Original in French: Les conditions de possibilité de l’autogestion
As condições de possibilidade da autogestão[1]
I. Utopia, teoria e práxis
A importância da teoria para a prática revolucionária não é contestada que pelos ativistas subalternos, que se arrependeriam de pensar uma outra teoria e para os quais a execução feliz “das ordens dos chefes” é satisfatória. Nenhum movimento pode existir sem teoria, salvo se, possivelmente, no curso de breves períodos de exaltação, durante os quais a teoria subsista ainda sob a forma sumária da “palavra de ordem” ou do “slogan”. Entretanto, a independência da teoria, apresentada como uma “prática teórica” é uma recaída ao idealismo pré-marxista. Tal concepção, pelo seu idealismo abstrato, reforça “objetivamente” os ativistas, “expondo” a teoria marxista que assim corre o risco de ser confundida com as especulações filosóficas. Sabemos que as ideias não podem modificar que as ideias e que apenas uma ação revela novas possibilidades de ação e, consequentemente, novos pensamentos. As opiniões dos homens são relativas à sua situação, às condições físicas, fisiológicas, econômicas e políticas. Além disso, as ideologias dominantes e os sistemas de valor éticos ou estéticos que formam o contexto cultural no qual uma criança surge têm a mesma função que os fatores primários e materiais. Somos, então, primeiramente vítimas “das aparências”, a verdade não é “natural” e somos propensos tanto a agir mal quanto a pensar mal. A lembrança dos erros cometidos já substitui uma teoria que nos impede de renovar ações inadequadas. Mas, essa sabedoria pode se constituir em teoria fechada e se deteriorar em uma prática estereotipada, como o instinto animal. Não se deve perguntar se a novidade que permite uma abertura vem de uma ação ou de um pensamento, pois ela é tanto um ato que pode ser pensado quanto um pensamento que pode se realizar. Mas, não sabemos imediatamente se um pensamento é realizável, nem se um ato é exemplar.
Esse é o caso para a autogestão: alguns veem nessa teoria uma utopia, outros, nas tentativas efetivas de autogestão, atos insensatos (heroicos, mas loucos). Estamos então, sobre esse assunto, em estado de pesquisa, ou seja, insatisfeitos daquilo que é e incertos daquilo que deveria ser. A sociedade industrial entrou assim em um período de crise. A crise parece ser ao mesmo tempo causa e consequência de uma crítica e é ousado aqui também procurar quem veio primeiro, o ovo ou a galinha. Todavia, a tomada de consciência dessa modulação dialética pode nos resguardar de muitas tolices e muitos erros como, por exemplo, de dizer que a autogestão não poderá existir porque ela não existe (ainda); ou, que as experiências históricas de autogestão não duraram ou se perverteram porque elas eram aberrações. Assim que uma teoria não se realiza, ela é mumificada sobre o cunho de utopia e a creditamos em diante como disfuncional. Mas, frequentemente, em outro sentido, aqui também “o morto dá posse ao vivo”.[2] A utopia continua a alimentar a sonhos e, por vezes, um dia, uma nova práxis descobre nela o seu lugar de existência.[3] Em contrapartida, uma teoria hipostaseada em utopia pode bloquear a práxis. Embora as ideias não possam destruir que as ideias, é frequentemente necessário atacar com as armas da crítica intelectual os bloqueios teóricos, que conseguiram a consistência das coisas materiais e que desencorajam toda prática contestatória. Certamente, não seria necessário escrever sobre as condições de possibilidade da autogestão se esta última tivesse se realizado, mas o fato de não ousar tentar essa demonstração teórica reforça a credibilidade de seu caráter utópico e desencoraja a empreitada. Por outro lado, o que é dado como “provas” da impossibilidade da autogestão na maioria das vezes não é que uma (falsa) leitura teórica dos “fatos”, que podem significar outra coisa em uma outra perspectiva. Precisamos, portanto, pensar e repensar os eventos históricos e as alegadas utopias.
Nosso projeto não é, atualmente, de analisar as experiências de autogestão, mais conhecidas sob a denominação de “sovietes”[4] ou de “conselhos de trabalhadores”. O primeiro rascunho desse sistema foi a Comuna de Paris, depois o soviete de Petersburgo, em 1905. As experiências desse tipo se generalizaram, durante um tempo razoavelmente breve, com certeza, em 1917 na Rússia e em 1918 na Alemanha, Áustria e Hungria. Foi necessário esperar quase vinte anos para rever o fenômeno na Espanha e mais vinte anos para a explosão de Budapeste (1956). Essas revoluções pendiam para o estabelecimento de um novo regime que afetaria a sociedade inteira e é por isso que, na maior parte dos casos, elas foram afogadas no sangue pelas armas da classe dominante ameaçada.
Mas, os caminhos históricos de uma ideia são sutis e astutos. Aqui ou ali,[5] a autogestão aparece agora sob uma roupagem modesta, com a benção de alguns dirigentes ao nível de algumas empresas, sem colocar seriamente em questão, ao menos em aparência, o poder político em vigor. Desde então, podemos nos perguntar quem tem razão “de ser esperto”. Fazendo passar a autogestão (que é um sistema radicalmente antinômico de toda sociedade de classe) por uma das múltiplas variáveis da cogestão, não arriscamos apresentar aos trabalhadores uma participação que é uma colaboração com os exploradores e, portanto, um fortalecimento da dominação de classe, como um progresso? No sentido contrário, não podemos esperar que a cogestão mais limitada não dê em breve à classe trabalhadora a consciência de sua capacidade autogestionária, e que assim ela seja indiretamente preparada e incubada sob as cinzas da revolução radical que acreditávamos finalmente evitar? É talvez o medo dessa dialética que torna desconfiados, mesmo em relação à cogestão, alguns dirigentes burocráticos que proclamam que “a autogestão é uma ideia oca” ou que precisamente ela é uma armadilha grosseira, uma vez que ela é tolerada e até recomendada pelos dirigentes capitalistas.
De qualquer maneira – como demonstram os fatos relatados nesta revista (ver, particularmente, “Le petit jornal de l’autogestion” [O pequeno jornal da autogestão]) e a própria existência dos Cahiers de l’Autogestion [Cadernos da autogestão] – as tentativas de autogestão se multiplicam[6] tanto quanto as pesquisas teóricas. Os seminários organizados por grupos de estudantes sobre o tema da autogestão em diversas universidades são significativos a respeito disso. Se “a utopia” de autogestão ainda não encontrou o seu lugar, ela parece muito bem ter encontrado o seu tempo. O que desenvolvemos aqui, inicialmente sob a forma de uma série de artigos[7] é – ao menos esperamos – uma contribuição a esse movimento atual de pesquisa. Esse “movimento” é completamente necessário, pois a formula conhecida de Lenin: “Sem teoria revolucionária não há movimento revolucionário”, pode ser interpretada como a obrigação de aprender uma teoria toda feita em vista de sua repetição e de sua aplicação pura e simplesmente. É por isso que é preferível dizer: “Sem desenvolver uma teoria revolucionária não há desenvolvimento de um movimento revolucionário”.[8] Isto posto, convêm expor teoricamente a partir de quais princípios e por quais mecanismos práticos a autogestão poderia se realizar – não mais apenas em uma empresa, mas ao nível da sociedade global.
