Sobre a questão dos partidos – Anton Pannekoek

Sobre a questão dos partidos[1]

Introdução por Fredo Corvo

O seguinte texto apareceu em 1932 no Persdienst van Internationale Communisten [Serviço de Imprensa dos Comunistas Internacionalistas] (ano V, nº 7, maio de 1932) como uma contribuição anônima de Anton Pannekoek à discussão posterior à expansão da Kommunistische Arbeiter Union Deutschlands [União Operária Comunista da Alemanha] (KAUD). Historicamente superado pelo desaparecimento dos resquícios do KAPD e das Unionen, como aqueles do movimento operário revolucionário do qual estas organizações haviam surgido, o texto contém muito conceitos teóricos que são úteis na discussão de hoje sobre a questão do partido. Em outras circunstâncias históricas, as velhas questões que Pannekoek levanta aqui têm que ser reconsideradas e reavaliadas. Isto é ainda mais verdadeiro para suas especulações de que os partidos podem propagar interesses diferentes dentro da classe trabalhadora após a revolução. Contra esta ideia, nós devemos nos lembrar das palavras do Manifesto Comunista: “Os comunistas (…) ressaltam e fazem valer os interesses em comum de todo o proletariado (…) eles sempre e em todos os lugares representam os interesses do movimento como um todo[2]”.

Fredo Corvo, 2018


O partido como um grupo central

Entre os grupos que consideram a organização de conselhos como o órgão da classe trabalhadora para a revolução proletária e que consideram o método de luta parlamentarista e aquele do movimento sindical como ultrapassados e ineficientes, ainda há diferenças importantes, principalmente em relação à questão do partido.

Ao expor isto, não há por que classificar uma tendência ou outra como um grupo de nenhuma importância. Nós sabemos com que frequência outros movimentos que começaram como grupos insignificantes conquistaram o mundo porque seus princípios eram corretos e estavam alinhados às necessidades da época. Então, a questão aqui é examinar os princípios, não se os representantes são numerosos ou não.

Contudo, primeiro é necessário definir o que deve se entender por partido. Os velhos partidos no sentido estrito (SDAP [Sozialdemokratische Arbeiters Partei; Partido Operário Socialdemocrata] e também o CPH [Partido Comunista Holandês]) são partidos políticos, primeiramente preocupados com a ação parlamentar; de acordo com seu programa, eles querem obter poder político como partido e então governar no lugar de outros partidos burgueses através do aparato estatal. A ação política parlamentar é o elemento central; todo outro tipo de ação é secundária ou subordinada a ela. Nada disso se aplica aos partidos revolucionários (como o KAPD [Kommunistische Arbeiter Partei Deutschlands; Partido Comunista Operário da Alemanha], na Alemanha) que não querem nada com o parlamentarismo. O que sobra, então, é isso: assim como os partidos mencionados tinham seu programa, seu objetivo e seus princípios determinados, eles querem (partindo de certos princípios e fundações) liderar ou promover a luta de classes do proletariado pelo comunismo. Um partido assim, portanto, só pode ser um grupo central, não a classe trabalhadora em si; ele pode conter apenas aqueles elementos para quem os princípios são convicções firmes que eles internalizaram com base em conhecimento científico e numa compreensão mais amplos. O fato de este conhecimento se basear principalmente na doutrina do marxismo é evidente, mas não quer dizer muita coisa já que partidos como o SDAP e o CPH também recorrem ao marxismo, ainda que o primeiro o faça em um sentido mais limitado. Eles creem que o partido é necessário como uma organização dos trabalhadores mais educados, mais conscientes de classe e mais lúcidos que mostram às massas o caminho correto da luta, que as lideram, que elaboram os princípios e as táticas e que retêm o princípio revolucionário em todos os altos e baixos do movimento. Em todo grande movimento de classe, num primeiro momento, apenas alguns, apenas pequenos grupos e minorias agem; os mais ativos e os mais capazes surgem e se tornam os líderes quando, mais tarde, as grandes massas os acompanham. Estas massas, inexperientes, teriam que passar por todas as avenidas de erro e ilusão se não fosse o discernimento e a experiência do grupo central para encurtar seu caminho. O partido, segundo esta visão, forma, por assim dizer, o cérebro da classe, isto é, em discussões de partido suas mentes mais capazes deliberam sobre as táticas a serem seguidas e outros problemas; ele fornece a literatura necessária para educar as massas; ele continua permanente quando as massas voltam à passividade.

