O Conceito Marxista do Homem – Erich Fromm

Transcrito por Elcana Silva. O presente texto foi retirado da obra O Conceito Marxista de Homem, Erich Fromm, publicada pela Editora Zahar, 1967.

Capítulo I – A Adulteração dos Conceitos de Marx

Uma das estranhas ironias da História é não haver limites para os erros de interpretação e as deturpações das teorias, mesmo numa época de acesso irrestrito às fontes; não há exemplo mais drástico desse fenômeno do que o acontecido com a teoria de Karl Marx nos últimos decênios. São constantes as referências a Marx e ao marxismo na imprensa, nos discursos de políticos, em livros e artigos escritos por respeitáveis cientistas sociais e filósofos; no entanto, com poucas exceções, parece que os jornalistas e políticos jamais viram sequer de relance uma linha escrita por Marx e que os cientistas sociais se satisfazem com um mínimo de conhecimento da obra dele. Aparentemente sentem-se a salvo em seu papel de peritos no assunto, visto como ninguém com poder e status no campo da pesquisa social contesta suas afirmações ignaras[1].

Dentre todas as incompreensões existentes, provavelmente a mais disseminada é a ideia sobre o “materialismo de Marx. Alega-se ter sido opinião de Marx que a suprema motivação psicológica do homem é seu desejo de vantagem monetária e conforto, e que este anelo pelo lucro máximo constitui o principal incentivo em sua vida pessoal e na vida da raça humana. Complementando esta ideia, há a suposição igualmente difundida de ter Marx negligenciado o valor do indivíduo; dele não ter respeito nem compreensão das necessidades espirituais do homem, e de ter sido seu “ideal” a pessoa bem nutrida e bem vestida, porém, “sem alma”. Sustentou-se que as críticas feitas por Marx à religião equivaliam à negação de todos os valores espirituais, e isso pareceu bem mais evidente aos que julgam ser a crença em Deus a base de qualquer orientação espiritual.

Esta opinião acerca de Marx prossegue para examinar seu paraíso socialista como um lugar onde milhões de pessoas se submetem a uma burocracia estatal todo-poderosa, pessoas que renunciaram à sua liberdade, ainda que possam ter alcançado a igualdade; esses “indivíduos” materialmente satisfeitos perderam sua individualidade e foram devidamente transformados em milhões de robôs e autômatos uniformes, dirigidos por uma pequena elite de líderes mais bem alimentados.

Basta dizer, desde logo, que esta imagem popular do “materialismo” de Marx – sua tendência antiespiritual, seu desejo de uniformidade e subordinação – é inteiramente falsa. A meta de Marx era a emancipação espiritual do homem, sua libertação dos grilhões do determinismo econômico, sua reintegração como ser humano, sua aptidão para encontrar unidade e harmonia com seus semelhantes e com a natureza. A filosofia de Marx foi, em linguagem secular, não-teística, um novo e radical passo à frente na tradição do messianismo profético: ele visava à plena realização do individualismo, exatamente o objetivo que presidiu ao pensamento ocidental desde o Renascimento e a Reforma até a época bem avançada do século XIX.

Este quadro, sem dúvida, deve chocar a muitos leitores, em face de sua incompatibilidade com as ideias acerca de Marx a que tem sido expostos. Antes de continuar para substanciá-lo, porém, quero ressaltar a ironia existente no fato de a descrição feita da meta de Marx e a do conteúdo de sua visão de sociedade ajustarem-se quase exatamente à realidade da sociedade capitalista ocidental dos dias de hoje. A maioria das pessoas é motivada por um desejo de maiores ganhos materiais, conforto e aparelhos de toda sorte, e esse desejo só é restringido pelo desejo de segurança e de evitar riscos. Elas ficam cada vez mais satisfeitas com uma vida regulamentada e dirigida, tanto na esfera da produção quando na do consumo, pelo Estado e grandes empresas e pelas respectivas máquinas burocráticas; elas chegaram a um grau de conformismo que eliminou o individualismo em grande parte. Elas são, para empregar a expressão de Marx, impotentes “homens-mercadorias” que servem a máquinas viris. O próprio retrato do capitalismo do século XX é difícil de ser distinguido da caricatura do socialismo marxista desenhada por seus opositores.

O que é ainda mais surpreendente é o fato de as pessoas, que acusam Marx mais amargamente de “materialista”, atacarem o socialismo por ser visionário ao não reconhecer que o único incentivo eficaz para o homem trabalhar reside em seu desejo de ganhos materiais. A ilimitada capacidade do homem para negar contradições flagrantes por meio de racionalizações, desde que lhe convenha, dificilmente poderia ser melhor demonstrada. As mesmíssimas razões alegadas como prova das ideias de Marx serem incompatíveis com nossa tradição religiosa e espiritual, e empregadas para defender nosso sistema atual contra Marx, são ao mesmo tempo usadas, pelas mesmas pessoas, para provar que o capitalismo corresponde à natureza humana e, portanto, é bem superior a um socialismo “visionário”.

Procurei demonstrar a total falsidade desta interpretação de Marx, bem como que a teoria dele não admite a vantagem material como principal motivação do homem; que, além disso, a própria meta de Marx é libertar o homem da pressão das necessidades econômicas, de modo a poder ser completamente humano; que Marx está fundamentalmente interessado na emancipação do homem como indivíduo, na superação da alienação, na restauração da capacidade dele para relacionar-se inteiramente com seus semelhantes e com a natureza; que a filosofia de Marx constitui um existencialismo espiritual, em linguagem secular e, por força desta qualidade espiritual, opõe-se à prática materialista e à tenuemente disfarçada filosofia materialista de nossa época. A meta de Marx, o socialismo baseado em sua teoria do homem, é essencialmente o messianismo profético expresso em linguagem do século XIX.

Como pode, então, a filosofia de Marx ser tão completamente mal interpretada e deformada? São diversas as razões. A primeira e mais óbvia é a ignorância. Afigura-se que, não sendo esses assuntos ensinados nas universidades e, por conseguinte, não sujeitos a exames, dão margem de “liberdade” para todos pensarem, escreverem e falarem como bem entendem e sem qualquer conhecimento de causa. Não há propriamente autoridades consagradas aptas a insistir no respeito pelos fatos e na verdade. Daí todos acharem-se com direito a falar de Marx sem o haverem lido ou, pelo menos, sem o haverem lido suficientemente para obter uma ideia de seu sistema de pensamento, deveras complexo, intricado e sutil. Em nada melhorou a situação o fato de os Manuscritos Econômicos e Filosóficos, a principal obra filosófica de Marx dedicada a seu conceito do homem, de alienação, de emancipação etc., não ter sido senão até bem pouco traduzidos para o inglês[2], e por isso serem desconhecidas do mundo de língua inglesa algumas de suas ideias. Este fato, todavia, não é de forma alguma suficiente para explicar a ignorância predominante: primeiro, porque, não ter sido essa obra de Marx traduzida antes para o inglês, é em si mesmo tanto sintoma como causa da ignorância; segundo, porque a orientação principal do pensamento filosófico de Marx é bastante clara nos trabalhos anteriormente publicados em inglês para evitar a adulteração ocorrida.