II. Os dois princípios fundamentais da autogestão
Esses princípios são fortemente conhecidos, foram enunciados notavelmente repetidas vezes e longamente justificados na revista Socialisme ou Barbarie [Socialismo ou Barbárie].[9] Certamente, sobre alguns pontos, esses artigos estão atrasados, mas a sua análise é o ponto de partida indispensável de toda pesquisa sobre esse assunto.
O primeiro desses princípios foi formulado pelo próprio Marx em A Guerra Civil na França.[10] Trata-se da revogabilidade à cada instante de quaisquer deputados, delegados ou dirigentes. Essa regra, tão simples quanto radical, tem por objetivo impedir a ruptura do corpo social em duas categorias de homens: aqueles que comandam e aqueles que obedecem. Essa ruptura que pode, ao início, se passar como uma modesta comodidade técnica “pelo bem de todos” se revelou, na história, como uma das causas da divisão da sociedade em classes antagonistas. Contrariamente àquilo que postula Hegel, a dialética do mestre e do escravo não tem sempre como origem a luta pela vida e pela morte, que dá poder à coragem e servidão à covardia. De qualquer forma, além disso, dessa suposta “origem” resta apenas que o fundamento do poder da classe dominante é raramente um ato de coragem que, mesmo que o seja, só assegura o poder por ser necessário acessar a uma estrutura de classe que podemos alcançar também pela nascença, pela astúcia, por eleição, do que pela cooptação. Rousseau soube bem mostrar que não poderíamos realizar uma sociedade solidária de homens iguais se não pela supressão de todo poder heterogêneo (quer seja de origem divina, nascido da violência ou perpetuado e reforçado pelo hábito e pela tradição). Mas, enquanto mostra que o único “soberano” compatível com a nossa dignidade deva ser uma criação de nossa liberdade, ele não insistiu suficientemente nos riscos da delegação ou não acreditou possível conjura-los (no que ele poderia estar certo, à sua época). Desde então, a experiência tem amplamente mostrado que a delegação de poder, mesmo que por um tempo determinado, realiza uma quebra. O eleito se eleva a um status heterogêneo; ele é ipso facto investido de um poder que vem a ele pelas leis, pela constituição, e apesar da aparência, obscuramente também dos reis e dos deuses do passado.[11] Certamente, ao fim do seu mandato, na medida onde ele quer a renovação, ele condescende às vezes a alguma demagogia para conservar a chave de um reino o qual a eleição dá por vezes o acesso, mas que ela não constitui. De fato, o eleitor só pode revogar Charles quando nomeia Georges ou um outro no seu lugar, e só há diferença de personalidade. A estrutura de dominação continua inalterada.
Por outro lado, a revogabilidade à cada instante, pela primeira vez, quebra a estrutura dual. Não há mais delegação em uma distância que não é somente temporal; o delegado “vai longe”, mesmo quando ele volta “para o meio de nós”; ele é investido por uma auréola imaginária durante a duração do seu mandato que toma a consistência da estranheza. Em contrapartida, se a delegação pode ser retirada a qualquer momento, não há mais ruptura, o “soberano” não adquire mais uma existência independente; ele continua, a cada instante, suportado pelos braços dos seus mandatários que podem, a qualquer momento, deixa-lo cair. Então, por causa desse controle contínuo, o poder não se torna jamais uma instância separada, ele se trata de uma simples estruturação móvel do grupo que toma essa forma ou uma outra de acordo com as necessidades da causa. Essa organização eficaz, adaptada ao propósito do momento, não é mais uma delegação, mas uma expressão da vontade de todos.
Insistimos anteriormente[12] sobre as dificuldades práticas da realização dessa regra, mas esses problemas são de natureza conjectural e não colocam o princípio em cheque. Sobretudo, é necessário ver que os dois princípios fundamentais são solidamente condição de possibilidade da autogestão e que, assim, não podemos avaliá-los separadamente.
O segundo princípio é o seguinte: não existe democracia nem muito menos autogestão se os homens não são capazes de se determinarem no conhecimento de causa. Certamente, trata-se de uma “evidência” que sempre se fez perceber e da qual Platão fez a teoria. Mas, dessa “evidência”, muitas consequências foram deduzidas, das quais principalmente aquela que dada a ignorância do povo, a democracia (no sentido próprio do termo de autogoverno do povo por si mesmo) não é possível, que ela é o melhor sistema teórico, mas que só poderia funcionar entre um “povo de deuses”. No seu estado atual de incompetência, de atraso, até de estupidez, o povo será sempre enganado pelos hábeis, humilde perante os poderosos e os doutos, inconsciente do seu próprio bem. A partir de então, a democracia se perverterá em demagogia contanto que a educação do conjunto dos cidadãos não se realize. Essa educação em si levanta os problemas que mencionamos anteriormente, relembrando os críticos da “democracia formal”.[13]
Mesmo com a educação geral do povo supostamente realizada e o capitalismo privado suprimido, a questão da circulação de informações ainda se coloca. Devemos retornar, novamente, à crítica detalhada que fizemos dos falsos semblantes do sistema abusivamente denominado “centralismo democrático”.[14] Nesse sistema, o aparelho dirigente goza realmente do monopólio do poder de decisão. Certamente, não há uma ruptura absoluta entre a população e a “burocracia política central”, como dizem Kuron e Modzelewski, mas se a circulação se faz nos dois sentidos, não significa que tenha a mesma natureza: os aderentes da base podem, ao seguir certas regras, transmitir informações ao topo, que responde (quando responde) não por meio de uma outra informação, mas por uma decisão, eventualmente motivada por um argumento do qual a suposta evidência permite aos dirigentes pensar que eles não comandam, mas se fazem compreender; e aos executantes que se determinem de acordo com o que lhes pareça verdadeiro e oportuno, após a explicação, pelas instâncias superiores, da “opção certa”. Essa aparência não pode sempre ser “salva”, seja porque um militante de base insiste no seu ponto de vista (e, nesse caso, é necessário diversas vezes “aconselhar” à sua célula de excluí-lo e, se ele se recusar, “dissolver” a célula), seja porque a decisão comunicada à base é fundada em informações que não são julgadas como boas de serem divulgadas. Dessa forma o aparelho dirigente dispõe não somente do poder de decisão, mas também do monopólio das condições de decisão, arrogando-se o direito, como todo Estado, de ter seus “segredos”. Os militantes de base não estão, portanto, em estado de se determinar nem de apreciar os atos dos dirigentes em consciência de causa, e é comovente notar que um “filósofo da liberdade” como Sartre (levado pela sua argumentação na série de artigos escritos antes da morte de Stalin e propriamente esquecidos: “Les communistes et la Paix” [Os comunistas e a paz]), para justificar o aparelhamento do partido, pergunta como podem ousar discutir as decisões de Stalin ao mesmo tempo em que ignoram os elementos os quais ele era o único a poder criar.[15]
No capítulo anterior[16] de alhures, presenciamos os esforços desesperados dos dirigentes e dos mestres para impor aos homens um trabalho repetitivo e limitado a tarefas imediatas, sem nenhuma compreensão das estruturas de conjunto. O trabalho (humano) perdeu então a sua humanidade, ele não é mais a adaptação em conhecimento de causa dos meios visando criar um fim; ele perdeu, no sentido originário da palavra, a sua essência poética.[17]
Relembramos aqui temas conhecidos e precedentemente desenvolvidos para melhor fazer aparecer a questão fundamental que nos preocupa: nada impede que a maioria dos homens não sejam alienados na sociedade política e no seu trabalho (e, consequentemente, em toda a sua vida), mas como fazer diferente? Podemos lamentar, tentar trazer melhorias parciais e, depois de tudo, (durante uma duração imprevisivelmente longa) irrisórias, mas esperar uma mudança radical e imediata não é só um sonho (o qual a eficácia é duvidosa, apesar do que dissemos anteriormente sobre a utopia)? De fato, a falta de transparência de diversos centros de decisão não é menos a consequência da “maldade dos homens” de um desejo qualquer de dominação, do que de condições objetivas dificilmente modificáveis?