Aqui o contraste é dado do partido para a classe como um todo. Na prática, contudo, deve se lidar com outra contradição. Uma grande parte da classe se dedicou à luta pelos interesses tangíveis imediatos sem se apoiar sobre os fundamentos do partido. Esta foi, portanto, uma organização intermediária, menor e mais avançada do que a classe como um todo, maior e menos orientada para os objetivos que o partido. É assim que os sindicatos se opunham ao partido socialista. Aqui, o Partido se impôs a mesma tarefa, a de agir de um modo condutor e direto sobre a base do princípio socialista. Porém, aqui, a resistência e a fricção veem à tona, já que a organização sindical se considera como um grupo central que esperava, de seu lado, conquistar e liderar massas ainda maiores e que pensava que podia fazer isto melhor quanto menos estivesse sobrecarregado com princípios socialistas e se estivesse exclusivamente focado em melhorias dentro do capitalismo.

Agora o que restava dos anos revolucionários na Alemanha era o KAPD como um partido e a AAUD [Allgemeine Arbeiter-Union Deutschlands; União Geral dos Trabalhadores da Alemanha] como uma organização maior. A última, como uma reunião de organizações na empresa, era uma organização de união de acordo com a classe, não segundo princípios comunistas. Portanto, deve se estabelecer aqui uma relação similar: o partido como um grupo central teoricamente formado com base em seu princípio comunista enxerga como sua tarefa liderar e manter as massas menos educadas da Union maior, guiadas apenas por um sentimento elementar de classe, de se perder.

Tudo isto – assim se chama a tendência representada no Programa de Unidade da Union –, tudo ou quase tudo isso, nós reconhecemos como direito. Para nós, também, é válida a necessidade de um grupo central condutor no qual os princípios estão claros. Na realidade, a AAUD não evoluiu para uma organização de massa, mas encolheu para um grupo pequeno. A própria Union é pequena o bastante para ser um grupo central fundamentalmente sólido. Ela já consistia exclusivamente de comunistas educados. Ela não precisa de um partido a seu lado. Por outro lado, o partido, na medida em que ele quer ser exclusivamente um grupo central de princípios, não tem outra função senão a da Union: atividades de educação, discussão de pontos de discordância, elaboração de diretrizes. Então apenas uma diferença de nome.

Mas nós não deveríamos manter a Union aberta como um tanque coletor para uma futura organização de massa? Quando a necessidade de uma organização assim surgir, ela se formará, não importa sob qual nome. Contudo, não é provável que ela seja formada por um ingresso maciço na AAUD. Quando tensões e movimentos revolucionários surgirem do choque de eventos importantes, incitando os trabalhadores à luta em massas maiores, é mais provável levar à formação de novos grupos do que a afiliação a grupos mais velhos. Os grupos existentes estão todos sobrecarregados com certa tradição, com programas formulados que estas massas ainda não entendem; estas massas querem lutar sem aceitar outro partido ou programa de grupo, sem se filiar a um grupo existente. Pois, nestes grupos, contradições e rachas tradicionais são incorporados; pelo contrário, eles querem demonstrar sua nova unidade. Portanto, nesse caso, terá que se contar mais com a formação de novas organizações de massa do que com o ingresso em organizações existentes.

A relação do grupo central com essas organizações maiores, contudo, quando elas são formadas, também não corresponderá à relação do velho partido com o sindicato. Para o sindicato, o objetivo era obter melhorias dentro do capitalismo; para os novos grupos de massa, o objetivo é a luta revolucionária. Ali, a natureza imperfeita, não radical, sem princípios e de cabeça fechada da luta teve que se congelar em um atraso permanente; aqui, ela só pode ser um estado de transição temporário no autodesenvolvimento revolucionário das massas. Em épocas de desenvolvimento revolucionário, a falta de clareza dos objetivos e a falta de uma convicção comunista consistente são um fato natural e inevitável das massas em luta, mas eles não podem ser o programa permanente e a organização de massa permanente.

