A América Latina pode ser pensada como um “laboratório de experiências” que foram fundamentais ao longo da formação histórica do capitalismo e que por sua vez também reforçaram esse mesmo desenvolvimento: do aventureirismo, descobertas territoriais e destruição social (massacres) evoluiu para formas organizadas de produção, complexa organização de classes e Estados nacionais modernos como os Europeus e norte-americanos, moderno no sentido corrente da palavra. Sabe-se que nosso passado colonial foi marcado pela presença da escravidão (tendo o negro como grupo social principal, mas também uma diversidade de agregados sem posse, como brancos pobres, mestiços, o indígena), o domínio do latifúndio como atividade produtiva, o setor de extração mineral, as atividades comerciais. Quando séculos depois os intelectuais analisam esta história a imagem sobre esse passado pode surgir de diferentes modos possíveis, inclusive projetar no passado aquilo que somente muito tempo depois iria surgir. Este texto é uma breve história sobre como alguns intelectuais (representando cada eles uma corrente do moderno pensamento histórico, sociológico, econômico) projetaram o conceito de capitalismo na história da América Latina. É a história de um conceito e de sua elaboração desde a perspectiva de intelectuais latino-americanos.
O objetivo deste trabalho é apresentar três análises sobre o conceito de capitalismo, estas análises têm como ponto em comum terem sido elaboradas para explicar a América Latina. São três autores diferentes representando três correntes do pensamento historiográfico latino-americano que se formularam entre as décadas de 1940 e 1970. A limitação de autores foi crucial, tendo em vista a multiplicidade de análises que se criaram em todo este período. Não são somente três correntes distintas, o “Economicismo Histórico” de Sergio Bagú, o Desenvolvimentismo de Celso Furtado e a Teoria da Dependência sob a ótica de Andre Gunder Frank, estas correntes distintas representam momentos distintos da história da América Latina ao longo do período em questão. Da consolidação do modo de produção capitalista na década de 1930 às primeiras crises sociais geradas pela industrialização durante as décadas de 1960 e 1970 as perspectivas sobre o capitalismo se alteram, em grande parte movida pela multiplicidade de transformações nas sociedades latino-americanas (complexificação das relações de produção, mudanças no Estado e na burocracia, institucionalização das Ciências, hegemonia cultural Estadunidense, dentre diversas outras transformações que se avolumam neste período tratado), mas também de disputas dentro do campo científico e político para a explicação da “situação latino-americana”.
A questão do desenvolvimento do capitalismo na América Latina rendeu uma infinidade de materiais analíticos, tanto considerando a região como um todo, bem como análises particulares, de casos nacionais. Com base nestas análises é possível extrair outro elemento, talvez tão importante quanto: que conceito de capitalismo é desenvolvido por esses autores? Identificar este conceito de capitalismo é o objetivo deste trabalho. Devido à vasta quantidade de materiais produzidos, o critério para a elaboração do nosso quadro de reflexões é o da relevância e importância do autor e da reflexão, tendo em vista a quantidade de trabalhos dedicados ao tema, a originalidade da reflexão, a quantidade de referências ao autor e/ou texto. Iremos considerar aqui historiografia porque estas ideias têm em comum serem produzidas pela intelectualidade, logo, os produtores destas ideias mantém entre si algumas características em comum, dentre elas a de produzirem um saber complexo, o vínculo com instituições de pesquisa/ensino estatal ou privada, a formação especializada. Ainda mais, acreditamos haver um vínculo entre as três correntes de pensamento aqui analisadas, as ideias que se produziram na historiografia que analisa o capitalismo na América Latina revelam o vínculo comum da intelectualidade, neste caso produtora de ideias que se limitam dentro do quadro de consciência da sociedade capitalista que estava se consolidando na América Latina.
Segundo o Dicionário de Conceitos Históricos, historiografia “é a reflexão sobre a produção e a escrita da História”. Para Guy Bourdé e Hervé Martin, “é o exame dos discursos de diferentes historiadores, também de como estes pensam o método histórico” (SILVA & SILVA, 2009, p. 189). Historiografia, é a área da disciplina História, responsável pela reflexão sobre a produção do conhecimento histórico. Iremos considerar neste texto a produção historiográfica no sentido amplo, feita não somente por historiadores, mas também por intelectuais de outras áreas do conhecimento, tal como sociólogos e outros cientistas sociais especializados. Nos interessa aqui compreender como uma parte das análises historiográficas refletiram sobre uma temática específica, o capitalismo na América Latina. Nossa tarefa reside no campo da história das ideias, pois iremos apresentar como diferentes teorias explicam o conceito de capitalismo na análise da história da América Latina.
E embora nesse momento nos referimos essencialmente às ideias, temos plena consciência de que estas não estão isoladas da realidade. Nosso ponto de partida acredita que as ideias são produtos da sociedade e das determinações históricas da consciência, seja ela em suas elaborações individuais, ou mesmo em elaborações difusas.
A consolidação institucional das Ciências Sociais na América Latina ocorre a partir dos anos de 1940 com a vinda de professores europeus e a criação dos cursos universitários, tal período culmina com a primeira etapa do processo de modernização capitalista do continente: a industrialização é robustecida, a transferência de capital (via empréstimos e investimentos públicos e privados), financiamento da infra-estrutura e urbanização são processos que se intensificam. No período imediatamente anterior, dominou a economia política do liberalismo com sua expressão maior da lei das vantagens comparativas, na especialização das nações na divisão internacional do trabalho.
A “pré-teoria social” que se construiu no continente serviu para legitimar esse processo com os debates intelectuais que enfatizavam questões étnicas e raciais do continente de tal forma que, de um lado, o espelho civilizatório está na Europa, o que remete a processos de imitação, reprodução e continuidade como forma de solucionar os problemas sociais causados pela miscigenação que nos desvia do percurso. Esta mentalidade colonizada está presente em: Carlos Octavio Bunge (Ensayo de Psicologia Social), Augustin Alvarez (Manual de Patologia Politica), César Zumenta (El Continente Enfermo), Manuel Ugarte (Enfermedades Sociales) e Alcides Arguedas (El Puelo Enfermo), e, por outro lado, em intelectuais que valorizam o embranquecimento (Alberdi e Domingo Sarmiento) ou a mestiçagem e do tipo latino-americano como o mexicano José Vasconcelos e seu conceito de raça cósmica, Manuel Gonzalez Prada, Euclides da Cunha (MARINI & MILLÁN, 2001, p. 17 a 35). Ainda segundo a Introdução que Marini faz no livro sobre as origens do pensamento social latino-americano, diz ele que a III Internacional Comunista por motivações políticas baixou a resolução de considerar o continente latino-americano como a “China do ocidente distante”; onde o objetivo era apoiar as forças ditas democráticas e populares (leia-se ocupar espaço nos parlamentos) na luta contra as heranças feudais (MARINI, 2001). A aceitação deste ponto de vista impactou a produção do conhecimento no continente nestes anos, tendo em vista mais determinações políticas do conhecimento do que determinações próprias da ciência.