Estudando as condições de possibilidade efetiva da verdadeira democracia, Platão, assim como Rousseau, se manteve em postular que os homens deveriam ser reunidos em unidades sociais bem pequenas para que a transmissão das informações fosse imediata. Toda transmissão com intermediários coloca o problema da fidelidade do mensageiro, e todo atraso de transmissão é em si o começo do processo destruidor do segredo. Exigiu-se assim que as cidades fossem construídas de tal forma que a assembleia geral de todos os habitantes fosse possível com um orador como porta-voz. Era a forma política da regra teatral de três unidades. Agora, esse desejo de Platão e Rousseau, já utópico na sua época, seria hoje completamente insano, não apenas por causa das aglomerações de mais de milhões de habitantes, mas devido à complexidade por toda parte aumentada pelas relações econômicas, jurídicas, administrativas e técnicas, tanto em nível da vida política quanto das empresas industriais e da vida privada. Assim a credibilidade da autogestão, já fraca naquela época, tenderia a se diminuir à medida em que a sociedade se desenvolve. Mas, isso seria enxergar apenas um aspecto da evolução histórica. Desde as origens da humanidade, vale a “dialética” da espada e do escudo. À medida em que a sociedade se complexifica, se aperfeiçoam os meios de medida e de controle que tornam a complicação extrema de hoje por vezes mais fácil de ser resolvida, enquanto que para os primeiros homens eram problemas aquilo que para nós parecem coisas simples. Legislar a priori sobre as condições de possibilidade ou sobre as razões transcendentais da impossibilidade da autogestão, ou analisar as leis estruturais (“eternas”) é uma atividade especulativa que, desde muito tempo, Marx comparou ao onanismo. Nenhum estudo sério desse problema pode ser separado de uma tomada em consideração de novas possibilidades práticas, criadas pelo desenvolvimento da técnica científica e principalmente pelas calculadoras eletrônicas. Mesmo na filosofia, não podemos realmente fazer amor que em seu próprio tempo.
III. A fábrica do plano
Para apresentar de uma maneira vistosa essas novas possibilidades técnicas de superar a complexidade crescente da sociedade moderna, Pierre Chaulieu lançou a ideia, há algumas décadas, da fábrica do plano, no número 22 da revista Socialisme ou Barbarie [Socialismo ou Barbárie].[18] Eis, sumariamente, do que se trata: principalmente de um organismo de cálculo ou, como diríamos agora, de “simulação”, batizado “fábrica” por Chaulieu, talvez por simples “trabalhadorismo”.
Toda análise científica dos mecanismos de decisão (que essa decisão concerna aos grandes ou pequenos conjuntos) leva ao mesmo esquema. Distingue-se:
a) as condições iniciais (os “dados” do momento);
b) o objetivo (o objetivo a ser alcançado);
c) os meios intermediários (ou objetivos secundários que permitem alcançar o objetivo primário ou final).
É fácil compreender que se as condições de partida são simples e bem mensuradas; se o objetivo a ser alcançado é claramente determinado e definitivamente fixado, as atividades intermediadoras a serem implementadas são facilmente deduzidas, mesmo se múltiplos “caminhos e meios” são possíveis e podem estar sujeitos a diversas escolhas diferentes.
Certamente, no caso da economia, sobretudo ao nível de uma grande empresa e, mais ainda, a nível nacional, as coisas são mais complexas e uma multidão de fatores entra em ação recíproca. Por exemplo, existem milhares de produtos diferentes, muitos processos de fabricação, a utilização possível de diversas matérias primas e a fabricação de tal produto determina as possibilidades e impossibilidades concernentes aos outros produtos, etc… Às vezes fabricaremos muito, às vezes nos faltará um elemento que é a condição de um outro, mas que não podemos fabricar pela falta de matérias primas, de ferramentas ou de mão de obra qualificada.
Desse emaranhado, somos tentados a concluir que toda determinação correta de “realizações intermediárias” é impossível. Mas, isso seria não enxergar que isso é apenas uma complicação quantitativa; ela apresenta tão somente problemas de cálculos que a tecnologia moderna e os computadores podem resolver muito rapidamente e sem dificuldade.