É claro, nestas massas, o desenvolvimento não ocorre igualmente e todo de uma vez e da mesma maneira. Em todos os lugares nas empresas surgirão minorias e as pessoas mais ativas e combativas incitarão, por iniciativa própria, o todo. Mas não devemos nos iludir que estes grupos mais amplos, que nascem da própria luta, serão uma organização intermediária especial ligada à Union ou que adere a ela; menos ainda que a Union possa fundá-las antecipadamente. Elas virão de todos os tipos de organizações atuais; sabe-se bem que aqueles que surgem em meio à prática da luta são frequentemente pessoas muito diferentes daquelas que estavam na vanguarda na preparação. Quando a Union exerce sua influência sobre elas, ela age, então, da mesma maneira que age sobre toda a classe.

Quando nós falamos da necessidade de um grupo central, de uma vanguarda, não se pensa ela como oposta a uma organização maior, mas como oposta a toda a classe. A luta revolucionária pela libertação só pode ser levada a cabo pela classe inteira, dividida nas empresas de acordo com sua coerência natural. Pois é verdade que ela entre na luta sem uma visão clara, ainda não premonitória, incitada pela carência e pela necessidade; a vanguarda tenta incutir nela a experiência e o discernimento obtidos por gerações anteriores de lutadores. Frequentemente as massas que estão despertando, confusas com os slogans conflitantes de muitos lados, estão preparadas para tomar os caminhos errados; o grupo central tenta trazer à tona suas intuições de classe, seu interesse claramente revolucionário e torná-las conscientes. Na decadência e na derrota, o movimento de classe pode se recuperar; o grupo comunista deve manter suas melhores forças unidas.

Nós concordamos, portanto, com o reconhecimento da necessidade de um grupo central com princípios, formado por marxistas, que pode ser mais tarde chamado de partido ou não. No entanto, há uma diferença, pois, para momentos revolucionários, nós não compartilhamos da opinião de que uma organização de luta enorme e não comunista deve estar a seu lado e ligada a ele, pertencente a ele, como se pensou, em 1924, a AAUD ao lado do KAPD e especialmente porque, em nossa opinião, a massa em luta dentro da qual a vanguarda atua não será uma organização isolada, mas sim a classe trabalhadora como um todo, em seu agrupamento na empresa.

O Partido como o Líder da Classe

“Não foram os conselhos operários que fizeram a revolução, mas sim o Partido Bolchevique”.

No entanto, existe mais do que apenas uma diferença de nome. O nome contém um bocado de tradição e, como tal, é a expressão de determinadas formas organizacionais e certo objetivo.

A essência do partido inclui uma forte liderança central para garantir a maior unidade de ação possível. O partido é uma organização fechada cujos membros, partindo dos mesmos princípios, pensam em grande medida igual e estão ligados por uma forte disciplina às táticas prescritas pelo partido. As táticas do partido, as quais determinam suas ações, são estabelecidas cuidadosamente por discussão intensa, na convicção de que o futuro do movimento operário depende delas. Isto seria desnecessário se o partido fosse meramente uma associação de propaganda; quando é uma questão de dar uma clareza maior às massas, uma grande variedade das visões apresentadas a elas as levará a seu próprio pensamento crítico ao invés de uma única posição partidária bem definida. Mas isso se torna compreensível quando o partido busca não só educar, mas também liderar as massas. Para liderar as massas adequadamente, e não para um atoleiro ou a um Putsch [golpe de Estado], todas as mentes mais brilhantes do partido devem desenvolver com perspicácia as táticas que o partido seguirá. Ademais, é então necessário que as massas o sigam com convicção, que elas reconheçam claramente a retidão de seu trabalho e não se deixem confundir pela grande variedade de visões contraditórias.

Para os partidos parlamentares, é uma questão de conquistar e liderar as massas no campo cotidiano por pontos de disputa parlamentares; o partido revolucionário, por outro lado, se esforça para conquistá-las e liderá-las na revolução. Para os primeiros, a democracia sufragista burguesa é o órgão destas massas; para os últimos, os conselhos operários revolucionários constituem este órgão. Mas a relação do partido com as massas reteve o mesmo caráter em ambos os casos.