Outra razão consiste em terem os comunistas russos se apropriado da teoria de Marx e tentado convencer o mundo de que sua prática e teoria obedeciam às ideias dele. Malgrado o oposto seja a verdade, o Ocidente aceitou as alegações da propaganda deles e admitiu que a posição de Marx corresponde à opinião e à prática russas. Não obstante, os comunistas russos não são os únicos culpados da má interpretação de Marx. Embora o desprezo brutal dos russos pela dignidade individual e pelos valores humanistas seja, de fato, específico deles, o erro de interpretar Marx como propositor de um materialismo econômico-hedonista também foi compartilhado por muitos dos socialistas anticomunistas e reformistas. Não é difícil perceber as razões disso. Conquanto a teoria de Marx fosse uma crítica ao capitalismo, muitos de seus adeptos estavam entranhadamente impregnados do espírito do capitalismo que interpretaram o pensamento de Marx nas categorias econômicas e materialistas vigentes no capitalismo contemporâneo. Com efeito, apesar de os comunistas soviéticos, assim como os socialistas reformistas, acreditarem ser inimigos do capitalismo, conceberam o comunismo – ou socialismo – segundo o espírito do capitalismo. Para eles o socialismo não é uma sociedade humanamente diferente do capitalismo, mas, antes, uma forma de capitalismo em que a classe trabalhadora tivesse atingido uma posição superior; ele é, como Engels certa feita observou ironicamente, “a sociedade de hoje em seus defeitos”.

Até aqui, abordamos razões racionais e realistas para a deturpação das teorias de Marx. É inegável, contudo, haver também razões irracionais que ajudaram a produzir tal distorção. A Rússia Soviética tem sido encarada como a própria encarnação de todo o mal; daí terem suas ideias assumido a qualidade do que é diabólico. Tal e qual em 1917, quando dentro de relativamente pouco tempo o Kaiser e os “Hunos” foram olhados como a corporificação do mal, e até a música de Mozart se tornou parte do território do diabo, assim também os comunistas tomaram o lugar do diabo e suas doutrinas não são examinadas com objetividade. A razão geralmente dada para este ódio é o terror praticado por Stalin durante muitos anos. Há sérias razões, contudo, para por em dúvida a sinceridade desta explicação; os mesmos atos de terror e desumanidade quando praticados pelos franceses na Algéria, por Trujillo em São Domingos, por Franco na Espanha não provocam nenhuma indignação moral equivalente; de fato, nenhuma indignação. Outrossim, a mudança do sistema de terror irrefreado de Stalin para o reacionário Estado policial de Kruschev recebeu insuficiente atenção, malgrado fosse de imaginar que qualquer pessoa seriamente interessada na liberdade humana perceberia e ficaria feliz com tal mudança, que, embora não suficiente, é um grande melhoramento em relação ao terror indisfarçado da era de Stalin. Tudo isso faz-nos pensar se a indignação contra a Rússia terá deveras suas raízes em sentimentos morais e humanitários, ou antes no fato de um sistema que não admite a propriedade privada ser considerado desumano e ameaçador.

É difícil dizer a qual dos fatores acima mencionados cabe maior responsabilidade pela deturpação e má interpretação da filosofia de Marx. Provavelmente variam de importância conforme a pessoa e o grupo político, e é improvável ser qualquer deles o único fator responsável.

Capítulo II – O Materialismo Histórico de Marx

A primeira barreira a ser vencida, a fim de chegar-se a uma conveniente compreensão da filosofia de Marx, é a interpretação errônea do conceito de materialismo e de materialismo histórico. Aqueles que julgam ser esta uma filosofia segundo a qual o interesse material do homem, seu desejo de ganhos materiais e conforto sempre crescentes, é sua principal motivação, esquecem o fato singelo das palavras “idealismo” e “materialismo”, como são utilizados por Marx e todos os outros filósofos, nada terem a ver com a motivação psíquica de um plano superior e espiritual comparadas com outras de plano inferior e abjeto. Na terminologia filosófica, “materialismo” (ou “naturalismo”) refere-se a uma opinião filosófica segundo a qual a matéria em movimento é o elemento constitutivo fundamental do universo. Nesta acepção, os filósofos gregos pré-socráticos foram “materialistas”, conquanto não o fossem, de forma alguma, no sentido acima mencionado da palavra como juízo de valor ou princípio ético. Por idealismo, pelo contrário, entende-se uma filosofia onde não é o mundo dos sentidos em permanente mutação que constitui a realidade, mas sim essências incorpóreas, ou ideias. O sistema de Platão foi o primeiro sistema filosófico ao qual foi aplicado o nome “idealista”. Se bem que Marx fosse, na acepção filosófica, um materialista em ontologia, ele jamais sequer se interessou por essas questões, e muito menos tratou delas.

Entretanto, há muitas espécies de filosofias materialistas e idealistas, e para compreender o “materialismo” de Marx temos de ir além da definição geral dada acima. Marx, na verdade, assumiu uma posição firme contra um materialismo filosófico corrente entre muitos dos pensadores mais progressistas (especialmente cientistas naturais) de seu tempo. Esse materialismo alegava que “o” substrato de todos os fenômenos mentais e espirituais devia ser encontrado na matéria e em processos materiais. Em sua forma mais vulgar e superficial, este gênero de materialismo ensinava que sentimentos e ideias são suficientemente explicados como resultados de processos da química orgânica, e que “o pensamento era para o cérebro o que a urina é para os rins”.

Marx combateu esse tipo de materialismo mecânico, “burguês”, “o materialismo abstrato da ciência natural, que excluía a História e seus processos”[3], e para seu lugar advogou o que denominou, em Manuscritos Econômicos e Filosóficos, “naturalismo ou humanismo [que] é diferente tanto do idealismo quanto do materialismo, e, ao mesmo tempo, constitui a verdade que os unifica”[4]. De fato, Marx nunca empregou as expressões “materialismo histórico” ou “materialismo dialético”; ele falou, isso sim, de seu próprio “método dialético”, em contraste com o de Hegel, e de sua “base materialista”, pelo que se referia simplesmente às condições fundamentais da vida humana.

Este aspecto de “materialismo”, o “método materialista” de Marx, é que distingue seu modo de ver do de Hegel. Implica no estudo da verdadeira vida econômica e social do homem e da influência do estilo real da vida do homem em seus pensamentos e sentimentos. “Em oposição direta à filosofia alemã”, escreveu Marx, “que desce do céu para a terra, aqui ascendemos da terra ao céu. Quer isso dizer: não partimos daquilo que os homens imaginam, concebem, nem de como são os homens descritos, imaginados, concebidos, a fim de chegar aos homens de carne e osso. Partimos de homens reais e atuantes e, baseados no processo de sua vida real, demonstramos a evolução dos reflexos e ecos ideológicos desse processo vital.[5]” Ou então, segundo ele mesmo diz, de maneira um tanto diversa: “A filosofia da História, de Hegel, nada mais é que a expressão filosófica do dogma cristão-germânico a respeito da contradição entre espírito e matéria, Deus e o mundo… A filosofia hegeliana da História pressupõe um espírito abstrato ou absoluto, que evolui de tal forma que a humanidade é apenas o corpo portador desse espírito, consciente ou inconsciente. Hegel admite uma história especulativa, esotérica, precedendo e existindo subjacente à história empírica. A história da humanidade é transformada em história do espírito abstrato da humanidade, transcendente ao homem real.[6]

Marx escreveu seu próprio método histórico assaz sucintamente: “A maneira pela qual os homens produzem seus meios de subsistência depende, antes de mais nada, da natureza dos meios concretos de que dispõem e tem de reproduzir. Este modo de produção não deve ser considerado como mera reprodução da existência física dos indivíduos. É, antes, uma forma definida de atividade desses indivíduos uma forma definida de expressarem sua vida, um modo de vida definido de parte deles. Como os indivíduos exprimem sua vida, assim eles o fazem. O que eles são, portanto, coincide com a produção deles tanto com o que produzem quanto com o como produzem. A natureza dos indivíduos depende, assim, das condições materiais determinantes de sua produção.[7]