A partir da década de 1920 irão surgir nomes como Ramiro Guerra, Haya de la Torre, Caio Prado, Mariátegui, Sergio Bagú, Julio Cesar Jobet e nas décadas seguintes com a institucionalização efetivada das Ciências Sociais novos nomes como Gonzales Casanova, Silvio Frondizi, Leopoldo Zea, José Revueltas; desde os processos de independência, e mais fortemente desde as últimas décadas do século XIX com a modernização capitalista, os intelectuais latinos são constrangidos a pensar as condições históricas e sociais, o que resulta em uma ampliação inédita de trabalhos históricos sobre diferentes países. Esta tarefa é facilitada pela criação de universidades, cursos, editoras, grupos intelectuais e políticos, imprensa em todos os países da região. Além de iniciativas individuais como a de Caio Prado Júnior e outros, o debate interpretativo passa a ser estruturado com as ideias desenvolvimentistas formuladas pela CEPAL. Neste contexto existe uma diversidade de atores que atuam na produção de ideias: projetos acadêmicos, instituições governamentais e privadas, partidos políticos, intelectuais engajados.
Sergio Bagú: economicismo histórico e modernismo
O historiador argentino Sergio Bagú foi pioneiro nas análises sobre o desenvolvimento capitalista na América Latina, escrevendo seu principal trabalho, Economia de la Sociedade Colonial: ensaio de historia comparada de América Latina, no ano de 1949. Influente intelectual, reconhecido em âmbito continental, Bagú escreveu sua obra buscando desenvolver análises baseadas na História Econômica e Sociologia Histórica e fundamentadas no método comparativo. Em fins da década de 1940, as Ciências Sociais na América Latina em geral, e de acordo com os países particulares, passava pela fase de surgimento e de consolidação de várias instituições de ensino e de pesquisa. A obra de Bagú surge neste momento histórico, sendo que o tema, a abordagem e as conclusões interpretativas do autor irão influenciar a fase inicial de consolidação da sociologia na América Latina, em especial na Argentina.
Na reorganização do mundo pós-guerra (1939-1945), os EUA se consolidam como principal país capitalista; como parte da empresa norte-americana de reconstrução capitalista dos países destruídos pela guerra surge um conjunto de ideias que tratam das condições gerais para o desenvolvimento econômico. Tais ideias buscaram na análise da história econômica dos diferentes países a justificativa para a intervenção, e a ideia do desenvolvimentismo, surgida no pós-2ª Guerra Mundial, é uma ideologia que encontra espaço e ecoa entre os interesses na forma do Estado Integracionista (que dura entre as décadas de 1940 e os anos de 1970, o que varia em duração de acordo com o país), sendo os programas de industrialização a sua proposta mais bem elaborada e que teve sua constituição em diversas instituições estatais e supra-estatais, a exemplo das Comissões Econômicas criadas pela ONU, sendo a mais famosa a CEPAL, berço dos principais intelectuais do desenvolvimentismo e uma das maiores fontes de produção e apoio desta ideologia dominante neste período.
A obra de Sergio Bagú surge neste contexto de apologia do desenvolvimento econômico. A vida do autor indica elementos da dinâmica deste momento. Ainda durante a 2ª Guerra Mundial é convidado pelo governo dos EUA a ministrar palestras neste país, ficando ali por vários anos, absorvendo a literatura e convivendo com as transformações destes anos (ENTREVISTA, 2005). De sua experiência neste país, resulta seus dois livros clássicos sobre a sociedade colonial no continente Americano: Economia de la Sociedad Colonial e Estutura Social de la Colonia.
Nosso objetivo é destacar como Sergio Bagú compreende a ideia de capitalismo, e as investigações que este autor fez sobre a história comparada do continente Americano exemplificam sua concepção de capitalismo. O objetivo de Bagú não é o de desenvolver uma análise aprofundada do capitalismo em si, quer seja como fenômeno mundial, quer seja em suas especificidades na América Latina; como esclarece o subtítulo que acompanha o título dos dois livros, trata-se de um ensaio sobre a história comparada da América Latina, pensado esta região em termos de unidade. Entretanto, suas investigações sobre a história da América Latina conduzem a algumas afirmações sobre o caráter da organização social no continente e que apontam para o desenvolvimento de um tipo particular de capitalismo, o capitalismo colonial, daí que por meio dos resultados de sua investigação é possível retirarmos das ideias do autor uma determinada concepção sobre o conceito de capitalismo.
A tese principal de Bagú é de que houve uma fusão de elementos do capitalismo com elementos feudais, formando o capitalismo colonial, uma nova forma de produção que não é nem feudal nem capitalista, e sim capitalista colonial. Capitalismo colonial é, portanto, a ideia fundamental para se compreender a história comparada de América Latina realizada por Bagú. Segundo o autor, no período colonial a forma mais típica de acumulação capitalista se encontra na empresa colonial que utiliza da mão-de-obra para produzir mercadorias com destino ao mercado internacional (1949). Essa forma de produção se dá através dos elementos feudais e capitalistas que atuam em conjunto: a produção de mercadorias (metais ou agrícolas), estava sob direção do senhor de terras, que controlando a mão-de-obra escrava produzia para o mercado Europeu. Para Sergio Bagú, a estrutura econômica feudal é composta por entidades feudais, na figura do fazendeiro, do dono de engenho, do bispo, do rancheiro, do estanceeiro, do encomendero, todas estas autoridades absolutas em sua localidade (1949, p. 145). O senhor americano tem em comum com o senhor feudal seus hábitos, sua psicologia, o comportamento militarista, entretanto, com a diferença fundamental em que a base econômica em que repousa o “senhor americano” está voltada para a economia de mercado internacional, ao passo que o senhor feudal estava reduzido a autossuficiência (BAGÚ, Idem).