Existem, é claro, argumentos de peso em favor desta posição. Não se deve ter ilusões quanto às massas proletárias. Quando elas entram na revolução, hesitantes e cheias de dúvida, uma liderança forte é necessária. Em novembro de 1918, as massas na Alemanha, como “conselhos operários”, elegeram os líderes social-democratas e, assim, elas estavam à mercê da democracia burguesa. E se houvesse um partido revolucionário poderoso? Talvez um partido revolucionário deva ficar de lado sem intervir, obedecendo respeitosamente à “maioria” dos conselhos operários, quando a última, por incapacidade, arruína a luta? O partido deve intervir e deve liderar para salvar a revolução. A história nos ensina que sempre foram as minorias enérgicas que lutaram pela ou defenderam a vitória pelo coletivo, a maioria passiva da classe. “Não foram os conselhos operários que fizeram a revolução, mas sim o Partido Bolchevique”, escreveu há pouco o KAZ [Kommunistische Arbeiterzeitung; Jornal Operário Comunista, jornal do KAPD] como uma ilustração desta tese. A consequência foi, portanto, que o Partido Bolchevique tomou o poder; no início, os conselhos operários, os sovietes, ainda eram convocados algumas vezes para sancionar os atos do governo, mas, depois, o eram cada vez menos.

Contagem ou Medição?

Agora, deve se observar primeiro que na representação da “maioria” dos conselhos operários estes órgãos da revolução foram sobreparlamentarizados. Nas grandes lutas decisivas da história mundial, nunca se tratou de uma simples “contagem” de votos; se tratava de poder contra poder. Nem toda pessoa era um número igual, mas cada uma delas era uma força diferente. Nessa luta, a determinação, a habilidade e a energia dos indivíduos estão envolvidas; os inflamados arrastam junto os desanimados, então minorias ávidas conquistam vitórias sobre maiorias hesitantes; então as posições de poder econômico frequentemente exercem uma grande dose de influência. É possível que rejeitem isto como antidemocrático, mas para quê? Tempestades sociais estão tão além do julgamento moral quanto as tempestades naturais. Além disso, seria um democratismo equivocado: na grande tarefa histórica do proletariado, todos têm que carregar segundo suas forças, assim, os mais fortes também carregam mais. Portanto, quando em momentos críticos decisivos uma vanguarda salta para ocupar esse espaço, evita uma derrota ameaçadora, retém a vantagem obtida, então não é necessário dizer que isto não infringe os direitos iguais para todos.

Porém, também nas próprias votações são expressos os fatores reais de poder e o equilíbrio de poder. Com que frequência, em períodos conturbados, os parlamentares votaram contra suas próprias convicções sob a pressão ameaçadora das “ruas”? Quando os conselhos operários votam em períodos revolucionários, as forças motrizes como um todo expressarão o que está vivo nas massas e no indivíduo. Então aqui, novamente, qualquer força pessoal pode exercer influência.

Portanto, não se trata de uma ansiedade receosa quanto à democracia formal quando rejeitamos a tese da liderança pelo partido. É o reconhecimento de que a classe trabalhadora não pode ser libertada, mas de que ela tem que libertar a si própria. Para a libertação do proletariado, não basta que surja uma minoria do proletariado e que ela ocupe o lugar da burguesia para assumir as rédeas, para governar no interesse do proletariado. Isso seria depois um obstáculo na estrada da libertação completa.

Qualquer tática que esteja fundamentada na incompetência e na imaturidade do proletariado do momento está fora de questão, pois ela negligencia, para o sucesso atual, a base de um poder de classe duradouro. Uma tática que repouse sobre o contraste entre um partido chamado à liderança e as massas que o seguem, lideradas pelo partido, deve ser rejeitada por dois motivos. Primeiro, porque desta maneira nem todas as forças no proletariado se desenvolverão. Quando outros pensam e agem pelo proletariado, quando ele próprio não é forçado a fazer o maior esforço de todas as forças espirituais e morais, ele nunca alcançará o supremo autodesenvolvimento que é a essência, o propósito e a proteção da revolução.