Chaulieu lembra que essa interdependência, interconexão ou interrelação de diversas partes do sistema econômico, já foi objeto de estudos precisos e numerosos após o trabalho, agora “clássico”, de W. Leontieff, publicado em 1941: The Structure of American Economy, 1919-1929, que trazia como subtítulo: “Uma aplicação empírica da análise de equilíbrio”.[19] Leontieff é o inventor do método das análises input-output, ou seja, do método de estudo das relações intersetoriais, que é de longa data utilizado por todos os planejadores “de leste a oeste”. André Piatier, por exemplo, não hesita em escrever que “o método de Leontieff tornou possível no domínio de estudo e de ação econômica uma revolução bem parecida à revolução industrial, que fez passar a produção da era artesanal àquela da indústria moderna”.[20] De qualquer forma, está fora de cogitação que as tabelas de transação ou “matrizes quadradas”[21] de entrada e saída (input-output) permitem “simular” a repercussão de um impulso sobre um dos elementos do sistema ou, mais amplamente, de conhecer os relatórios quantitativos (chamados coeficientes técnicos) dos componentes de um produto fabricado a partir de um conjunto de outros. Por exemplo, a determinação do atual coeficiente técnico que fixa a quantidade de carvão por unidade de aço produzida é um cálculo de uma grande banalidade. É o mesmo para os componentes necessários à fabricação de muitos outros produtos, ou mesmo um conjunto de produtos. De acordo com Chaulieu, “o método das matrizes de Leontieff combinado a outros… (a análise de atividade de Koopmans,[22] notadamente da qual “a pesquisa operacional”[23] é um caso particular) permite (…) a solução exata, ao menos em teoria, desses problemas. Uma matriz é uma tabela na qual são dispostos sistematicamente os coeficientes técnicos (…) que exprimem a dependência de cada setor em relação a cada um dos outros. Todo objetivo final definido se apresenta como uma série de bens em quantidades específicas, que devem ser produzidos durante um período determinado. A partir do momento em que esse objetivo final é fixado, a solução de um sistema de equações simultâneas permite definir imediatamente todos os objetivos intermediários, ou seja, as tarefas a serem realizadas por cada setor da economia.”[24]
Para esclarecer a sua exposição, Chaulieu queima as etapas e simplifica o esquema que se aproxima um pouco da teoria, desde então, dos sistemas compatíveis de Leibniz. No mais, ele coloca no mesmo nível o método de análise de Leontieff, do qual as aplicações são correntes e numerosas e aquele de Koopmans, da qual a problemática é mais delicada na medida onde ela tende à otimização dos recursos à escala de uma economia nacional.[25] É necessário observar, por outro lado, que os objetivos intermediários não são apenas deduzidos do objetivo final, mas que, por um lado, eles permitem não apenas escolher, mas conceber um objetivo final. Certamente, a primeira função da análise empírica por matrizes quadradas é a de calcular as possibilidades finais de diversos setores, em função de suas produções respectivas totais; o segundo tempo consiste em inverter o processo (matriz inversa) e, a partir das demandas finais, de calcular as produções totais de diversos setores para saber, de acordo com uma piada americana, quantos lápis são necessários para construir um tanque. Mas, falta uma terceira função do sistema de cálculo que consiste em imaginar uma pluralidade de objetivos finais. Uma das funções da simulação é, de fato, a de “projetar” os diversos objetivos finais a partir de diversos conjuntos de dados.
De uma maneira mais geral, é necessário compreender que nas calculadoras eletrônicas a causalidade não é linear,mas, em certo sentido, circular: o efeito é causa e vice-versa. As máquinas cibernéticas, como sabemos, são em si autorreguladas, “o efeito” reagindo de volta sobre “a causa” para aumenta-la ou diminuí-la; não é, como dizemos, “para as necessidades da causa”, mas para as necessidades do efeito que se torna também causa da causa sem deixar de ser um efeito. Assim podemos quase dizer que a autogestão é realizada ao nível das máquinas eletrônicas, e que não é absurdo pensar que elas possam servir para assegurar a autogestão da sociedade.
Podemos facilmente imaginar, na perspectiva de uma sociedade em autogestão, que os diversos cálculos, especialmente os cálculos econômicos, sejam confiados a uma grande empresa especializada (“a fábrica do plano”), mecanizada e automatizada, capaz de efetuar rapidamente a determinação dos objetivos intermediários de acordo com diversos objetivos finais previstos anteriormente por hipóteses. Os computadores executam muito rapidamente tais cálculos hipotéticos que chamamos agora, como dissemos, de simulações.[26] Podemos dar a esse conceito de simulação um duplo sentido: é primeiramente, no tocante ao radical latino (simul), ter em mãos, ao mesmo tempo, todos os elementos de base e, em segundo lugar, fazer semblante (simular) de optar por tal objetivo final para saber (experiência “para ver”) quais consequências resultaria aos níveis intermediários (os custos); sendo claro, como indicamos, que a operação pode ser inversa e que podemos reunir objetivos intermediários para “simular” eventuais fins, ou seja, fazer simulacros a fim de inventariar o campo de possibilidades. Como vemos, não se trata mais somente da descrição de um estado econômico nem mesmo de uma simples análise estrutural, mas de uma previsão condicional, de um meio “de ultrapassar o estado descritivo e de se engajar diretamente na política econômica”, como escreve Piatier em um contexto totalmente diferente.[27] Dessa forma, não parece legítimo se perguntar se as novas possibilidades técnicas são a ferramenta adequada de uma determinação em conhecimento de causa, no caso onde os fatores a coordenar são muito numerosos e em interação recíproca?
Certamente, um bom funcionamento de um tal organismo de cálculo e de previsão (a fábrica do plano) supõe:
1) Um censo exato dos recursos, um conhecimento muito preciso do estado da economia e dos diversos dados iniciais (matérias primas, mão-de-obra, capital, material, infraestruturas industriais, transportes, recursos agrícolas que comportam a determinação por região da fertilidade do solo, do estado da pecuária e das ferramentas, etc.).
2) a determinação dos coeficientes técnicos de correlação que supõe uma memória dos relatórios empíricos precedentemente determinados (com coeficientes de variação de acordo com o progresso da técnica e com as qualidades das matérias primas).[28] Desde então, os dados estatísticos gerais do funcionamento da economia permitem saber, pelo menos em grandes massas, quanto é necessário do produto A para fabricar tal quantidade de produto B. Assim – graças a essa “memória” dos dados e dos relatórios precedentemente estabelecidos, revisados e atualizados incessantemente – os computadores da “fábrica do plano” tornarão possíveis os votos em conhecimento de causa. Pois, naturalmente na medida na qual suas informações serão convenientemente difundidas, eles tornarão claro para todos o que tal escolha inclui como consequências nos diversos setores e, ao mesmo tempo, quais são os diversos graus de compatibilidade e de incompatibilidade entre os diversos objetivos propostos.
Desta forma, vemos igualmente que foi superada uma das objeções impostas com mais frequência. Repetimos, de fato, que a autogestão não é possível que em unidades extremamente pequenas, por exemplo, ao nível de uma fábrica. Colocamos até que o interesse assim suscitado pela administração de um grupo local monopoliza toda a atenção dos gestionários, encantados por sua (aparente) autonomia e que, disso, eles dificilmente se importarão mais da política geral que comanda, entretanto, em última instância, os seus interesses. Sem dúvida, é inevitável que os homens prefiram uma gestão local que pareça estar ao seu alcance do que uma gestão geral, que escapa à sua compreensão e controle. Mas, só resta que – ao menos em teoria – um organismo do tipo da “fábrica do plano” “miniaturiza”, em certo sentido, os grandes conjuntos e os torna acessíveis e controláveis. Essa parece ser a conclusão (de um otimismo um tanto conquistador) que animava Chaulieu, pelo menos enquanto ele formulava sua teoria da “fábrica do plano”. No entanto, devido ao seu caráter brilhante, a demonstração de que o organismo de cálculo contemplado é a mediação que tornará os homens aptos também a gerir a sociedade global como as unidades pequenas levanta uma resistência que convém analisar.