Ainda segundo Bagú, existiram elementos determinantes e condicionantes para o desenvolvimento da economia colonial como capitalismo colonial. Os elementos determinantes foram o controle da terra (com riquezas minerais e naturais) e da mão-de-obra (em grande quantidade e disciplinada), destruição da estrutura econômica anterior e o próprio colonizador; ao passo que os elementos condicionantes foram a existência do mercado mundial e colonial, a concepção econômica do colonialismo (colônias devem prover matérias-primas, absorver produção metropolitana, unidade colônia/metrópole), a política econômica imperial e o papel da Igreja como entidade econômica (1949, pgs. 59-91). É na produção escravista de mercadorias voltadas para o mercado mundial que Sergio Bagú identifica o ponto de vida do capitalismo colonial.
“El formidable resurgimiento de la esclavitud, adormecida como institucion durante la Edad Media, se debe principalmente a la aparicion de America como colosal deposito de materias primas. El brazo esclavo fue en nuestro continente puesto al trabajo para crear una corriente de mercancias que se volcase en los mercados europeos. America, enriquecida a su vez por el trabajo esclavo, crea mas tarde su propio mercado interno y se transforma em excelente consumidora de la produccion europea. Este es un processo capitalista, cuya verdad historica aceptan hoy historiadores y economistas — primeros, entre ellos, los de Gran Bretana y Estados Unidos (1949, p. 131).”
Nesta concepção, os escravos produzem sob mecanismos capitalistas, bem como a aquisição de escravos, ou seja, a caça e venda de negros escravizados, ocorre sob cânones capitalistas que buscam um proveito comercial, atuando sob o mecanismo capitalista de vender escravo a preço baixo para as plantações que vendem produtos para o mercado europeu (BAGÚ, 1949, p. 138). A escravidão colonial foi a fonte mais rápida e prática de multiplicação do capital na era colonial, fator para tornar possível a revolução industrial no século XVIII, o capital comercial é multiplicador da acumulação do capital, que por sua vez é motor da Revolução Industrial.
“Era un vasto mecanismo capitalista, cuyos metodos comerciales quedan sintetizados en este procedimiento que puso en practica al dia siguiente de ocupar La Habana: vendio el esclavo a los colonos a bajo precio y ofrecio comprar el azucar, que iba a ser producido por ese esclavo, a alto precio. Lo que le interesaba, de pronto, eran dos cosas: iniciar el trafico en gran escala sobre bases solidas y adquirir grandes cantidades del producto tropical, por el cual pagaban muy bien los mercados europeos. Aun cuando hubiera habido perdidas iniciales —lo que es dudoso— las enormes ganancias posteriores las hubieran cubierto con holgura. No puede darse un criterio comercial mas moderno. La esclavitud americana fue la fuente mas rapida y eficaz de multiplicacion de capital en la era colonial. Fue tambien uno de los principales factores que operaron indirectamente para hacer posible la gran revolucion industrial que se inicia en el siglo (BAGÚ, 1949, p. 18).”
Capitalistas são os agentes do capitalismo (capital financeiro, comerciante), e representantes do feudalismo são o senhor da terra, latifundiário escravagista (do índio ou do negro). A combinação da ação dos dois produz o capitalismo colonial. Que tal como diz Millán, não é expressão igual do capitalismo europeu, pois segundo esta autora a interpretação de Sergio Bagú tem como “la idea de fondo es la comprension de que lo capitalismo es um sistema expansivo, que no produce em todas las regiones las mismas formas de relación social, sin que por ello la estructura que produce deje de ser capitalista” (MILLÁN, 2001, p. 133), isto é, Millán afirma que para Bagú o capitalismo é um sistema expansivo que pode assumir outras relações sociais que não as engendradas classicamente na Europa, tal como a escravidão ou o latifúndio. Ainda segundo Millán, em seu método comparativo, para Bagú capitalismo não é o modelo histórico de modo de produção capitalista e sim um “sistema totalizante que mundializa su economia” (MILLÁN, 2001, p. 139). O ressurgimento de relações feudais fez parte de uma fase do desenvolvimento rumo ao capitalismo industrial, o capitalismo colonial é seu produto histórico, as colônias tinham elementos feudais, mas estes estavam submetidos ao novo ciclo capitalista, segundo Sergio Bagú.
Depreende-se que o conceito de capitalismo para Sergio Bagú diz respeito à existência de capitalismo comercial, lucro, mercado mundial, produção para o mercado. A existência destes elementos capitalistas submeteu formas de produção pré-capitalistas à lógica produtiva capitalista, tal como ocorreu no caso da escravidão e dos latifúndios. Para Sergio Bagú, a escravidão foi submetida a uma função histórica dentro do capitalismo colonial. Intepretação semelhante a que expusemos é a do estudioso da obra de Bagú, Matías Giletta, que afirma que na análise sobre a escravidão no colonialismo Bagú encontra o motor do capitalismo europeu na escravidão que se adequa a diferentes tipos de relações de produção, de acordo com seu sentido e finalidade históricas. Assim, a escravidão dentro de um processo capitalista coloca em movimento braços escravos que produzem mercadorias para o mercado europeu (GILETTA, 2011, p. 11).
Neste sentido, para Sergio Bagú o capitalismo colonial é um sistema de estratificação social que divide a sociedade em duas classes, os possuidores e os despossuídos, formados cada uma delas por vários grupos sociais que ocupam diferentes funções na divisão do trabalho e com distintas posições políticas na sociedade.
“Sobre la base de la organización económica y productiva del capitalismo colonial, en los términos de Sergio Bagú, se erige un sistema de estratificación social extremadamente simple, en el que los grupos poseedores (como los propietarios de encomiendas, minas o ingenios) y los grupos desposeídos (la fuerza de trabajo conformada por indios y negros) que participan en la producción configuran un esquema binario. Como puede observarse, el critério de diferenciación social empleado por Bagú en esta clasificación es el de propiedad/ no propiedad de medios de producción, criterio de clara inspiración marxista (GILETTA, 2011, p. 12).”