Quando o proletariado acredita enxergar um caminho mais fácil do que o da autolibertação, ele tenta seguir esta estrada. Ele depende, então, das qualidades pessoais dos líderes; ele segue com confiança a liderança de um partido que, afinal, frequentemente obteve sucesso em pequenas questões. Mas ele ficará decepcionado. Isto porque, e este é o segundo motivo, nenhum partido, não importa quão grande ou quão bem organizado, pode derrotar a burguesia. Apenas o próprio proletariado pode fazer isso.

O Poder de Classe da Burguesia e o Poder de Classe dos Trabalhadores

Os porta-vozes do partido, que se sentem elevados acima das massas ignorantes e passivas por causa de seu discernimento, sempre subestimam o poder da burguesia. Este poder é enorme, primeiro de tudo, por causa da enorme propriedade desta classe, que transforma tudo em mercadoria, controla tudo, compra tudo e que é capaz de, assim que a necessidade exigir, mobilizar meios de violência incríveis em defesa de sua dominação. Segundo, por seu instinto de dominação refinado, que sempre percebe onde deve resistir e onde deve produzir e como toda derrota pode ser transformada em seu oposto por táticas habilidosas. Uma burguesia velha como a inglesa, por exemplo, aprendeu isto muito bem e a alemã já está começando a aprender. Terceiro, através do poder espiritual de sua cultura, que permeia toda a sociedade, une toda a classe média à burguesia e por meio de cem canais, como um bom veneno, inclusive afeta a classe trabalhadora e prejudica seu desenvolvimento. Os social-democratas estiveram acostumados por trinta ou quarenta anos a criticar a impotência da burguesia em governar, a criticar sua estupidez, a expor o desespero do capital. E qual é a conclusão? A burguesia tem todos em uma coleirinha. Porque eles acreditavam que eles podiam prevalecer com o poder do partido ao invés do poder de classe. E nós podemos dizer que os porta-vozes e líderes de hoje tem qualidades maiores? Alguns, como nós, aprenderam no máximo um pouco (da classe trabalhadora).

Portanto, o exemplo russo não pode ser usado aqui. Havia, na Rússia, uma burguesia fraca e um proletariado fraco, uma maioria esmagadora de camponeses e um aparato governamental totalmente inadequado que havia deixado suas marcas. Isto permitiu que o Partido Bolchevique, preparado para isso por uma seleção cuidadosa e uma centralização cuidadosa, tomasse a liderança da revolução e estabelecesse um novo regime. Mas mesmo aqui houve momentos, como imediatamente após a revolução de novembro, quando os líderes de partido estavam desesperados perante o exército que avançava e os trabalhadores de Petrogrado, diretamente da força de sua classe, salvaram a situação.

Mas esses porta-vozes não fizeram menos que subestimar o poder do proletariado. Se a burguesia na Europa Ocidental e nos Estados Unidos é diferente do que ela era na Rússia, a classe trabalhadora também é completamente diferente. Desde os primeiros séculos de uma existência pequeno burguesa, ela herdou energia e independência pessoal. Durante o século seguinte, sob a pressão da burguesia, ela passou pela escola da grande indústria, das máquinas, o que desenvolveu as forças sociais da cooperação. Ela ainda não pode enfrentar a burguesia; as forças morais e espirituais necessárias para isto só surgirão na revolução. Mas as condições estão postas e as predisposições estão lá e esta é a base da confiança da revolução. Mas o proletariado da Europa Ocidental e dos Estados Unidos encaram uma tarefa infinitamente maior e mais difícil que qualquer outra classe já teve que realizar. É de se estranhar, então, que ela hesite e tente evitar uma decisão o maior tempo possível? A própria impaciência de uma vanguarda pode não ser representativa da maturidade das relações; o escárnio e a zombaria a respeito da passividade das massas não são provas de seu próprio discernimento superior, mas sim de uma falta de discernimento.