Marx distinguiu o materialismo histórico do materialismo contemporâneo de forma bastante clara, em sua tese sobre Feuerbach: “O defeito capital de todo o materialismo até agora (incluindo o de Feuerbach) é que o objeto, a realidade, o que apreendemos por intermédio de nossos sentidos, só é entendido sob a forma de objeto ou contemplação (Anschauung); não, porém, como atividade humana sensorial, como prática; não subjetivamente. Por isso, em oposição ao materialismo, o aspecto ativo foi desenvolvido abstratamente pelo idealismo – que, está claro, não conhece a verdadeira atividade sensorial como tal. Feuerbach quer os objetos sensoriais realmente distinguidos dos objetos do pensamento; ele não compreende, porém, a atividade humana em si como uma atividade objetiva.[8]” Marx – como Hegel – a vê como um objeto em seu movimento, em seu vir-a-ser, e não como um “objeto” estático, suscetível de explicação pela descoberta de sua “causa” física. Ao contrário de Hegel, Marx estuda o homem e a história partindo do homem real e das condições econômicas e sociais em que ele tem de viver, e não primordialmente das ideias dele. Marx achava-se tão afastado do materialismo burguês quanto do idealismo hegeliano – daí poder dizer, acertadamente, não ser a sua filosofia nem idealismo nem materialismo, porém uma síntese: humanismo e naturalismo.

A este ponto, já deve estar claro porque é errônea a ideia popular acerca da natureza do materialismo histórico. Ela presume que na opinião de Marx a mais forte motivação psicológica do homem seja ganhar dinheiro e ter mais conforto material; se esta é a principal força no íntimo do homem, prossegue essa “interpretação” do materialismo histórico, a chave para se compreender a história são os desejos materiais dos homens; portanto, a chave para explicar a história é a barriga do homem, bem como sua cobiça de satisfação material. O erro fundamental em que se apoia esta interpretação é a suposição do materialismo histórico ser uma teoria psicológica concernente aos impulsos e paixões do homem. De fato, contudo, o materialismo histórico não é de forma alguma uma teoria psicológica; ela alega que a forma porque o homem produz determina seu pensamento e seus desejos, e não que seus desejos principais sejam os de máximo ganho material. A economia, neste contexto, refere-se não a um impulso psíquico, mas ao modo de produção; não a um fator subjetivo, psicológico, porém objetivo e econômico-sociológico. A única premissa quase-psicológica da teoria jaz na suposição de o homem carecer de alimento, abrigo, etc., e por isso precisa produzir; daí o modo de produção, dependente de vários fatores objetivos, como que precede e determina as outras esferas de suas atividades. As condições dadas objetivamente que determinam o modo de produção, e em consequência a organização social, determinam o homem, suas ideias assim como seus interesses. Com efeito, a ideia de que “as instituições formam os homens”, na expressão de Montesquieu, era um discernimento antigo; a novidade de Marx foi sua minuciosa análise das instituições, mostrando como estavam enraizadas no modo de produção e nas forças produtivas subjacentes. Certas condições econômicas, como as de capitalismo, produzem como principal incentivo o desejo de dinheiro e propriedade; outras condições econômicas podem produzir exatamente os desejos opostos, como os de ascetismo e desprezo pelas riquezas terrestres, tais como são encontrados em muitas culturas orientais e nas etapas iniciais do capitalismo[9]. A paixão pelo dinheiro e pela propriedade, segundo Marx, é tão economicamente condicionada quanto as paixões diametralmente opostas[10].

A interpretação “materialista” ou “econômica” da História feita por Marx nada tem a ver, absolutamente, com um suposto anelo “materialista” ou “econômico” considerado como o impulso mais fundamental do homem. Ela significa que o homem, o homem real e total, os “indivíduos vivos reais” – e não as ideias produzidas por estes “indivíduos” – são o tema da História e da compreensão das leis desta. De fato, a interpretação marxista da História poderia ser denominada uma interpretação antropológica da História caso se quisessem evitar as ambiguidades dos termos “materialista” e “econômico”; ela é a compreensão da História baseada no fato de os homens serem “os autores e atores da sua história”[11].[12]

Com efeito, uma das grandes diferenças entre Marx e a maioria dos escritores dos séculos XVIII e XIX é ele não considerar o capitalismo como resultado da natureza humana e a motivação do homem no capitalismo como a motivação universal intrínseca ao homem. O absurdo da opinião segundo a qual Marx considerava ser o anseio de lucro máximo o mais profundo motivo do homem torna-se mais evidente quando se leva em consideração ter Marx feito diversos pronunciamentos bem diretos sobre os impulsos humanos. Ele diferençava entre impulsos constantes ou “fixos”, “existentes em quaisquer circunstâncias e mutáveis pelas condições sociais no tocante a direção e forma”, e impulsos “relativos” que “devem sua origem apenas a um certo tipo de organização social”. Marx admitia o sexo e a fome pertencendo à categoria de impulsos “fixos”, mas nunca lhe ocorreu considerar o impulso por vantagem econômica máxima como um impulso constante.[13]

Nem é preciso, aliás, de provas assim das ideias psicológicas de Marx para mostrar que a suposição popular sobre o materialismo marxista está totalmente errada. Toda a crítica feita por Marx ao capitalismo é exatamente de este ter feito do interesse pelo dinheiro e pelos ganhos materiais o principal motivo do homem, e seu conceito de socialismo é precisamente o de uma sociedade em que esse interesse material deixasse de ser o dominante. Isto ficará ainda mais claro adiante, quando examinarmos o conceito de Marx a respeito da emancipação e liberdade humanas em pormenor.

Como salientei anteriormente, Marx parte do homem, que faz a sua própria história: “A primeira premissa de toda a história humana é, naturalmente, a existência de indivíduos humanos vivos. Assim, o primeiro fato a ser estabelecido é a organização física desses indivíduos e sua consequente relação com o resto da natureza. Evidentemente, não podemos enveredar aqui pela natureza física real do homem ou pelas condições naturais em que o homem se encontra – geológicas, oro-hidrográficas, climáticas e assim por diante. A descrição da história tem sempre de iniciar-se por essas bases naturais e pelas suas modificações no curso da história graças à ação do homem. Os homens podem ser distinguidos dos animais pela consciência, pela religião ou por outro elemento qualquer que se queira considerar. Eles próprios começam a produzir seus meios de subsistência, um passo que é condicionado por sua organização física. Pelo fato de produzirem seus meios de subsistência, os homens indiretamente estão produzindo sua vida material real[14].”

É muito importante entender a ideia fundamental de Marx: o homem faz sua própria história; ele é seu próprio criador. Conforme ele o exprimiu, muitos anos depois em O Capital: “E não seria mais fácil compilar essa história, desde que, como diz Vico, a história humana difere da história natural, por nós termos feito a primeira mas não a última.[15]” O homem dá a luz a si próprio no decurso da História. O fator essencial deste processo de autocriação da raça humana está na sua relação com a natureza. O homem, na alva da História, está cegamente vinculado ou agrilhoado à natureza. Com o correr da evolução, ele transforma sua relação com a natureza e, por conseguinte, consigo mesmo.