No capitalismo colonial de Sergio Bagú, os fazendeiros, donos de engenho, bispos, rancheiros, estanceeiros, encomenderos e mineiros que conformam a classe dos possuidores, estão em luta contra os despossuídos:
“La enorme multitud que constituye la base de esta pirámide colonial está integrada por los esclavos de cualquier raza o color, –los que lo son ante la ley y los que lo son de hecho–; por aquellos indios cuyo régimen de trabajo adquiere otras formas y por los asalariados. Es la clase de los desposeídos, de los que no son propietarios de los medios de producción que usan y que participan con su fuerza de trabajo en el proceso productivo (BAGÚ, 1952, p. 53).”
Comércio, mercado, lucro, cidades, a existência desses fenômenos revela a inserção da América Latina na ordem social capitalista; e sob este capitalismo já desenvolvido em América Latina incorpora-se instituições feudais, postas em funcionamento sob o ciclo capitalista. Da análise da ideia de capitalismo colonial em Sergio Bagú depreende-se que para este autor capitalismo é uma forma de economia que utiliza mão-de-obra, no caso latino-americanos era escrava, para produzir mercadorias para o mercado.
Celso Furtado e o Desenvolvimentismo
Celso Furtado é outro importante nome do período de nascimento da historiografia latino-americana que se dedicou ao tema das origens e desenvolvimento do capitalismo no continente. Tal como Bagú, Celso Furtado teve destacada atuação acadêmica e institucional, e resultado de sua influência é que até hoje se publicam coletâneas sobre seu pensamento. Não vamos nos deter em sua extensa atividade intelectual e política. Existe extensa bibliografia que apresenta em pormenores a atuação deste intelectual brasileiro (COSTA, 1996; VERIANO & MOURÃO, 2001; OLIVEIRA, 2003; MALLORQUÍN, 1999).
Celso Furtado foi um dos principais nomes da CEPAL em sua fase de ouro, tendo inclusive uma produção bibliográfica maior do que a do nome mais conhecido da instituição, o argentino Raúl Prebisch. Furtado é da mesma geração de Sergio Bagú, tendo inclusive ganhado o mesmo prêmio que Bagú (MALLORQUÍN, 1999), ambos concedido pela Embaixada dos EUA em acordos institucionais com os respectivos países, Brasil e Argentina. Ao passo que Bagú vai para os EUA, Furtado irá criar vínculos mais fortes com o pensamento europeu, sobretudo o Francês, isto depois de ter participado da 2ª Guerra Mundial como membro da FEB (Força Expedicionária Brasileira) e logo em seguida ao fim da guerra iniciar o Doutorado na Universidade de Paris, defendendo tese sobre o tema da economia colonial Brasileira (OLIVEIRA, 2003; MALLORQUÍN, 1999).
Após passar grande parte da década de 1950 trabalhando na CEPAL, ao final desta década Furtado irá lançar em 1959 um de seus principais livros, Formação Econômica do Brasil. É bem evidente, por este livro e pelo restante da obra do autor, que sua preocupação intelectual não foi a de fazer uma exaustiva análise da sociedade capitalista em si, as análises sobre o capitalismo que este autor fez estão a reboque de seu estudo sobre a inserção dos países subdesenvolvidos no contexto da economia mundial controlada pelos países desenvolvidos, tal como na linguagem do autor. Igualmente aos trabalhos de Sergio Bagú, a compreensão a respeito do significado do capitalismo para Celso Furtado passa pelo processo de extrair tal definição do estudo de suas obras gerais, através da localização de afirmações, síntese de conclusões, comparações, tendo em vista que este autor também não deixou um pensamento aprofundado sobre o que é o capitalismo. Mas por outro lado, no estudo das consequências do capitalismo, no estudo da inserção dos países subdesenvolvidos, é possível reconstituir como Celso Furtado compreendia o significado do conceito de capitalismo.
Celso Furtado concentra sua explicação na formação econômica brasileira e este é o nosso ponto de partida para descobrir como o autor compreende o conceito de capitalismo. Neste livro, o objetivo do estudo é compreender como ocorreu a substituição da empresa espoliativa e extrativa (do pau-Brasil) pela economia estruturada (produção do açúcar) e seus desdobramentos ao longo da história. Segundo Celso Furtado, por meio da aplicação de técnicas e de capitais destinados a criar uma produção destinada a abastecer permanentemente o mercado Europeu, cria-se na colônia um setor em constante desenvolvimento, o setor exportador, articulado à demanda externa. A economia açucareira, com a indústria do açúcar, é a responsável pelo primeiro processo de “capitalização e desenvolvimento” do Brasil:
“O montante dos capitais invertidos na pequena colônia já era, por essa época, considerável. Admitindo-se a existência de apenas 120 engenhos – ao final do século XXI – e um valor médio de 15 mil libras esterlinas por engenho, o total dos capitais aplicados na etapa produtiva da indústria resulta aproximar-se de 1,8 milhão de libras. Por outro lado, estima-se em cerca de 20 mil o número de escravos africanos que havia na colônia por essa época. Se se admite que três quartas partes dos mesmos eram utilizadas diretamente na indústria do açúcar e se se lhes imputa um valor médio de 25 libras, resulta que a inversão em mão-de-obra era da ordem de 375 mil libras. Comparando esse dado com o anterior, depreende-se que o capital empregado na mão-de-obra escrava deveria aproximar-se de 20 por cento do capital fixo da empresa. Parte substancial desse capital estava constituída por equipamentos importados (FURTADO, 2003, p. 49).”
Novo impulso se dá com a economia de mineração, depois com as fazendas de café, e pequenos impulsos com outros produtos como cacau, borracha, especiarias amazônicas (as drogas do sertão), cada um destes impulsos capitalizou e desenvolveu sua região ao estreitar os laços com o mercado externo. A verdadeira mudança qualitativa advém no século XIX e XX, com a transição para o trabalho assalariado e finalmente com a transição para o sistema industrial. O sistema industrial é o auge do desenvolvimento, a industrialização elevaria os níveis de renda e diversificaria os setores da produção.