IV. Simulação e dissimulação
As críticas que vão de encontro à teoria da “fábrica do plano” são de dois tipos. As primeiras, formuladas por economistas, contestam a própria possibilidade dos cálculos, e as outras, enunciadas mais do ponto de vista político, sublinham o perigo de que os técnicos da “fábrica do plano” não se tornem um novo poder dominante.
a) Para P. Kende,[29] as pretensões da “fábrica do plano” são sem dúvidas excessivas, pois, fundamentando-se na experiência, pode-se observar que nenhuma economia planejada conseguiu colocar em equações o conjunto das atividades nacionais, ao ponto de ser capaz de otimizá-los fazendo variar, de forma adaptada, um certo número de fatores. P. Kende acrescenta que o mercado competitivo lhe parece “como uma condição fundamental da repartição mais ou menos otimizada dos recursos. Pois, dada a complexidade dos processos econômicos assim como a necessidade de uma motivação adequada dos agentes econômicos, a otimização pode ser apenas fruto dos ajustes sucessivos operados, em colaboração, pelo planejador central e pelos agentes da periferia. Esses ajustes são dificilmente realizáveis (mesmo com os computadores e com uma “simulação” dos mercados) na falta de um mercado competitivo por meios devidamente regulamentados”.
Essas observações de P. Kende, por sua ancoragem empírica, possuem a primeira vantagem de colocar em questão a afirmação de Chaulieu, para quem tudo é tão “fácil” e sobretudo nos permite refletir a partir dos dados e das dificuldades atuais da pesquisa econômica.[30] Quanto à substância, elas nos parecem mais confirmar do que negar a tese geral que tentamos apoiar.
De fato, o capitalismo competitivo para sobreviver procurou, de certa forma, se racionalizar (fusões e monopólios)[31] e, no sentido contrário, os planejadores autoritários dos regimes “socialistas” vêm exigir uma regulação para a demanda dos consumidores. Essas duas ordens de fenômenos invalidam, por sua vez, a regulação automática “pelas leis da concorrência” e a possibilidade antitética de um planejamento pela burocracia política central. Temos, de nossa parte, desenvolvido abundantemente esse último tema nos capítulos precedentes desse estudo (ver particularmente: Les contradictions de l’hétérogestion [As contradições da heterogestão]).[32] Todavia, não parece possível escapar às dificuldades insuperáveis da antítese (impossibilidade de um planejamento pelos mecanismos autoritários do centralismo – supostamente – democrático) por um simples retorno à tese (regulação pelos mecanismos do laisser-faire–laisser-passer[33] da “livre” concorrência).
Primeiramente, não se deve aceitar como uma evidência os chamados benefícios da concorrência comercial fundada no lucro. A maior parte dos estudiosos que “da antiguidade aos nossos dias” efetuou descobertas não era movida pelo lucro comercial. Por outro lado, a suposta otimização dos produtos pela concorrência comercial é igualmente colocada em questão; frequentemente, o produto “novo” só tem a embalagem nova ou, como dizemos, o condicionamento que não concerne somente ao invólucro material dos objetos, mas ao comportamento dos clientes pela “invenção” de slogans publicitários astutos.[34] É, nesse caso, particularmente lamentável que os chamados ministros ou secretários de Estado (com boa fé variável, na qual esses personagens oficiais ouviram ou não falar das experiências de Pavlov sobre a montagem de reflexos condicionados), para “justificar” a introdução da publicidade nas filiais nacionais, confundem publicidade e educação, propaganda comercial e informação. Em realidade, a concorrência é essencialmente um desperdício: desperdício primeiramente dos cérebros e de laboratórios que se colocam em pesquisas paralelas; as empresas gastam somas enormes para “inventar” ou comprar diversas vezes com a ajuda de espiões ou por corrupção uma patente que a empresa rival já desenvolveu, que pode não ser nada além de um aperfeiçoamento secundário ou que parece simplesmente caro, guardado em grande segredo. Desperdício ao nível das redes comerciais que se arraigam a diversificar sobre múltiplas roupagens produtos essencialmente similares; desperdício, enfim, seja no plano nacional ou internacional, pela divisão das empresas e o aumento do custo de produção.
Em suma, as dificuldades encontradas pelos planejadores burocráticos centrais não devem nos incitar a ceder às miragens do paraíso perdido da concorrência. Entretanto, sem favorecer de modo acadêmico “a tese e a antítese”, não substituímos “a lógica da coisa pela coisa da lógica”, uma vez que P. Kende também fala de um “mercado competitivo devidamente regulamentado” e por isso reconhece a necessidade de uma terceira via de passagem que, a propósito, começa a se desenhar sob as formas, certamente distintas, nos planos econômicos de diversos países desenvolvidos, quaisquer que sejam as diferenças – que permanecem fundamentais – dos regimes políticos. Em resumo, os mecanismos de regulamentação que preconizamos nos parecem radicalmente diferentes das leis de concorrência e das simulações das quais uma burocracia central é capaz pois, como tentaremos explicar ao fim desse artigo, a organização que preconizamos poderia ser um conjunto no qual – de acordo com a fórmula inversa de Pascoal – a circunferência está por toda parte e o centro em lugar nenhum. A prática cada vez mais difundida dos estudos de mercado por sondagem das amostras características é um passo nessa direção; ela permite compreender que a decisão final dos gerentes da empresa de produzir isso ao invés daquilo, sob essa forma e não sob uma outra, não há nada de central a não ser o nome, tendo o centro de decisão se tornado resultado das escolhas convergentes dos agentes periféricos. Quem vê apenas esse inquérito preliminar – e que deveria ser permanente – nada mais é que, essencialmente, o equivalente antecipador da concorrência no sentido em que ela ensina antes o que a concorrência nos ensina depois.
Os “ajustes sucessivos” dos quais fala Kende podem também ser obtidos sem recorrer aos mecanismos de concorrência comercial. Certamente, uma intenção de voto ou de compra não equivale exatamente a um voto nem a uma compra. Podem participar até então diversos agentes modificadores – transformações objetivas da situação ou novas informações – e, sobretudo, a reação perante o objeto pode ser frequentemente diferente da apreciação projetada a um objeto simplesmente imaginado. Mas, no caso que estamos considerando de um estudo de mercado quase permanente e, em todo caso, preocupado em controlar imediatamente a “recepção” efetiva dos produtos pelo público, a precisão estatística (deixando espaço para todas as aberrações individuais inevitáveis) seria largamente suficiente por uma determinação adequada das instâncias produtoras, para realizar os “ajustes sucessivos” necessários. A regulação que desenhamos de forma grosseira aqui nos parece uma das respostas possíveis à condição colocada por Kende de um “mercado competitivo devidamente regulamentado”, dado que as (aparentes) decisões centrais seriam apenas os resultados da concorrência das opções dos agentes periféricos. A concorrência comercial seria assim substituída por uma forma de concorrência matemática.
Faz sentido que o estudo comparativo: planejamento e concorrência poderia ser objeto de um capítulo inteiro, mesmo de um grande trabalho. Não insistiremos mais, especialmente porque o estudo de segunda ordem da crítica à “fábrica do plano” fortalecerá – ao menos esperamos – o tema que acabamos de esboçar.