A tarefa não parecerá tão enormemente difícil para um partido, pois o domínio de um partido, mesmo que se baseie na classe trabalhadora, ainda não representa uma ruptura tão completa com o passado. É como o líder conservador Delbrüch escreveu algumas décadas atrás, na época de uma importante vitória eleitoral da social-democracia. Este avanço das massas seria perturbador se eles não tivessem líderes. Mas com líderes é possível se chegar a um acordo, eles são pessoas como nós, que também só cozinham com água[3].

Um novo domínio de classe na forma de um governo de novos líderes – pois, já que o partido “lidera” a classe, então um pequeno grupo de líderes de partido lidera, por sua vez, o partido – é bastante diferente do autogoverno das massas.

A Luta Contra a Ditadura do Partido

Um domínio de partido assim poderia surgir de um movimento revolucionário como a primeira fase. Então, seria apenas o começo da real luta pela autolibertação do proletariado. Comunistas revolucionários sempre se relacionarão com ela com base no seguinte: apoiarão qualquer movimento de classe real a despeito de sua liderança atual, mas dentro do movimento defenderão a autodeterminação da classe como seu interesse comum principal. Em um proletariado moderno, forças poderosas em breve se rebelarão contra uma liderança de partido, mas elas são precisamente os elementos construtivos do futuro. Elas são as qualidades mais valorosas para a revolução, que devem ser apoiadas e promovidas tanto quanto possível.

Assim: uma vanguarda que se constitui como um partido e se separa da classe a fim de construir o poder do partido e assim ser capaz de liderar a classe bem não usa suas forças da maneira mais valorosa para o proletariado. Esta última ocorre apenas quando a vanguarda volta às massas repetidas vezes, permite que toda sua força beneficie toda a classe de modo que o poder da classe é intensificado. A própria organização de alguém, na qual discussões, estudos, propaganda e deliberações são conduzidas, é, então, a fonte da qual cada indivíduo retira de novo e de novo – especialmente em tempos de revezes – as forças morais e intelectuais das quais ele precisa em seu trabalho.

O Partido como um Grupo de Opinião

O partido é visto aqui em primeiro lugar como um grupo central e em segundo lugar como o líder da classe. No entanto, o nome tem um terceiro sentido: como um grupo de opinião, como uma organização daqueles que sustentam visões similares a respeito de questões sociais.

Especialmente na França antes da guerra, o partido social-democrata como uma organização de opinião e o sindicato como uma organização de classe foram contrastados. Na França pequeno-burguesa, na qual o intelecto burguês e os grupos burgueses eram representados em grandes números no partido-social democrata, era óbvio que não se enxergava o partido social-democrata como representando o proletariado, mas somente como um grupo de concepções socialistas similares; o sindicato era a organização pura da classe trabalhadora. Na Alemanha, esta visão nunca encontrou ressonância, pois nessa época o partido social-democrata era uma representação essencial do proletariado, por sua composição bem como por suas políticas.

Agora isto mudou na medida em que, embora o SPD ainda inclua as massas mais amplas, outros partidos e grupos aparecem ao seu lado, todos os quais creem e afirmam que são os verdadeiros representantes do proletariado. E todos estes contam com a revolução; se a classe trabalhadora se erguer apenas uma vez, ela se juntará a nós. Se todos eles aceitam isso, então quer dizer que nenhum deles é automaticamente em virtude de sua origem ou de sua posição o partido operário. Todos eles são grupos de opinião, grupos de concepções diferentes a respeito do desenvolvimento da sociedade e da tarefa do proletariado. A Union é um deles. E eles terão todos de lutar entre si pela alma do trabalhador.

Às vezes se supõe que a classe trabalhadora, assim que ela se libertar da influência egoísta dos partidos que a controlam e que competem por influência sobre ela, facilmente encontrará e manterá o caminho da luta de classes clara e unida. Em certa medida isto está correto; quando ela encontrar pela primeira vez sua unidade como classe nas empresas sem consideração pela afiliação organizacional e lutar como uma unidade, terá se dado um grande passo para fora da confusão e da fraqueza na direção da luta consciente. Mas surgirão grandes dificuldades com a grande luta em si. Sempre surgirão novas resistências e incertezas, as massas sempre enfrentarão novos problemas sobre como agir; diferenças de opinião provocarão repetidamente rixas mútuas.