A produção escravista que gera renda, bem como em todos os outros ciclos produtivos de capitalização e desenvolvimento na história nacional também geraram rendas:
“Vejamos agora, em seu conjunto, o funcionamento dessa economia. Como os fatores de produção em sua quase totalidade pertenciam ao empresário, a renda monetária gerada no processo produtivo revertia em sua quase totalidade às mãos desse empresário. Essa renda – a totalidade dos pagamentos a fatores de produção mais os gastos de reposição do equipamento e dos escravos importados – expressava-se no valor das exportações. É fácil compreender que, se a quase totalidade da renda monetária estava dada pelo valor das exportações, a quase totalidade do dispêndio monetário teria de expressar-se no valor das importações. A diferença entre o dispêndio total monetário e o valor das importações traduziria o movimento de reservas monetárias e a entrada líquida de capitais, além do serviço financeiro daqueles fatores de produção de propriedade de pessoas não-residentes na colônia. O fluxo de renda se estabelecia, portanto, entre a unidade produtiva, considerada em conjunto, e o exterior. Pertencendo todos os fatores a um mesmo empresário, é evidente que o fluxo de renda se resumia na economia açucareira a simples operações contábeis, reais ou virtuais. Não significa isto que essa economia fosse de outra natureza que não monetária. Tendo cada fator um custo que se expressa monetariamente, e o mesmo ocorrendo com o produto final, o empresário deveria de alguma forma saber como combinar melhor os fatores para reduzir o custo de produção e maximizar sua renda real (FURTADO, 2003, p. 58).”
Embora as formas de renda e a inversão tenham qualidades diferentes em momentos diferentes, tal como na renda da economia escravista e a renda da economia industrial, é a existência da renda e da inversão os indicadores do desenvolvimento econômico da colônia. Nestas linhas compreende-se a Formação Econômica do Brasil, tal como Celso Furtado interpreta. A ideia central do autor está em torno do tema do desenvolvimento, perspectiva pela qual torna capitalismo e desenvolvimento sinônimos.
“Da reflexão feita por Celso Furtado depreende-se que capitalismo é sinônimo de desenvolvimento, assim, onde não ocorre o desenvolvimento é porque se construiu uma relação entre desenvolvidos e subdesenvolvidos provocado pela troca desigual no comercio internacional e pela contradição entre o setor atrasado e o setor moderno nos países subdesenvolvidos. Da perspectiva do desenvolvimento, isto é, do desenvolvimentismo furtadiano, é que emergem as reflexões sobre dual-estruturalismo e a troca-desigual no mercado internacional. Sua tese aponta para a existência do dual-estruturalismo nas economias da América Latina marcadas pela coexistência de setor moderno, exportador, e o setor atrasado, com a agricultura de subsistência; e também para a linearidade do desenvolvimento, ou o próprio desenvolvimentismo, tal como se observa na crítica que Furtado faz à teoria do desenvolvimento desigual e combinado, sendo o desenvolvimento desigual entre os diferentes países da economia mundial, não é combinado, posto que o que impede o desenvolvimento é a permanência do setor atrasado da economia, que cria obstáculos para o setor moderno (OLIVEIRA, 2003, pgs. 12/3).”
Desta forma, do estudo de sua obra depreende-se que sua concepção de capitalismo está subordinada a um ponto de partida geral e abstrato, o desenvolvimento, sendo ambas as ideias homólogas. É nestes termos que compreendemos a seguinte afirmação de Furtado:
“O desenvolvimento, a demais de ser o fenômeno de aumento de produtividade do fator do trabalho que interessa ao economista, é um processo de adaptação das estruturas sociais a um horizonte em expansão de possibilidades abertas ao homem. As duas dimensões – a econômica e a cultural – não podem ser capitadas senão em conjunto […] – estrutura da população, hábitos dos consumidores, quadro institucional, etc. […] Em síntese: o desenvolvimento não é uma simples questão de aumento de oferta de bens ou de acumulação de capital, possui ele um sentido, é um conjunto de respostas a um projeto de autotransformação de uma coletividade humana. (FURTADO apud VERIANO & MOURÃO, p. 89)”
E o processo de desenvolvimento se materializa na industrialização como o processo do desenvolvimento: “[…] o desenvolvimento econômico, hoje, é, basicamente, um processo de industrialização.” (FURTADO apud VERIANO & MOURÃO, p. 93) num eterno tautologismo.
Andre Gunder Frank e a Teoria da Dependência
André Gunder Frank é um dos grandes nomes da chamada Teoria da Dependência, um tipo particular de análise e explicação do capitalismo na América Latina. Entre os vários debatedores dessa teoria destacam-se Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra, Theotônio dos Santos, Fernando Henrique Cardoso, Hélio Jaguaribe, Enzo Falleto, Roberto Pizarro, Pablo González Casanova, Aníbal Quijano, Orlando Fals Borda, Franz Hinkelammert, etc. Daí que essa teoria não é monolítica e cada pesquisador apresenta elementos diferenciados. Gunder Frank se diferencia pelos elementos levantados na sua explicação geral da história latino-americana, sendo que sua mais polêmica afirmação é a da existência do capitalismo na América Latina desde o período da conquista ibérica, ou seja, a América Latina está inserida nas estruturas do sistema capitalista mundial e reproduz no seu interior as mesmas contradições que irradiam nos centros metropolitanos e é expandida para as periferias satelitizadas desde o ano de 1492; essa tese é constante em sua produção intelectual nas décadas de 1960 e perdura por alguns anos da década de 1970, quando o autor abandona este debate e passa a ser um dos elaboradores da Teoria do Sistema-Mundo.
O tempo histórico de produção de sua obra passa por diversas experiências e transformações sociais e Gunder Frank vivenciou e produziu sobre esse tempo. A Teoria da Dependência não é senão o resultado da produção intelectual latino-americana sobre a experiência de industrialização da América Latina e as consequentes transformações nas relações sociais, com a expansão do proletariado, estrangulamento do campesinato, fortalecimento da burguesia industrial, permanência do peso da produção agro-exportadora, Estado fortemente interventor na esfera da economia, configuração opressiva nas relações internacionais, disputas imperialistas. Instituições estatais (ISEB), acadêmicas (CESO, UNAM, grupo de estudo de O Capital USP), organismos internacionais (CEPAL/ONU), e fundações privadas (Fundação Ford, Rockfeller, Mc Arthur) em várias situações específicas apoiaram uma nova geração de intelectuais que refletiam sobre as direções seguidas pelo desenvolvimento capitalista na América Latina. É de dentro dessas instituições que surgem os intelectuais que elaboram a Teoria da Dependência como resposta às questões levantadas pelo desenvolvimento capitalista latino-americano. A Teoria da Dependência surge em momento ímpar e com várias transformações que propiciaram o seu surgimento: de um lado, a emergência de uma nova explicação complexa, estruturada e marcada por certos interesses, e do outro lado, transformações concretas nas sociedades latinas e o apoio institucional (estatal ou privado) para o estudo dessas transformações. Similar histórico foi o avanço da teoria Keynesiana nos espaços institucionais durante a crise das sedes do imperialismo entre os anos de 1920 e 1930.