Marx tem mais a dizer em O Capital, sobre esta dependência da natureza: “Aqueles antigos organismos sociais de produção eram, comparados com a sociedade burguesa, extremamente simples e transparentes. Eram baseados, porém, seja no desenvolvimento imaturo do homem individualmente, que ainda não cortou o cordão umbilical que o liga a seus semelhantes em uma comunidade tribal primitiva, seja em relações diretas de submissão. Eles só podem surgir e existir onde o desenvolvimento do poder produtivo de trabalho não tenha saído de um estágio baixo, e quando, por conseguinte, as relações sociais dentro da esfera da vida material, entre os homens, e entre o homem e a natureza, sejam proporcionalmente mesquinhas. Esta mesquinhez reflete-se na antiga adoração da Natureza e nos outros elementos das religiões populares. O reflexo religioso do mundo real só pode, em qualquer caso, desaparecer, finalmente, quando as relações práticas da vida cotidiana não oferecem ao homem senão relações perfeitamente inteligíveis e razoáveis com seus semelhantes e com a natureza. O processo vital da sociedade, estribado no processo da produção material, não rompe seu véu místico até ser tratado como produção por homens livremente associados, e é conscientemente regulado por eles de acordo com um plano assentado. Isso, entretanto, exige da sociedade um certo fundamento material ou conjunto de condições de existência que, a seu turno, são o produto espontâneo de um longo e penoso processo evolutivo.[16]

Nesta declaração, Marx fala de um elemento que exerce papel central em sua teoria: o trabalho. O trabalho é o fator que medeia entre o homem e a natureza; é o esforço do homem para regular seu metabolismo com a natureza. O trabalho é a expressão da vida humana e através dele se altera a relação do homem com a natureza; por isso, através do trabalho, o homem transforma-se a si mesmo. Adiante, estender-nos-emos acerca deste conceito de trabalho.

Concluirei este capítulo, transcrevendo a mais completa formulação feita por Marx do conceito de materialismo histórico, escrita em 1859:

“O resultado geral a que cheguei, e que, uma vez alcançado, serviu de guia a meus estudos, pode ser assim sintetizado: na produção social de sua vida, os homens ingressam em relações definidas, que são indispensáveis e independem de sua vontade, relações de produção que correspondentes a uma determinada etapa de evolução de suas forças produtivas materiais. O grande total dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, o verdadeiro alicerce sobre o qual se ergue uma superestrutura jurídica e política à qual correspondem formas definidas de consciência social. O sistema de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina seu ser social, porém, pelo contrário, seu ser social é que determina a consciência deles. Num certo estágio de sua evolução, as forças produtivas materiais da sociedade entram em choque com as relações de produção existentes, ou – o que é mera expressão legal da mesma coisa – com as relações de propriedade dentro das quais elas tem atuado até então. De formas de evolução das forças produtivas, essas relações passam a ser entraves a elas. Inaugura-se, então, uma época de revolução social. Com a mudança das fundações econômicas, toda a imensa superestrutura transforma-se mais ou menos rapidamente. Ao apreciar essas transformações, sempre se deve distinguir entre a transformação material das condições econômicas da produção, suscetíveis de serem determinadas com a exatidão da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, estéticas ou filosóficas – em uma palavra, ideológicas -, pelas quais os homens tomam conhecimento desse conflito e lutam para resolvê-lo. Assim como nossa opinião sobre um indivíduo não se baseia no que ele pensa de si mesmo, tampouco podemos julgar um período assim de transformação pela própria consciência dele; pelo contrário, essa consciência tem de ser explicada a partir das contradições da vida material, do conflito existente entre as forças produtivas que nela cabem; e novas relações de produção, mais elevadas, nunca aparecem antes das condições materiais para sua existência terem amadurecido no ventre da própria sociedade antiga. Logo, a humanidade sempre se propõe apenas às tarefas que possa solucionar; pois, olhando o assunto mais de perto, sempre se constatará que a própria tarefa só desponta quando as condições materiais para sua solução já existem ou, pelo menos, estão em vias de concretizar-se. Grosso modo, os sistemas de produção asiáticos, da Antiguidade, feudal e burguês moderno podem ser designados como épocas progressivas da formação econômica da sociedade. As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo social da produção – não antagonista na acepção de antagonismo individual, mas de um antagonismo decorrente das condições sociais da vida do indivíduo; ao mesmo tempo, as forças produtivas em gestação no ventre da sociedade burguesa criaram as condições materiais para a solução desse antagonismo. Essa formação social, portanto, conduz a pré-história da sociedade humana a um fecho.[17]

Será útil novamente sublinharmos e aperfeiçoarmos certas noções específicas desta teoria.  Antes de mais nada, o conceito marxista de mudança histórica. A mudança é devida à contradição entre as forças produtivas (e outras condições objetivamente supostas) e a organização social existente. Quando um sistema de produção ou organização social prejudica, ao invés de favorecer, as forças produtivas consideradas, uma sociedade, para não entrar em colapso, escolherá as formas de produção adequadas ao novo conjunto de forças produtivas e as desenvolverá. A evolução do homem em toda a história caracteriza-se pela luta do homem contra a natureza. Em certo ponto da História (de acordo com Marx, em futuro próximo), o homem terá desenvolvido as forças produtivas da natureza a tal ponto que o antagonismo entre ele e a natureza poderá ser, afinal, solucionado. Nesse ponto, “a pré-história do homem” terminará e principiará a história verdadeiramente humana.

CAPÍTULO III – O Problema da Consciência, da Estrutura Social e do Uso da Força

Um problema da máxima importância é aventado na passagem que acabamos de citar, o da consciência humana. A afirmação crucial é: “Não é a consciência dos homens que determina sua existência, mas, pelo contrário, sua existência social lhes determina consciência.” Marx apresentou uma afirmação mais completa relativamente ao problema da consciência em Ideologia Alemã.

“O fato, portanto, é que indivíduos definidos que são produtivos ativamente de uma forma definida ingressam nessas relações sociais e políticas definidas. Em cada caso distinto, observações empíricas devem revelar empiricamente, e sem qualquer mistificação e especulação, a conexão da estrutura social e política com a produção. A estrutura social e o Estado estão continuamente evoluindo a partir do processo vital de indivíduos definidos, mas de indivíduos não como talvez pareçam em sua própria imaginação ou na de outros, e sim como realmente são; isto é, como são eficazes, produzem materialmente, e são ativos dentro de limites materiais, suposições e condições definidas, alheias a suas vontades.

“A produção de ideias, de conceitos de consciência é, a princípio, mesclada com a atividade material e as relações materiais dos homens, a linguagem da vida real. Conceber, pensar, as relações mentais dos homens aparecem neste estágio como o afluxo direto de seu comportamento material. O mesmo se aplica à produção mental expressa na linguagem política, das leis, da moral, da religião, da metafísica de um povo. Os homens são os produtores de suas concepções, ideias, etc. – homens reais, ativos, tal como são condicionados pelo desenvolvimento explícito de suas forças produtivas e das relações a estas correspondentes, até suas formas mais adiantadas. A consciência nunca pode ser senão existência consciente, e a existência dos homens em seu processo vital real. Se em todas as ideologias os homens e suas circunstâncias aparecem de cabeça para baixo como em uma câmara obscura[18], este fenômeno deriva tanto do processo vital histórico deles quanto da inversão dos objetos na rotina de seu processo vital físico.[19]

Em primeiro lugar, deve notar-se que Marx, como Spinoza e mais tarde Freud, achava que a maioria do que os homens pensam conscientemente é uma percepção “falsa”, é ideologia e racionalização; que as verdadeiras molas mestras das ações do homem são inconscientes para este. Segundo Freud, elas tem suas raízes nos anseios libidinosos do homem; segundo Marx, em toda a organização social do homem que norteia sua percepção para certas direções e o impede dar-se conta de determinados fatos e experiências[20].

