelas próprias classes trabalhadoras” (cf. MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012. p. 79).

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