A trajetória de vida de André Gunder Frank é um pequeno reflexo da movimentação mundial ao longo do século XX: nascido em Berlim (Fevereiro de 1929), foi enviado pelo pai para ser educado num internato sueco quando tinha 4 anos de idade, devido à ascensão do nazismo; com 11 anos de idade foi morar nos Estados Unidos com o auge da Segunda Guerra Mundial. Foi nos EUA que se doutorou e fez PhD em economia, primeiramente dentro dos círculos keynesianos, com o qual se identifica, e posteriormente, estudando e rompendo com os principais ideólogos do liberalismo como Milton Friedman e Arnold Harberger na Universidade de Chicago. No início da década de 1960 Gunder Frank decide abandonar o cargo de professor na Michigan State University e sai em itinerário pela América Latina: primeiramente visita Cuba, no ano posterior da revolução castrista, depois segue para o Peru, Bolívia, Brasil, Chile e México. Sob impacto da revolução cubana e convivendo com intelectuais latino-americanos, Gunder Frank passa a produzir sua interpretação sobre as origens e consequências do fracasso do desenvolvimento da América Latina.
Suas primeiras obras sobre a América Latina são publicadas nos anos de 1966 e 1967, respectivamente: El desarrollo del subdesarrollo[1], ensaio onde apresenta as teses fundamentais de sua concepção de subdesenvolvimento, e Capitalismo y subdesarrollo en America Latina, coletânea de ensaios que reúne trabalhos feitos durante sua estadia no Brasil (El capitalismo e el mito del feudalismo en la agricultura brasileña), México (El desarrollo del capitalismo en Brasil), Chile (El subdesarrollo del subdesarrollo en Chile), além de um informe para a CEPAL sobre El problema indígena em América Latina[2]. Ainda em 1967 publica na Revista Catalyst um artigo crítico sobre as principais correntes existentes na sociologia do desenvolvimento, apresentando esta como a justificativa intelectual para esconder as formas de dominação exercidas pelos países imperialistas, o artigo intitula-se Sociologia del desarrollo y subdesarrollo de la sociología: examen del traje del imperador. No final de 1969 conclui a redação de outro importante ensaio radicalizando na sua interpretação de subdesenvolvimento, ao afirmar a existência de uma lumpemburguesia geradora do lumpemdesenvolvimento (Lumpenburguesia: lumpemdesarrollo). Importante ainda para os objetivos desse artigo é o debate entre Gunder Frank e Rodolfo Puiggros em que Frank apresenta claramente a sua concepção sobre as origens do capitalismo na América Latina criticando os defensores dos “vestígios” feudais nessas sociedades (America Latina: Feudalismo o capitalismo).
O debate de ideias produzido por Gunder Frank estava fundamentado num interesse, que segundo o autor seria o de mostrar a necessidade da construção de uma “teoria revolucionária” da América Latina a partir da necessidade de rompimento com a realidade do subdesenvolvimento, e sua intensa intervenção acadêmica e pública lhe rendeu a proibição de retorno aos EUA até 1979, quando foi revogada após a intervenção do senador Edward Kennedy para que Frank ministrasse cursos na Universidade de Boston[3].
A interpretação que Gunder Frank faz do processo de transformação capitalista do continente passa por alterações ao longo dos anos, quando críticas fizeram o autor rever determinados pontos, tal como pode ser lido em um de seus livros dos anos de 1970, A Acumulação Mundial, onde Gunder Frank incorpora a crítica de Samir Amin que afirma ser uma visão limitada tratar da dependência separadamente em diferentes regiões do mundo, Ásia, África, América Latina, pois negligencia as fases históricas de desenvolvimento do capitalismo (FRANK, 1979). Dentre outras revisões específicas em sua obra, podemos afirmar que a evolução das interpretações de Gunder Frank é marcada pela leitura inicial do capitalismo como mercantilismo, em obras posteriores vai introduzir a ideia de acumulação primitiva e no fim da vida abandona a teoria da dependência e migra para a teoria do sistema-mundo.
Para se compreender o conceito de capitalismo segundo Andre Gunder Frank se faz necessário compreendermos quais são os conceitos chave que estruturam a explicação dada pelo autor. Para Gunder Frank, o capitalismo é marcado pela existência de um comércio ou mercado mundial e da relação metrópole-satélite (que se renovou para a relação centro-periferia). São estas as duas características do capitalismo que Gunder Frank aponta em suas obras que analisam a dependência e o subdesenvolvimento da América Latina; embora o autor faça referência à historicidade do capitalismo (que ele identifica como colonialismo, livre-comércio, imperialismo, monopolismo), e em seus diferentes livros utilize uma série de dados referente a cada período. Para comprovar sua tese, as influências da economia neoclássica[4] e o ecletismo com alguns pensadores de tradição marxista (como a teoria do desenvolvimento desigual e combinado) direcionam a análise de Gunder do capitalismo como economia de mercado, o que remete à influência da economia neoclássica com as ideias de renda e excedente econômico. Apesar de fazer referência a uma historicidade do capitalismo, Gunder Frank mantém seu modelo da economia de mercado e da relação centro-periferia, existente desde a Descoberta do continente até o tempo presente, tal como se percebe nesta citação sobre o que o autor considera como sendo o fenômeno do neoimperialismo e da neoindependência que seriam
“La continuación en nuestros días de essencialmente los mismos procesos fundamentales de dependencia, transformación de la estructura económica y de clases, y política lumpemburguesa del subdesarrollo que hemos presenciado a lo largo de la historia (FRANK, 1974, p. 103).”