É importante reconhecer que esta teoria não pretende contestar a realidade ou o poderio das ideias e ideais. Marx fala de percepção, não de ideais. É exatamente a cegueira do pensamento consciente do homem que lhe impede tomar conhecimento de suas verdadeiras necessidades humanas e de ideais nele arraigados. Só se a falsa percepção é transformada em verdadeira, isto é, só se tomamos conhecimento da realidade, ao invés de deturpá-la por meio de racionalizações e ficções, podemos também dar-nos conta de nossas necessidades reais e verdadeiramente humanas.

Também deve ser observado que, para Marx, a própria ciência e todos os poderes intrínsecos do homem fazem parte das forças produtivas que interagem com as forças da natureza. Ainda no atinente à influência das ideias sobre a evolução humana, Marx não se mostrou de forma alguma alheio a seu poder, como a interpretação popular de sua obra dá a entender. Sua argumentação não era contra ideias, mas contra ideias não arraigadas na realidade humana e social, que não eram, para recorrer à expressão de Hegel, “uma possibilidade real”. Acima de tudo, ele jamais esqueceu que não só as circunstâncias fazem o homem: este também faz circunstâncias. Acima de tudo, ele jamais esqueceu que não só as circunstâncias fazem o homem: este também faz circunstâncias. A passagem a seguir deve deixar claro quão errôneo é interpretar Marx como se ele, à semelhança de muitos filósofos do iluminismo e muitos sociólogos de hoje, atribuísse ao homem um papel passivo no processo histórico, vendo neste um objeto passivo das circunstâncias:

“A doutrina materialista [ao contrário da opinião de Marx] referente à mudança das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são modificadas pelos homens e que o próprio educador tem de ser educado. Esta doutrina, por conseguinte, tem de dividir a sociedade em duas partes, cada uma das quais é superior à sociedade [como um todo].

“A coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana ou mudança só pode ser compreendida e racionalmente entendida como prática revolucionária[21].

O último conceito, o de “prática revolucionária”, leva-nos a um dos mais discutidos conceitos da filosofia de Marx, o de força. Antes de mais nada, deve ser observado quão estranho é as democracias ocidentais sentirem tamanha indignação por causa de uma teoria segundo a qual a sociedade pode ser transformada pela conquista, à força, do poder político. A ideia de revolução política pela força não é de maneira alguma marxista; ela tem sido a ideia da sociedade burguesa nos últimos trezentos anos. A democracia ocidental é a filha das grandes revoluções inglesa, francesa e norte-americana; a revolução russa, de fevereiro de 1917, e a alemã de 1918 foram cordialmente saudadas pelo Ocidente, a despeito de terem recorrido a força. É claro que a indignação contra o uso da força, tal como existe no mundo ocidental de hoje, depende de quem empregue a força, e contra quem. Toda guerra baseia-se na força; mesmo o governo democrático estriba-se no princípio da força, que permite a maioria utilizar a força contra uma minoria, se necessário for, para assegurar a permanência do status quo. A indignação contra a força só é autêntica sob um ponto de vista pacifista, para o qual a força é absolutamente errada, ou que seu emprego, salvo quando se tratar da defesa mais imediata, nunca leva a uma mudança para melhor.

Entretanto, não basta mostrar que a ideia marxista de revolução com recurso à força (da qual ele excluiu como possibilidades a Inglaterra e os Estados Unidos) seguia a tradição da classe média; deve ser ressaltado que a teoria de Marx constituiu um considerável aperfeiçoamento em relação ao modo de ver da classe média, um aperfeiçoamento com raízes em toda a teoria de Marx sobre a História.

Marx viu que a força política não pode produzir nada para que não tenha havido preparação no processo político e social. Daí, a força, se necessária, pode dar, por assim dizer, apenas o último empurrão a uma evolução já virtualmente ocorrida, mas nunca poder produzir algo realmente novo. “A força”, disse ele, “é a parteira de toda sociedade antiga que carrega no ventre uma nova”[22]. É esse exatamente um dos grandes discernimentos de Marx, ao transcender o tradicional conceito da classe média – ele não acreditava no poder criador da força, na ideia de que a força política poderia por si mesma criar uma nova ordem social. Por essa razão, a força, para Marx, poderia ter no máximo um significado transitório, jamais o papel de elemento permanente na transformação da sociedade.

Capítulo IV – A Natureza do Homem

1. O CONCEITO DE NATUREZA HUMANA

Marx não acreditava, como o fazem muitos sociólogos e psicólogos contemporâneos, que houvesse algo assim como uma natureza do homem, que este ao nascer seja como uma folha de papel em branco na qual a cultura escreve seu texto. Bem ao contrário desse relativismo sociológico, Marx partiu da ideia de que o homem como homem é uma entidade identificável e verificável, podendo ser definido como homem apenas biológica, anatômica e fisiologicamente, mas também psicologicamente.

Evidentemente, Marx nunca se mostrou tentado a supor que a “natureza humana” fosse idêntica àquela expressão particular da natureza humana predominante em sua própria sociedade. Ao argumentar contra Bentham, disse Marx: “Para saber o que é útil para um cão, precisa-se estudar a natureza canina. Essa natureza, em si mesma, não deve ser deduzida do princípio de utilidade. Ao aplicar isso ao homem, quem criticar todos os atos, movimentos, relações, etc. humanos, pelo princípio de utilidade, terá primeiro de lidar com a natureza humana em geral, e depois com a natureza humana modificada de cada época histórica[23].” Deve ser notado que este conceito de natureza humana não é, para Marx – como tampouco o era para Hegel -, uma abstração. É a essência do homem – em contraste com as várias formas de sua existência histórica -, e, como falou Marx, “a essência do homem não é uma abstração inerente a cada indivíduo de per si[24]”. Também deve ser afirmado que esta frase de O Capital escrita pelo “velho Marx” revela a continuidade do conceito de essência do homem (Wesen) sobre o qual o jovem Marx escreveu nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Não mais empregou o termo “essência” posteriormente, por ser abstrato e não-histórico, mas claramente manteve a noção dessa essência em uma versão mais histórica, na diferenciação entre “natureza humana em geral” e “natureza humana modificada” de cada época histórica.

Obedecendo a esta distinção entre uma natureza humana geral e a expressão específica da natureza humana em cada cultura, Marx reconhece, consoante já mencionamos acima, dois tipos de impulsos e apetites humanos: os constantes ou fixos, como a fome e o desejo sexual, que são parte integrante da natureza humana e só podem variar na forma e direção assumidas em diversas culturas, e os relativos, que não fazem parte integrante da natureza humana, mas “devem sua origem a certas estruturas sociais e condições de produção e de comunicação”[25]. Marx cita como exemplo as necessidades produzidas pela estrutura capitalista da sociedade. “A necessidade de dinheiro”, escreveu ele nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, “é, portanto, a necessidade por ela criada… Isso é demonstrado subjetivamente em parte pelo fato da expansão de produção e de necessidade tornar-se uma subserviência engenhosa e sempre calculista a apetites desumanos, depravados, antinaturais e imaginários[26]”.

O potencial do homem, para Marx, é um potencial dado; o homem é, por assim dizer, a matéria-prima humana que, como tal, não pode ser modificada, tal como a estrutura do cérebro tem permanecido a mesma desde a aurora da história. Contudo, o homem de fato muda no decurso da história: ele se desenvolve, se transforma, é o produto da história; assim como ele faz a história, ele é seu próprio produto. A História é a história da autorrealização do homem; ela nada mais é que a autocriação do homem por intermédio de seu próprio trabalho e produção: “o conjunto daquilo a que se denomina história do mundo não passa de criação do homem pelo trabalho humano, e o aparecimento da natureza para o homem; por conseguinte, ele tem a prova evidente e irrefutável de sua autocriação, de suas próprias origens[27]”.