Embora no começo de um movimento revolucionário todas as diferenças pareçam ter sido resolvidas, novas diferenças logo surgirão. Não estamos falando aqui dos poderes burgueses que só aparentemente foram derrubados, que ressurgem e avançam novamente. Assim como em novembro de 1918, toda a burguesia tornou-se vermelha a fim de ser capaz de ressuscitar ainda melhor mais tarde, assim, em uma revolução operária que entrou em erupção, a social-democracia será naturalmente revolucionária e radical a fim de conseguir conter o movimento mais adiante. Isso não quer dizer nada senão que apenas no decorrer da revolução o proletariado pode se libertar gradualmente dos poderes do passado. Aqui, contudo, nós falamos das diferenças que se encontram dentro do próprio proletariado. Elas surgem apenas porque, em situações constantemente novas, novas exigências são feitas e a oposição de um inimigo poderoso exige as decisões mais difíceis.

Elas também surgem de diferenças de interesse dentro do próprio proletariado. A classe trabalhadora moderna é dividida em diferentes camadas, desde a indústria gigantesca até as menores oficinas, desde a escravidão mecânica mais opressora e sem espírito até o trabalho profissional mais irritante, aqui ainda vivendo em relações naturais primitivas como a agricultura, ali trabalhando com tecnologia altamente científica; em todos os lugares as relações vitais e as maneiras de pensar são diferentes, apesar de todos eles terem basicamente o mesmo principal interesse proletário. Então, imediatamente após as primeiras vitórias, surgirão questões como aquela da relação com outras camadas, com os camponeses, com os intelectuais e com questões relativas à continuidade da produção e à continuidade da luta.

Não é preciso dizer que nesta luta de opiniões, pessoas com a mesma opinião se unem em grupos ou “partidos” a fim conduzir melhor a luta por suas opiniões. Esta luta é necessária para o progresso espiritual que acompanha e apoia o desenvolvimento da revolução. Não se pode prever no momento como estes grupos serão formados, como tendências que hoje estão unidas então racharão e os adversários de hoje se juntarão. A única coisa que importa é que não vejamos o desenvolvimento futuro de maneira muito simplista; e que nós deixemos, portanto, que nossos agrupamentos de hoje sejam determinados pela oposição e as demandas de hoje. Nos parece que as diferenças no movimento Unionen são muito mais tradições do passado do que um começo de contradições futuras reais e que isso vale para círculos muito distantes, agora separados. De modo que também não é necessário deixar qualquer partido diferente aberto a atividades de partidos de oposição dos membros da Union; seu pertencimento à Union, sua concordância com os princípios da Union é sua “posição de partido” essencial. Então, quando parece que nós passamos de um período de fragmentação crescente para um de unificação crescente, isto não exclui que com a evolução do movimento, novas diferenças que poderiam ser chamadas de “tendências” ou de “partidos” podem surgir no movimento Union ou a seu lado. Logo: partidos neste sentido devem sempre existir no desenvolvimento dinâmico do movimento de classe como a expressão da luta espiritual dentro do movimento.


[1] A tradução do presente artigo de Anton Pannekoek foi realizada a partir da tradução de Fredo Corvo para o inglês (ainda não publicada). Nela, adaptamos notas de rodapé que indicavam nomes de partido para o corpo do texto entre colchetes a fim de facilitar a leitura. O original em holandês pode ser acessado em: OVER HET VRAAGSTUK VAN DE PARTIJEN [N. T.]

[2] Essa passagem do capítulo 2 do Manifesto Comunista foi traduzida a partir da tradução para o inglês do próprio Corvo. No alemão (MEW Band 4, Berlin, Dietz Verlag, 1977), p. 474. [N. T.]

[3] Pannekoek emprestou essa expressão do alemão “auch nur mit Wasser kochen”, que possui o sentido de “precisar das mesmas coisas para fazer algo, não ter ou não ser nada de especial, não ser mais capaz que os outros”, algo bastante similar ao “gente como a gente” do português. [N. T.]

Traduzido por Thiago Papageorgiou.