É uma historicidade sem história, o capitalismo se funda com o comercio mundial e o estabelecimento das colônias, permanecendo estas relações até a atualidade. Na colonização estabeleceu as bases capitalistas da América Latina, sendo que o elemento chave da estrutura econômica e de classe no continente está vinculado ao grau e tipo de dependência em relação à metrópole e ao sistema capitalista mundial, assim se deu a instalação das indústrias de mineração, agricultura tropical, pesca, caça e exploração dos bosques (FRANK, 1974). A exploração capitalista está no fator do comércio exterior que concentra a renda nas mãos de uma pequena parcela da população, transfere grande parte do excedente econômico para o exterior e impede a criação do mercado interno, a falta de demanda provocada pela exploração no continente (FRANK, 1972). Para Gunder Frank, devido ao comércio e aos capitais estrangeiros, os interesses econômicos e políticos da burguesia mineira, agrícola e comercial nunca estiveram voltados para a formação de um mercado interno, sendo esta a atuação da Burguesia durante a colonização (FRANK, 1972, p. 32) e que perdura no tempo.
Em seu livro Capitalismo y Subdesarrollo em América Latina, uma das principais obras de Gunder Frank, o autor apresenta claramente o que compreende como sendo capitalismo e como esta economia está presente no continente desde o iniciar da colonização. Aplicando sua tese ao estudo concreto do Chileno, Gunder Frank afirma que o subdesenvolvimento do país é resultado de quatro séculos de desenvolvimento capitalista e das contradições internas: expropriação do excedente econômico e polarização entre metrópole e satélite (FRANK, 1967).
São os mecanismos de funcionamento do capitalismo (excedente econômico e relação metrópole-satélite) que determinam o desenvolvimento econômico dos países latinos, sendo este desenvolvimento do subdesenvolvimento, nas palavras do autor, o produtor de três contradições: a 1ª contradição: expropriação-apropriação do excedente econômico via monopolismo, ideia que o autor retira de Paul Baran (1967, p. 14/5); 2ª contradição: polarização metrópole-satélite resultado da centralização do sistema capitalista e da existência de dois polos; satélites se encontram subdesenvolvidos por falta de acesso ao seu próprio excedente (1967, p. 16). Segundo Gunder Frank a contradição metrópole-satélite também se generaliza no interior dos países satélites (ou coloniais, que se tornam metrópoles regionais dominando outras colônias) e introduz a estrutura espoliadora. Desenvolvimento e subdesenvolvimento econômico são as faces opostas da mesma moeda (p. 16). A 3ª contradição: continuidade na mudança, continuidade dos elementos estruturais da expansão do sistema capitalista mundial em todo tempo e lugar (p. 18). É da análise do subdesenvolvimento que Gunder Frank constrói sua explicação sobre o capitalismo, que é uma relação de exploração do excedente econômico pela metrópole tornando as colônias/satélites dependentes dentro do capitalismo. Daí que para Gunder Frank a América Latina foi colonizada para expropriar o excedente econômico produzido por seus trabalhadores e necessários para a acumulação de capital no continente europeu (1967, p. 23). O continente esteve desde sua origem determinado pelo capitalismo colonial através produção para o mercado internacional (FRANK, 1967).
Considerações finais
Entre as décadas de 1940 e 1970 foi extensa a produção intelectual sobre o capitalismo na América Latina. Uma das facetas é o conceito de capitalismo presente nas obras deste período. Modernismo, Desenvolvimentismo e Dependentismo foram três correntes interpretativas que se criaram nesse período, interpretações que compreendemos através de três representantes que aqui expusemos. O conceito de capitalismo é importante na medida em que é central na abordagem que estuda o desenvolvimento da sociedade capitalista na América Latina, logo, sem conceito de capitalismo se torna impossível estudar o objeto que se desenvolve.
Demonstramos que o conceito de capitalismo é abordado a partir de fatores como o mercado e renda (Sergio Bagú), técnicas, capitais, renda, mercado mundial (Celso Furtado), ou com a existência do mercado mundial e da relação entre metrópole e colônia/satélite (Gunder Frank). Em comum entre as perspectivas é a pouca elaboração das categorias analíticas, baseadas muito mais em fenômenos observáveis, empíricos, do que em fundamentos teóricos. É analisando categorias básicas, ou do senso comum produto da experiência de vida no capitalismo, tais como mercado, renda, que estas correntes interpretativas fundamentam suas explicações sobre o capitalismo na América Latina. Conhecido o conceito de capitalismo por detrás destas análises, resta-nos a pergunta: o que os limites no conceito de capitalismo revelam? Por que três diferentes correntes interpretativas são tão limitadas na explicação do capitalismo? A nosso ver, a explicação remete para as próprias sociedades latino-americanas e seus vínculos com a sociedade global e não somente às insuficiências do desenvolvimento das ideias.
O conceito de capitalismo nas três correntes analisadas tem raiz no pensamento liberal, influência da economia política clássica e expressa as condições de pensamento da intelectualidade latino-americana nas primeiras fases de consolidação institucional das Ciências Sociais, processo este que vai da década de 1940 aos anos de 1970. Para alguns, a ideia de independência e dependência expressam parte da continuidade do ideário liberal de setores da classe dominante do continente (BEIGEL, 2004).
Por outro lado, na perspectiva marxista a crítica surge porque nenhuma destas concepções debate a questão do mais-valor como determinante das relações capitalistas. Inexiste uma reflexão sobre a moderna produção capitalista de mercadorias, proletários e burgueses como classes sociais em relação. O conceito de modo de produção também não é adotado, sendo que os autores discutidos possuem concepções reducionistas de economia, classe, trabalho. Modo de produção como o conjunto das relações sociais de produção e das forças produtivas de uma determinada sociedade, que na perspectiva marxista é o cerne da totalidade das relações sociais, este é o ponto de partida para a análise marxista, análise que aponta para a totalidade que é a sociedade. A dificuldade mental de pensar em termos de modo de produção, numa apreensão muito mais rica da realidade a partir do que propomos como modo de produção colonial, é característico das três correntes analisadas.
A apresentação do conceito de capitalismo para a historiografia latino-americana entre as décadas de 1940 e 1970, abarcando teorias como o modernismo, desenvolvimentismo e dependentismo, revelou os limites deste conceito tal como formulado. Para o bem da verdade, devemos encerrar esta exposição afirmando que o conceito de capitalismo utilizado nestas abordagens não se trata propriamente de um conceito, visto desde a perspectiva do método dialético e do materialismo histórico. Trata-se, sim, de um construto.