II. ATIVIDADE PRÓPRIA DO HOMEM

O conceito marxista do homem nasce do pensamento de Hegel. Este principia com o discernimento de que aparência e essência não coincidem. A missão do pensador dialético é “distinguir o essencial do processo aparente da realidade e apreender suas relações[28]”. Ou, por outras palavras, é o problema da relação entre essência e existência. No processo da existência, a essência se realiza e, ao mesmo tempo, existir significa um retorno à essência. “O mundo é um mundo alienado e falso enquanto o homem não destrói sua objetividade inerte e se reconhece e à sua própria vida “por trás” da forma fixa das coisas e das leis. Quando ele, afinal, adquire essa autoconsciência, está no rumo não só de sua própria verdade, mas também da do mundo. E o reconhecimento é acompanhado pela ação. Ele procurará por essa verdade em ação, e fazer do mundo o que é essencialmente, ou seja, a realização da autoconsciência do homem[29].” Para Hegel, o conhecimento não é conseguido na posição de separação entre sujeito e objeto, na qual o objeto é entendido como algo separado e oposto a quem pensa. A fim de conhecer o mundo, o homem tem de fazer do mundo o seu próprio mundo. O homem e as coisas acham-se em constante transição de uma similitude para outra; por isso, “uma coisa é por si mesma somente quando assentou (gesetzt) todos os seus determinantes e tornou-os momentos de sua autorrealização, e está assim, em todas as condições mutáveis, sempre voltando a si mesma[30]”. Neste processo, “penetrar em si mesmo converte-se em essência”. Esta essência, a unidade do ser, a identidade graças à qual a mudança, na expressão de Hegel, é um processo em que “tudo enfrenta suas contradições inerentes e desdobra-se como consequência”.  A essência, é assim, tanto histórica quanto ontológica. As potencialidades essenciais das coisas realizam-se no mesmo processo global que estabelece sua existência. A essência pode “alcançar” sua existência quando as potencialidades das coisas tiverem amadurecido nas e através das condições da realidade. Hegel descreve este processo como a “transição para a realidade”[31]. Ao contrário do positivismo, para Hegel “os fatos só são fatos se relacionados com o que ainda não é fato e, no entanto, manifesta-se nos fatos dados como possibilidade real. Ou, os fatos são o que são apenas como momentos em um processo que leva para além deles até aquilo que ainda não se concretizou em fato[32]”.

A culminância de todo o pensamento hegeliano é o conceito das potencialidades intrínsecas a algo, do processo dialético pelo qual elas se manifestam, a ideia desse processo ser de movimento ativo de tais potencialidades. Esta ênfase no processo ativo no interior do homem já fora assinalada no sistema ético de Spinoza. Para Spinoza, todos os afetos podiam dividir-se em afetos passivos (paixões), por meio dos quais o homem sofre e não tem uma ideia adequada da realidade, e afetos ativos (ações) (generosidade e força moral) nos quais o homem é livre e produtivo. Goethe, que à semelhança de Hegel foi influenciado por Spinoza de várias maneiras, transformou a ideia da produtividade do homem em um ponto central de seu pensamento filosófico. Para ele, todas as culturas decadentes caracterizam-se pela tendência para a subjetividade pura, enquanto todos os períodos progressivos tentam entender o mundo como é por intermédio da subjetividade de cada um mas não separado deste[33]. Ele dá o exemplo do poeta: “enquanto ele exprime apenas estas poucas frases subjetivas, não pode ainda ser chamado de poeta, mas, logo que sabe como se assenhorar do mundo e expressá-lo, é um poeta. Então é inexaurível, e pode sempre renovar-se, ao passo que sua natureza puramente subjetiva se esgotou cedo e deixou de ter o que dizer”[34]. “O homem”, diz Goethe, “conhece-se a si mesmo na medida em que conhece o mundo; ele só conhece o mundo dentro de si mesmo e toma conhecimento de si mesmo dentro do mundo. Cada objeto novo verdadeiramente identificado desvenda um novo órgão dentro de nós mesmos[35].”  Goethe deu a expressão mais poética e mais vigorosa da ideia da produtividade humana em seu Fausto. Nem a posse, nem o poder, nem a satisfação sensual, ensina Fausto, podem preencher o desejo de significado para sua própria vida que o homem tem; em tudo isso, ele permanece separado do todo, e por isso infeliz. Só ao ser produtivamente ativo, pode o homem encontrar sentido para sua vida e, embora assim ele a aproveite, não se agarra a esta vorazmente. Ele desistiu da cobiça de ter, e fica satisfeito em ser; sente-se farto por estar vazio; ele é muito, por ter pouco[36]. Hegel apresentou a expressão mais metódica e mais profunda da ideia do homem produtivo, do indivíduo que é ele mesmo, na medida em que não é passivo-receptivo, mas ativamente relacionado com o mundo; que é um indivíduo apenas no processo de apreender o mundo produtivamente, e assim tornando o seu mundo. Ele enunciou a ideia assaz poeticamente ao dizer que o sujeito, ao desejar levar um conteúdo à realização, o faz “traduzindo-o da noite da possibilidade para o dia da realidade”. Para Hegel, o desdobramento de todas as faculdades, capacidades e potencialidades individuais só é possível por meio da ação contínua, nunca pela exclusiva contemplação ou receptividade. Para Spinoza, Goethe, Hegel, assim como para Marx, o homem só está vivo na medida em que é produtivo, na medida em que abarca o mundo exterior no ato de manifestar seus próprios poderes humanos específicos e de abarcar o mundo com estes. Na medida em que o homem não é produtivo, na medida em que é receptivo e passivo, ele nada é, está morto. Neste processo produtivo, o homem realiza sua própria essência, retorna à sua própria essência, o que, em linguagem teológica, nada mais é que seu retorno a Deus.

Para Marx, o homem caracteriza-se pelo “princípio do movimento” e é significativo ele citar, a propósito, o grande místico Jacob Boehme[37]. O princípio do movimento não deve ser interpretado mecanicamente, mas como impulso, vitalidade criadora, energia; a paixão humana, para Marx, “é a faculdade essencial do homem esforçando-se energicamente por alcançar seu objeto”.

O conceito de produtividade, em contraste com o de receptividade, pode ser mais facilmente compreendido quando lemos como Marx o aplicou ao fenômeno do amor. “Suponhamos que o homem seja homem”, escreveu ele, “e que a relação dele com o mundo seja humana. Então, amor só pode ser trocado por amor, confiança por confiança, etc. Se se deseja influenciar uma pessoa, é preciso ser-se uma pessoa realmente dotada de efeito estimulador e encorajador nas outras. Cada uma das relações da gente com o homem e a natureza tem de ser uma expressão específica correspondente ao objeto escolhido, escolhido por nossa vida individual real. Se uma pessoa ama sem inspirar amor, isto é, se não é capaz, ao manifestar-se uma pessoa amável, de tornar-se amada, então o amor dela é impotente e uma desgraça[38].” Marx também exprimiu muito claramente o significado central do amor entre homem e mulher como a relação imediata dum ser humano com outro ser humano. Combatendo um comunismo vulgar que propunha a coletivização de todas as relações sexuais, Marx escreveu: “Na relação com a mulher como presa e serva da luxúria comunal, expressa-se a infinita degradação de si próprio existente no íntimo do homem; pois o segredo dessa relação alcança sua expressão inequívoca, incontestável, franca e patente na relação do homem com a mulher e na forma pela qual é concebida a relação direta e natural da espécie. A relação imediata, natural e necessária de ser humano com ser humano também é a relação do homem com a mulher. Nesta relação natural da espécie, a relação do homem com a natureza é diretamente sua relação com o homem, e sua relação com este é diretamente sua relação com aquela, com sua própria função natural. Assim, nesta relação é revelada sensorialmente, reduzida a um fato observável, a extensão em que a natureza humana se converteu para o homem e também a natureza se converteu em natureza humana para ele. Desta relação pode-se estimar o nível total de evolução do homem. Do caráter desta relação decorre até que grau o homem se tornou, e assim se interpretou, um homem-espécie, um ser humano. A relação entre homem e mulher é a mais natural relação dum ser humano com outro. Indica, por conseguinte, até que ponto o comportamento natural do homem se tornou humano, e até que ponto sua essência humana se tornou essência natural para ele. Ela também mostra a medida em que as necessidades do homem se tornaram necessidades humanas, e consequentemente a medida em que outra pessoa, como pessoa, se tornou uma de suas necessidades e a medida em que em sua existência individual ele é igualmente um ser social[39].”