B) As “objeções” formuladas de um ponto de vista político derivam quase todas de uma dificuldade fundamental que é a seguinte: em qual medida os “técnicos” da “fábrica do plano” – por causa do seu saber concernente às informações primárias (a armazenar nos computadores) e aquilo que torna possível o início das máquinas e da “leitura” dos resultados – não aparecerão, pelo menos, como manipuladores possíveis da informação e de seu tratamento?
Devemos confiar na sinceridade desses técnicos que teremos que supor sempre guiados – tais como os monarcas ditos “esclarecidos” – pela única preocupação do bem comum e por um escrúpulo científico sempre em alerta? Não é exagero temer que esta equipe, consciente de ser o pensamento do conjunto do corpo social, se eleja como poder dominante e oriente “cientificamente” as decisões de todos, para perpetuar ou reforçar seu poder pela implementação de uma farsa fantasiosa. Podemos, para diminuir esse medo, pensar em criar uma outra “fábrica do plano” que seria um organismo de controle, sem estar assegurada a impossibilidade de um acordo entre as duas “fábricas”. Se queremos sonhar nessa direção, podemos ler as terríveis antecipações de Orwell em seu célebre 1984.
No entanto, mesmo se – à maneira de Chaulieu – não colocamos em dúvida a honestidade científica dos reitores da “fábrica do plano” e se não estimamos como sério o medo de que eles cedam diabolicamente à tentação do poder, existe ainda um outro problema relativo, desta vez, não aos “dirigentes” da “fábrica do plano”, mas aos “consumidores” dessas informações. Estes não serão naturalmente inclinados a admirar, com uma mistura de respeito e medo, essa maravilhosa “fábrica do plano”? Certamente, eles poderão compreender as informações concernentes aos dados da base assim como a enunciação da série de decisões propostas à sua escolha, mas a passagem dos primeiros aos segundos se manterá enigmática e os processos complexos dos computadores terão uma função quase igual ao mysterium fidei. A dedução dos “casos possíveis” se fará certa a partir dos dados em si, mas – como no conhecimento do quarto grau em Platão[35] – pela mediação do “princípio hipotético” que está “além da essência” e que, como Deus, não pode ser compreendido, assim como o sol não pode ser visto a olho nu. Certamente, compreendemos bem a função necessária do sol, de Deus e dos computadores da “fábrica do plano”, mas não podemos entender sua natureza íntima. A atitude da maioria não será nada além do que a esperança ou o fatalismo. E, para acrescentar, a obediência respeitosa para os poucos sacerdotes que pretendem ter (ou que têm realmente, se tratando dos engenheiros eletrônicos) um acesso privilegiado aos mistérios divinos ou matemáticos, só concretiza e finalmente fortalece a alienação da grande massa de homens, submetida não mais apenas a princípios obscuros metafísicos, mas aos apetites dominadores de uma minoria de seus “iguais”. Assim, “a fábrica do plano” apenas mudaria os mistérios e permitiria apenas a instauração, sob pretexto de gestão autônoma em conhecimento de causa, de uma variação do velho sistema de heterogestão. Finalmente, as “simulações” da “fábrica do plano” equivaleriam a “dissimulações”.
Como podemos supor, Pierre Chaulieu não era ignorante dessas dificuldades que lhe foram frequentemente opostas, sob essa forma ou sob uma outra, no seio do grupo Socialisme ou Barbarie. A verdade é que, salvo engano, nos seus escritos posteriores eles não mais se referiu à teoria da “fábrica do plano”. Seria talvez exagerado interpretar esse silêncio como um abandono, mas podemos detectar um certo desconforto e, pelo menos, uma dúvida sobre a oportunidade de referir-se a ela.
Sendo assim, os críticos da “fábrica do plano” não ficam sem resposta. É necessário primeiramente observar que o caso dos computadores é banal. Certamente, os mecanismos dos “cérebros eletrônicos” continuarão misteriosos para muitos durante muito tempo, mas isso não deveria impedir, no plano da vida prática, um controle adaptado. Sem saber mais sobre o funcionamento interno do aparelho, as pessoas ligam, desligam e mesmo regulam seu receptor de rádio ou televisão; também, como lembra Chaulieu, várias pessoas controlam eficazmente, salvo exceção resultante de causas diversas, o seu automóvel ou seu barbeador elétrico sem ser sempre capazes de conceber os mecanismos internos.
Nos dirão que não era assim nas épocas já distantes do artesanato; o trabalhador era capaz de fabricar suas próprias ferramentas e ele sabia a cada instante o que fazia. Dessa maneira, “a fábrica do plano” certamente não é, infelizmente!, um caso único, mas que ela não seja o único elemento alienante da sociedade tecnicista atual não a legitima em nada.
Poderíamos já notar que as condições de compreensão no tempo do artesanato não eram tão idílicas. Todas as profissões especializadas traziam uma certa parte de mistério e, se o relojoeiro compreendia o mecanismo do seu pêndulo ou do seu relógio como um engenheiro eletrônico o do seu computador, o possuidor de um relógio quebrado esperava com esperança e medo o diagnóstico do relojoeiro como àquele de um médico. Sobretudo, é necessário fazer uma reflexão um pouco mais aprofundada. Se o artesão sabia o que fazia[36] e forjava sabiamente suas ferramentas, será que ele compreendia como poderia pensar, tornar o projeto em imagem do objeto a ser criado e mesmo como ele moveria o seu braço? O cérebro humano é tão enigmático quanto o cérebro eletrônico, e isso não impede de usá-lo. Desse ponto de vista, “a fábrica do plano” não seria que um instrumento de medida e ação como qualquer outro, do qual apenas a função seria mais importante, pois isso seria um meio de calcular os custos das opções fundamentais que comandam a vida e a evolução da sociedade.
É verdade que é justamente essa importância da função da “fábrica do plano” que pode incitar os engenheiros competentes a fazê-la funcionar para seu lucro. É por isso que, se é necessário manter os serviços dos cálculos complexos de computador, é necessário abandonar o mito da “fábrica do plano”.
Quer queiramos ou não, a concentração dos meios de cálculos decisivos em um lugar cria a infraestrutura de uma fábula, da qual lucraria uma nova minoria imediatamente à parte e privilegiada, mesmo se a sua única função técnica e sua justificação útil é a de informar e apresentar opções. É necessário então, como dissemos, que “a fábrica do plano” esteja por todo lado[37] e em lugar nenhum. É aqui que os dois princípios fundamentais da autogestão se unem e são, ao mesmo tempo, a condição um do outro. O número de engenheiros capazes de compreender e efetuar a passagem entre os dados e simulações deve ser “infinitamente” grande em relação ao número efetivamente necessário para esse trabalho, de tal maneira que sejam a cada instante atualizáveis as mudanças de função e o rodízio de tarefas. É então o segundo princípio: determinação e conhecimento de causa, ou seja, elevação do nível geral de instrução que faz com que o primeiro (revogabilidade a qualquer momento) possa se tornar “operacional”. Podemos imaginar um grande número de centros de cálculos e uma centralização que só demandará uma aparelhagem leve, e não merecerá em sentido algum o nome de fábrica. Mas, seria inútil empurrar adiante uma descrição teórica que os progressos da tecnologia logo tornariam caducos.