Tendo como ponto de partida que o conceito deve ser a expressão abstrata da realidade concreta criada histórica e socialmente pelos seres humanos, quando não ocorre essa abstração concreta produzem-se construtos que estão inseridos dentro de ideologias (VIANA, 2007). Para a economia política, que é a perspectiva burguesa da conservação de sua sociedade, as relações “materiais” entre os seres humanos é reduzida à entidade abstrata chamada “economia”, que por sua vez gera uma infinidade de seres fantasmagóricos que dominam as ideias do “homem moderno”, como mercado, renda, lucro, investimento. Para a perspectiva materialista que critica radicalmente a sociedade capitalista, a entidade abstrata economia é substituída pelo conceito de modo de produção enquanto conceito que resulta de uma teoria mais ampla sobre as sociedades. Conceito como expressão abstrata de uma realidade concreta produzido pelos seres humanos organizados histórica e socialmente, o modo de produção representa a organização da sociedade para produzir suas condições materiais de vida:
“O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para os meus estudos, pode ser formulado, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual (MARX, 2008, p. 47).”
Modo de produção, relações de produção, forças produtivas são conceitos fundamentais na análise materialista da produção social da existência humana. No Prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política Marx evidencia quais são seus conceitos para análise das relações sociais de produção, o fundamento das sociedades, e assim pode avançar na elaboração de uma teoria sobre a sociedade como totalidade concreta. Por sua vez, em O Capital, Marx desenvolve o conhecimento abstrato de uma sociedade concreta e específica, a capitalista, apresentando através do movimento do capital a realidade específica, ou seja, o movimento da história e da sociedade capitalista por meio da luta de classes. O movimento do capital é apresentado, demonstrando como ocorre em um caso concreto de organização da sociedade de classes.
Como buscamos demonstrar, o construto de capitalismo nas abordagens analisadas expressa o ponto de vista da economia política, ponto de vista este denunciado por Marx como fetichista. Por que fetichista? Porque quando os homens passam a compreender que “seu próprio movimento social possui para eles a forma de um movimento de coisas, sob cujo controle se encontram, em vez de controla-las” (MARX, 1985, p. 72/3), um mundo fantasmagórico surge à consciência, onde as coisas fazem os homens viverem e se relacionarem entre si, e não homens realmente vivos fazem as coisas existirem. A Economia Política construiu
“Fórmulas que não deixam lugar a dúvidas de que pertencem a uma formação social em que o processo de produção domina os homens, e ainda não o homem o processo de produção, são consideradas por sua consciência burguesa uma necessidade natural tão evidente quanto o próprio trabalho produtivo (MARX, 1985, p. 76/7)”
Apesar de Marx ter dividido a Economia Política em duas partes, a economia política clássica e os economistas vulgares, ambas formam a totalidade do pensar da consciência burguesa que olha para si como criadora da verdadeira forma humana de organizar o trabalho, acreditando ter descoberto a forma natural do trabalho nas relações sociais de produção burguesas. Na perspectiva dos construtos da consciência fetichizada da economia burguesa, não pode desaparecer o misticismo, a magia e fantasmagorias que envolvem os produtos do trabalho numa sociedade baseada na produção de mercadorias, exercício reflexivo que Marx fez ao analisar tipos diferentes de organização: do indivíduo isolado em sua ilha, abstração dos economistas políticos, à Idade Média ou uma Associação de Homens Livres (1985, pgs., 73 a 75).
As abordagens aqui analisadas olham para o passado histórico da América Latina e buscam neste passado um sentido, uma representação que corresponda às ideias e interesses que estes indivíduos contraíram vivendo na sociedade capitalista, daí que o conceito de capitalismo utilizado recria no passado as relações presentes, atuais, sob a qual estes indivíduos pensam. Tal como os economistas vulgares que não fazem “mais do que traduzir, sistematizar e louvar baseada numa doutrina as concepções dos agentes presos dentro das relações burguesas de produção” (MARX, 1985/1986, p. 271), nossos economistas latino-americanos incorporam, aplicam as ideias e referenciam-se nos quadros mentais da concepção burguesa de economia, na esperança de enfim concretizar a existência, na América Latina, dos agentes reais da produção burguesa.
Tendo em vista a vinculação histórica das abordagens sobre o capitalismo com a sociedade capitalista, que verificamos logo acima, afirmamos que em Sergio Bagú, Celso Furtado e Andre Gunder Frank a ideia de capitalismo é um construto, tal como na explicação deste fenômeno desenvolvida por Nildo Viana: “uma elaboração sistematizada de uma noção falsa da realidade” (VIANA, 2007, p. 116), ou seja, é uma deformação da realidade imputar ao passado histórico da América Latina a existência de uma organização social capitalista.
A partir da crítica à abordagem de um construto, avançamos na crítica à totalidade destas concepções e reforçamos a perspectiva que compreende o capitalismo através de sua historicidade na luta de classes, expressa na Teoria dos Regimes de Acumulação[5] o que indica que novos estudos sobre a América Latina com base nesta teoria irão surgir como alternativa explicativa para a questão do capitalismo na América Latina.
Referências
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BAGÚ, Sergio. Estructura Social de la Colonia: ensayo de Historia Comparada de América Latina. Edición Socialismo y Libertad. Disponível em https://elsudamericano.wordpress.com/2017/09/15/22504/
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VIANA, Nildo. A Consciência da História: Ensaios sobre o Materialismo Histórico-Dialético. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.
[1] Na edição brasileira publicada no livro Urbanização e subdesenvolvimento organizado por Luiz Pereira o título ficou como Desenvolvimento do subdesenvolvimento latinoamericano.
[2] Na segunda edição de Capitalismo e subdesarrollo em América Latina é incluído outro relatório, para a Bertrand Russel Peace Foundation, com o título La inversión extrangera en el subdesarrollo latinoamericano.
[3] https://resistir.info/mreview/gunder_frank.html.
[4] https://resistir.info/mreview/gunder_frank.html.
[5] Nildo Viana produziu o trabalho germinal que iniciou uma nova etapa de estudos sobre a história do capitalismo, para esta concepção ver: O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo: Ideias e Letras, 2009.
Publicado originalmente na coletânea: América Latina em Movimento: Dominação, Hegemonia e Resistência. Curitiba: Editora CRV, 2018.
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