É da máxima importância, para a compreensão do conceito marxista de atividade, entender sua ideia acerca da relação entre sujeito e objeto. Os sentidos do homem, por se tratar de sentidos animais grosseiros, tem somente um significado restrito. “Para um homem faminto não existe a forma humana de alimento, mas apenas seu caráter abstrato como alimento. Poderia também existir apenas na forma mais rudimentar, e é impossível dizer de que maneira esta atividade de alimentar-se diferiria da dos animais. O homem necessitado, cheio de preocupações, não pode admirar nem o mais belo espetáculo[40].” Os sentidos que o homem possui, por assim dizer, naturalmente, precisam ser formados pelos objetos exteriores. Qualquer objeto só pode ser a confirmação de uma de minhas próprias faculdades. “Porque não são somente os cinco sentidos, mas também os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (desejo, amor, etc), em suma, a sensibilidade e o caráter humano dos sentidos que podem concretizar-se por meio da existência do respectivo objeto, por meio da natureza humanizada[41].” Os objetos, para Marx, “confirmam e realizam sua individualidade [do homem]… A maneira porque esses objetos se tornam dele mesmo depende da natureza do objeto e da natureza da faculdade correspondente… O caráter distintivo de cada faculdade é exatamente sua essência característica e, por isso também, a forma característica de sua objetivação, de sua existência viva, objetivamente real. Portanto não é apenas em pensamento, mas através de todos os sentidos, que o homem se afirma no mundo objetivo[42]”.

Ao relacionar-se com o mundo objetivo, por intermédio de suas faculdades, o mundo exterior torna-se real para o homem, e de fato é só o “amor” que faz o homem verdadeiramente crer na realidade do mundo objetivo a ele extrínseco[43]. Sujeito e objeto não podem ser separados. “O olho transformou-se em olho humano quando seu objeto se converteu um objeto humano, social, criado pelo homem e a este destinado… Eles [os sentidos] se relacionam com a coisa devido a esta, mas a coisa em si mesma é uma relação humana objetiva para si própria e para o homem, e vice-versa. A necessidade e o gozo perderam, assim, seu caráter egoísta, e a natureza perdeu sua mera utilidade pelo fato de sua utilização ter-se transformado em utilização humana. (Com efeito, só posso relacionar-me de maneira humana com uma coisa quando esta se relaciona de maneira humana com o homem[44]).”

Para Marx, “O comunismo é a abolição positiva da propriedade privada[45], da autoalienação humana, e assim a verdadeira apropriação da natureza humana por meio do e para o homem. Ele é, por conseguinte, o retorno do próprio homem como um ser social, isto é, realmente humano, um retorno completo e consciente que assimila toda a riqueza da evolução anterior. O comunismo como naturalismo plenamente evoluído é humanismo, e como humanismo plenamente evoluído é naturalismo. Ele é a sua definitiva do antagonismo entre o homem e a natureza, e entre o homem e seu semelhante. Ele é a verdadeira solução do conflito entre existência e essência, entre objetivação e autoafirmação, entre liberdade e necessidade, entre indivíduo e espécie. Ele é a solução do enigma da História e disso ele mesmo tem conhecimento[46].” Esta relação ativa com o mundo objetivo é denominada por Marx “vida produtiva”. “É vida criando vida. No tipo de atividade da vida reside todo o caráter da espécie, seu caráter como espécie; e a atividade livre e consciente é o caráter da espécie dos seres humanos[47].” O que Marx tem em mente como “caráter da espécie” é a essência do homem; é o que é universalmente humano e que é realizado no decurso da História pelo homem graças à sua atividade produtiva.

Partindo desse conceito de autorrealização humana, Marx chega a um novo conceito de origem de riqueza e pobreza, diverso do encontrado em Economia Política. “Ver-se-á disso”, diz Marx, “como em lugar da riqueza e pobreza da Economia Política, temos o homem rico e a plenitude da necessidade humana. O homem rico é, ao mesmo tempo, o que precisa de um complexo de manifestações humanas da vida e cuja própria autorrealização existe como uma exigência interior, uma necessidade. Não só a riqueza, mas igualmente a pobreza do homem adquirem, em uma perspectiva socialista, um significado humano e, por isso, social. A pobreza é o vínculo passivo que leva o homem a vivenciar uma necessidade de riqueza máxima, a outra pessoa. O desvio da entidade objetiva dentro de mim, a ruptura sensorial de minha atividade vital, é a paixão que aqui se converte em atividade de meu ser[48]. A mesma ideia fora expressa anos antes por Marx: “A existência do que verdadeiramente amo [aqui ele se refere especificamente à liberdade da imprensa] é por mim sentida como uma exigência, como uma necessidade, sem a qual minha essência não pode ficar realizada, satisfeita, completa[49].”

“Assim como a sociedade encontra, em seu início, através da evolução da propriedade privada com sua riqueza e pobreza (tanto intelectual quanto material), os materiais necessários a esse desenvolvimento cultural, também a sociedade plenamente constituída produz o homem em toda a plenitude de seu ser, o homem rico dotado de todos os sentidos, como uma realidade duradoura. É só em um contexto social que subjetivismo e objetivismo, espiritualismo e materialismo, atividade e passividade deixam de ser antinômicos e, assim deixam de existir como tais antinomias. A resolução das contradições teóricas somente é possível graças a meios práticos, somente graças à energia prática do homem. Sua resolução, portanto, não é, absolutamente, apenas um problema de conhecimento, mas um problema real da vida, que a filosofia foi incapaz de solucionar precisamente porque o via como um problema exclusivamente teórico[50].”

Correspondente a seu conceito de homem rico é a opinião de Marx sobre a diferença entre o sentimento de ter e o de ser. “A propriedade privada”, afirma ele, “tornou-nos tão estúpidos e parciais que um objeto só é nosso quando o temos, quando ele existe para nós como capital ou quando é diretamente comido, bebido, vestido, habitado, etc., em suma, utilizado de qualquer maneira. Apesar de a propriedade privada em si mesma só conceber essas várias formas de posse como meios de vida, a vida para as quais eles servem como meios é a vida da propriedade privada – o trabalho e a criação de capital. Assim, todos os sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pela simples alienação de todos esses sentidos: o sentido de ter. O ser humano tinha de ser reduzido a essa pobreza absoluta a fim de ficar apto a deixar nascer toda a sua riqueza interior[51]”.