O que já podemos constatar é que os meios modernos de telecomunicação (duplex ou multiplex) estendem à terra inteira o critério da dimensão ideal da Cidade, concebida pelos filósofos: a humanidade inteira está ao alcance de um orador, mesmo que ele esteja na lua, e o diálogo pode ser instituído com todos. Nada impede que todos estejam sabendo do conjunto de detalhes e dos detalhes do conjunto nem, consequentemente, que uma autogestão de empresas e da sociedade global seja possível. Podemos já imaginar – não um voto sobre uma questão cuidadosamente selecionada ou amalgamada com uma outra a cada dois ou três anos –, mas uma forma de consulta quase permanente do conjunto do corpo social.[38] Com certeza, não faltarão especialistas em “comunicação de massas” ou outros para nos explicar que as telecomunicações, auditivas ou visuais, não reproduzem exatamente as condições do fórum grego e não criam uma vida civil. Reconhecemos de bom grado que o fórum grego esteja longe de ser, para nós, um modelo. Sabemos que, por exemplo, nem as mulheres nem os escravos eram autores nessa admirável democracia. Mas, os homens sabem imaginar idealmente o passado melhor do que o futuro; se eles são relutantes perante aquilo que jamais vimos, eles cedem facilmente à ilusão retrospectiva dos encantos, do antigo.
Por outro lado, o ciúme das esposas, mesmo que com relação às locutoras de televisão, torna possível duvidar do caráter supostamente abstrato da relação cinematográfica, e não seria a primeira vez que haveria comunicação real por meios “irreais”. De qualquer forma, se não fosse assim, lamentaríamos sabiamente os contágios afetivos de grandes encontros quando o chefe carismático, pela sua presença efetiva, eletriza a grande multidão de seus fiéis, pois ele torna loucos aqueles que o amam. Não existirá sociedade solidária entre iguais enquanto os povos precisarem de tais fenômenos heroicos. A informação, concernente a uma administração de coisas que deixa os homens livres, deve se livrar de tais prestígios; em última análise, não devemos perguntar: “É da parte de quem?” mas “da parte do quê?”.
Podemos, sem dúvida, atribuir generosamente a inocência de ter acreditado apresentar aqui um plano definitivo para a realização imediata da autogestão em qualquer lugar. Depois disso, será fácil zombar ou sorrir da “infantilidade” de toda antecipação tecnológica ou mesmo, mais gentilmente, de alinhar uma série “de objeções”.[39] A essas últimas, pedimos nada mais do que “responder”, mesmo que tenha acontecido por acaso que elas nem sempre sejam sinceras ou que estejam acompanhadas de uma ironia “superior”. Mas, é necessário repetir que nossa intenção, no momento, não é outra que a de apresentar uma contra-ideologia, um questionamento das opiniões e das ideias “dominantes” que se impõem, acreditamos, com “a evidência” das coisas estabelecidas.
Admiramos certamente, e sem ousar fazer parte, o excesso daqueles que proclamam a “cientificidade” dos seus escritos. A autogestão que queremos sobre o plano político, econômico, industrial, etc., deve igualmente se praticar na busca por um diálogo generalizado entre teoria e pratica de início, mas também entre as diversas práticas e teorias antagonistas. O eco encontrado nos estudantes de diversos países pelas pesquisas sobre a autogestão nos encoraja a escrever, ao fim dessa série de artigos, não a palavra “fim”, mas a palavra “começo”.
[1] O artigo abaixo foi primeiramente exposto na forma de uma apresentação em março de 1969 para um grupo de estudantes da Universidade de Nimègue e, em agosto do mesmo ano, em um seminário da Universidade Popular de Verão de Liège. As perguntas e sugestões dos participantes dessas duas reuniões foram integradas na presente exposição. Por outro lado, os leitores da revista Socialisme ou Barbarie [Socialismo ou Barbárie] e sobretudo aqueles que participaram das discussões do grupo de mesmo nome, há 15 anos, reconhecerão com frequência ideias familiares. Portanto, devemos agradecer nessa ocasião a todos aqueles que de uma forma ou de outra colaboraram para este trabalho, ao mesmo tempo em que nos desculpamos de frequentemente, sem dúvidas, trair o seu pensamento.
[2] N.T.: “Le mort saisit le vif”, no original.
[3] Ver uma apologia da utopia nos diversos livros de Marcuse, principalmente em: Eros et civilisation [Eros e Civilização], Imaginaire et utopie [Imaginário e utopia], pp. 129-141. La fin de l’utopie [O fim da utopia], pp. 7-40 – Vers la libération [Em direção à liberação], introdução, pp. 11-15, e também Karl Mannheim – Idéologie et utopie [Ideologia e utopia], Paris, 1956.
[4] É necessário salientar que o regime “soviético” atual não tem, após muito tempo, nada além do nome em relação aos soviéticos de 1917. Existe, sobre esse assunto, uma literatura demasiado abundante para que possamos denunciá-lo em uma nota. Nos permitimos, todavia, apontar a obra parcial, mas fundamental, de Voline: La révolution inconnue [A revolução desconhecida](obra por si mesma pouco conhecida, recentemente reeditada, Pierre Belfond, Paris, 1969, 696 p).
[5] Na Iugoslávia e na Argélia de Ben Bella, por exemplo.
[6] Estudos adicionais são também necessários – desse ponto de vista –, mesmo que já tenha sido objeto de uma multidão de livros, sobre o movimento de maio-junho de 68 na França. Para exemplificar: Yannick Guin, La comunne de Nantes [A comuna de Nantes], Maspéro, Cahiers libres, 1969, particularmente pp. 137 a 140, ao fim do capítulo sobre “as instituições”. Por outro lado, cacique e ministro espetacular da Quarta tanto quanto da Quinta República, mas preocupado no entanto de não deixar esquecerem que era mais inteligente do que os outros, Edgar Faure, na edição de 1969 da revista l’Expansion[A Expansão], mostra que percebeu que os “eventos de maio” não podem ser interpretados como uma simples vontade que “a esquerda” teve de tomar para si os instrumentos tradicionais do poder político, mas como “uma forma de oposição total (…) que iria colidir ao mesmo tempo com a tecnoestrutura e com a estrutura parlamentar de tipo clássico”.
[7] Este conjunto de estudos será reformulado e completado sob formato de uma obra a ser publicada em breve na Editions Anthropos sob o título: La délivrance de Prométhée[A questão de Prometeu].
[8] Editorial no. 1 de Socialisme ou Barbarie, 1948, p. 4.
[9] Revista publicada de 1949 a 1965 com total de 40 edições.
[10] Edition Sociales, p. 42.
[11] É suficiente, sobre isso, evocar de Max Weber o “poder carismático” não somente de um Hitler, mas também de um de Gaulle que, enquanto se submetia ao veredicto popular, nunca escondeu que sua legitimidade vinha de outro lugar e de mais distante.
[12] Ver: Max Adler, Démocratie et conseils ouvriers [Democracia e conselhos operários], Paris, 1967, pp. 39-44.
[13] Ver nosso artigo: “Démocratie et autogestion” [Democracia e autogestão] em Cahiers de l’autogestion [Cadernos da autogestão], no. 2.
[14] Cadernos da autogestão, no. 5-6.
[15] Citado por Chaulieu. Socialisme ou Barbarie, no. 22, p. 10, nota 5.
[16] Cahiers de l’autogestion, B. 8.
[17] Socialisme ou Barbarie, no. 22, p. 21.
[18] Sobretudo para aqueles que estariam tentados a suspeitar as informações dadas por uma pequena revista marginal e militante, apontamos que podem verificar aquilo que é aqui relatado sobre as novas possibilidades de cálculos econômicos nas mais sábias obras universitárias. Ver, por exemplo, André Piatier, Statistique et observation économique [Estatística e observação econômica], Paris, 1961, t. 2, título III, capítulo IV: “Les tableaux carrés” [As matrizes quadradas], Princípios da análise input-output; a matriz inversa; exemplos simplificados da utilização de matrizes quadradas, etc. pp. 876-919. Ver também H. Guitton, Statistique et économétrie [Estatística e econometria].
[19] W. Leontieff: The Structure on American Economy [A estrutura da economia americana], 1919-1929. Uma aplicação empírica da análise de equilíbrio. Cambridge (Mass.), Harvard University Press 1941, 181 p. – Segunda edição: New York, Oxford University Press, 1951, 264 p. A obra de Leontieff foi traduzida para o francês em 1958 e foi analisada em diversos artigos, principalmente na Revue d’Economie politique [Revista de Economia política], por A. Chabert, (1950), P. Maillet, (1950), J. R. Boudeville, (1953).
[20] Piatier, op. cit., p. 917.
[21] Piatier explica de forma simples a técnica da matriz quadrada: “a agricultura vende à indústria; a indústria, por sua vez, vende à agricultura. Uma matriz quadrada pode agrupar o conjunto dessas relações: lemos, horizontalmente, para cada setor, as entregas feitas a todos os outros, e verticalmente as compras feitas por cada setor a todos os outros.” (op. cit., p. 877). Aqueles que amam as imagens podem imaginar um sistema de bombas de sucção e descarga.
[22] T. Koopmans, Activity analysis of production and allocation [Análise de atividade da produção e alocação], New York, 1951.
[23] Essa expressão fez fortuna; ela é constantemente utilizada por escritores que pensam dar assim à sua pesquisa um toque “científico”, mesmo quando nenhuma ação não foi deduzida de suas especulações. É necessário acrescentar que o objetivo de Koopmans não é somente de tornar uma ação possível, mas de otimizá-la.
[24] Op. Cit., p. 37. Após o artigo de Chaulieu (1957) outras obras apareceram, das quais as duas seguintes são consideradas como de especialistas que entendem de linguagem matemática: L. V. Kantorovitch. – Calcul économique et utilisation des ressources [Cálculo Econômico e utilização de recursos]. Paris, Dunod, 1963 (original: Moscou, 1959). Y. Kornai, Mathematical Planing of Structural Decisions [Planejamento matemático de decisões estruturais], Amsterdam, 1967, (original: Budapeste, 1965). Ver também a bibliografia estabelecida por André Piatier – op. cit. t. II, pp. 917-919.
[25] M. Kende, que prepara uma obra sobre essas questões e que quis também completar nossas informações sobre esse objeto, considera que “nenhuma economia planejada chegou a formalizar o conjunto de suas atividades ao ponto de ser capaz de considerar otimizá-los.” Retornaremos, um pouco adiante, à crítica da usina do plano.
[26] Chaulieu, no artigo sobre o qual relatamos, não utiliza essa palavra.
[27] Piatier, op. cit. p. 904.
[28] A título de exemplo, o coeficiente técnico calculado nos Estados Unidos para a coca-cola na produção de fonte foi:
entrega de coca-cola (em 1000 ton.)
a = ___________________________ = em 1938: 6285/6012 = 1045; em 1958: 12230/11970 = 1022.
produção da fonte (em 1000 ton.)
(De acordo com André Piatier, op. cit., p. 884).
[29] Ver, acima, p. 16, nota 1.
[30] A essas ressalvas de Kende, poderíamos acrescentar aquelas de H. Aujac que coloca em questão “o esquema de interdependência generalizada” pois, de acordo com ele, uma análise mais aprofundada de uma economia nacional destaca as simples relações de dependência, as ações irreversíveis, os canais precisos de propagação de impulsos, “a hierarquia das indústrias em uma tabela de trocas interindustriais” in: Revista econômica, março de 1960, citado por Piatier, op. cit. p. 917. Mas não é nada mais, aparentemente, do que um refinamento e de forma alguma um questionamento da econometria.
[31] A tese marxista de uma certa naturalização pelos monopólios foi sustentada desde 1910, por Rudolf Hilferding no Capital financier [Capital Financeiro].
[32] Nos Cahiers de l’autogestion, no. 8, pp. 135-170.
[33] N.T.: Deixar fazer, deixar passar.
[34] Sobre esse assunto, sabemos a fórmula de Marx: a produção cria não só um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto – (Introduction générale à la critique de l’économie politique [Introdução geral à crítica da economia política], (1957), La Pléiade, II, p. 245).
[35] Platão, A República, Livro VI.
[36] Pensamos na fórmula de Marx: o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo na cera. (Le Capital [O Capital], terceira seção, capítulo VIII. Bibliothèque de la Pléiade, II, p. 726).
[37] Sobre esse assunto, podemos apontar que no seu último livro: Le vif du sujet [O cerne da questão], Edgar Morin imagina que podemos todos dispor de um cérebro eletrônico auxiliar, dotado de uma memória fantástica da qual poderíamos pensar as informações e graças às quais sem dúvidas – embora ele não especifique – poderíamos efetuar rapidamente cálculos complexos.
[38] Os apoiadores do “monarca esclarecido” ou de minorias dirigentes (direção coletiva) não deixarão de afirmar que muitas vezes “o povo”, como a criança, é ignorante do seu próprio bem. Mas, o que é necessário acrescentar é que a educação fornecida tem como principal função perpetuar essa infância política que, em si, não possui nada de uma essência metafísica.
[39] Poderíamos, particularmente, observar que se a sociedade humana chegasse assim a se autogerir, seria imediatamente o fim da história, a passagem da “sociedade aberta” à “sociedade fechada” ou, para utilizar as formas que estão na moda, as formigas e os cupins. Mas, infelizmente!, esse perigo está longe de ser imediato, e por que a humanidade não resolveria os problemas que ela foi capaz de se colocar?
Traduzido por Breno Teles, a partir da versão disponível em: https://archivesautonomies.org/IMG/pdf/autogestion/autogestion/autogestion-n09-10.pdf.
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