Marx reconheceu que a ciência da economia capitalista, malgrado sua aparência mundana e hedonista, “é uma ciência verdadeiramente moral, a mais moralizada de todas as ciências. Sua tese principal é a renúncia à vida e às necessidades humanas. Quanto menos se comer, beber, comprar livros, for ao teatro ou a bailes, ou à cervejaria, e quanto menos se pensar, amar, teorizar, cantar, pintar, esgrimir, etc., tanto mais se poderá poupar e tanto maior se tornará o tesouro imune às traças e à ferrugem – o capital. Quanto menos se for menos se expressará a vida, mais se terá, maior será a vida alienada e maior a poupança do ser alienado. Tudo que o economista retira da gente no que diz respeito a vida e humanidade, ele restituiu sob a forma de dinheiro e riqueza. E tudo que se é incapaz de fazer, o dinheiro pode fazer pela gente: pode comer, beber, ir a um baile e ao teatro. Pode comprar arte, saber, tesouros históricos, poder político, e pode viajar. Ele pode apoderar-se de todas essas coisas para a gente, pode comprar tudo: é a verdadeira opulência. Mas, conquanto ele possa fazer tudo isso, só deseja criar-se a si mesmo e comprar a si mesmo, pois tudo mais se lhe submete. Quando se possui o senhor, também se possui o servo, e não se precisa do servo do senhor. Assim, todas as paixões e atividades são forçosamente submersas na avareza. O trabalhador deve ter apenas o que lhe é necessário para querer viver, e deve querer viver apenas para poder ter isso[52].”

A meta da sociedade, para Marx, não é a produção de coisas úteis como meta em si mesma. Esquece-se facilmente, diz ele, “que a produção de coisas úteis em demasia redunda em pessoas inúteis em demasia[53]”. As contradições entre prodigalidade e parcimônia, luxo e abstinência, riqueza e pobreza são meramente aparentes porquanto na verdade todas essas antinomias se equivalem. É particularmente importante entender esta posição de Marx hoje em dia, quando tanto os comunistas como a maioria dos partidos socialistas, com algumas exceções notáveis como o indiano, o birmanês e certos socialistas europeus e norte-americanos, aceitaram o princípio subjacente a todos os sistemas capitalistas, segundo o qual o máximo de produção e de consumo são os objetivos inquestionáveis da sociedade. Não se deve, evidentemente, confundir o objetivo de sobrepujar a pobreza insondável, que interfere com uma vida digna, com o de um consumo cada vez maior, que se converteu em valor supremo tanto para o capitalismo quanto para o kruschevismo. A posição de Marx era assaz nitidamente em prol da vitória contra a pobreza, mas igualmente infensa à adoção do consumo como finalidade absoluta.

Independência e liberdade, para Marx, baseiam-se no ato de autocriação. “Um ser não se considera independente a menos que seja seu próprio senhor, e ele só o é quando deve sua existência a si próprio. Um homem que vive graças ao favor de outrem considera-se um ser dependente. Mas, eu vivo completamente por graça de outra pessoa quando devo a esta não apenas a continuação de minha vida, como também sua criação; quando ela é minha fonte. Minha vida forçosamente tem uma causa assim externa quando não é de minha própria criação[54].” Ou, conforme Marx o diz, o homem só é independente “… se afirma sua individualidade como homem total em cada uma de suas relações com o mundo, vendo, ouvindo, sorrindo, provando, sentindo, pensando, querendo, amando – em resumo, se afirma e exprime todos os órgãos de sua individualidade”, se não é apenas livre de mas também livre para.

Para Marx, a meta do socialismo era a emancipação do homem, e esta era a mesma coisa que a autorrealização dele no decurso de seu relacionamento e identificação com o homem e com a natureza. A meta do socialismo era o desenvolvimento da personalidade individual. O que Marx pensaria de um sistema como o comunismo soviético manifestou muito claramente em uma exposição daquilo a que chamava de “comunismo vulgar”, com o que se referia a certas ideias e práticas comunistas da época. Esse “comunismo vulgar” aparece sob dupla forma; a dominação da propriedade material agiganta-se tanto que visa a destruir tudo que é incapaz de ser possuído por todos como propriedade privada. Ele deseja eliminar o talento, etc., pela força. A posse física imediata parece ser o objetivo exclusivo da vida e da existência. O papel do trabalhador não é abolido, mas estendido a todos os homens. A relação da propriedade privada permanece sendo a relação da comunidade com o mundo das coisas. Finalmente, essa tendência para contrapor a propriedade privada em geral à propriedade privada expressa-se sob uma forma animal; o casamento (que é incontestavelmente uma forma de propriedade privada exclusiva) é contrastado com a comunidade das mulheres[55], em que as mulheres se tornam propriedade da comunidade. Pode-se dizer que esta ideia de comunidade das mulheres é o segredo é o segredo de Polichinelo desse comunismo grosseiro e irrefletido. Assim como as mulheres devem passar do matrimônio à prostituição universal, igualmente o mundo inteiro da riqueza (isto é, o ser objetivo do homem) deve passar à relação de prostituição universal com a comunidade. Esse comunismo, que nega a personalidade do homem em todos os setores, é unicamente a expressão lógica da propriedade privada, que é essa negação. A inveja universal, estabelecendo-se como potência, é apenas uma forma camuflada de cupidez, que se reinstala e satisfaz-se de maneira diferente. Os pensamentos da propriedade privada de todo indivíduo são, pelo menos, voltados contra qualquer propriedade privada mais rica, sob a forma de inveja e de desejo de reduzir tudo a um nível comum; por isso essa inveja e esse nivelamento de fuga constituem a essência da competição. O comunismo vulgar é somente a culminação dessa inveja e nivelamento na base de um mínimo preconcebido. Quão pouco representa essa abolição da propriedade privada como apropriação genuína é demonstrado pela negação abstrata de todo o mundo da cultura e da civilização, e pela regressão à simplicidade antinatural do indivíduo pobre e que nada quer, que não só não ultrapassou a propriedade privada como ainda nem sequer atingiu. A comunidade só é uma comunidade de trabalho e de igualdade de salários pagos pelo capital comunitário, pela comunidade como capitalista universal. Os dois aspectos da relação são elevados a uma suposta universalidade; o trabalho como situação em que todos são colocados, e o capital como a universalidade e o poder admitidos da comunidade[56].

Toda a concepção de Marx a respeito da autorrealização do homem só pode ser plenamente compreendida em ligação com sua concepção de trabalho. Antes de mais nada, deve ser notado que trabalho e capital não eram, para Marx, meras categorias econômicas; eram categorias antropológicas, impregnadas de um juízo de valor oriundo de sua posição humanista. O capital, aquilo que é acumulado, representa o passado; o trabalho por outro lado, é, ou devia ser quando livre, a expressão da vida. “Na sociedade burguesa”, diz Marx no Manifesto Comunista, “… o passado domina o presente. Na sociedade comunista, o presente domina o passado. Na sociedade burguesa, o capital é independente e possui individualidade, ao passo que a pessoa viva é dependente e não possui individualidade.” Uma vez mais, Marx acompanha o pensamento de Hegel, que entendia o trabalho como “o ato de autocriação do homem”. O trabalho, para Marx, é uma atividade, não uma mercadoria. Marx inicialmente denominou a função do homem de “autoatividade” e não de trabalho, e falou na “abolição do trabalho” como objetivo do socialismo. Ulteriormente, quando estabeleceu a diferença entre trabalho livre e alienado, empregou a expressão “emancipação do trabalho”.

“O trabalho é, em primeiro lugar, um processo de que participam igualmente o homem e a natureza, e no qual o homem espontaneamente inicia, regula e controla as reações materiais entre si próprio e a natureza. Ele se opõe à natureza como uma de suas próprias forças, pondo em movimento braços e pernas, as forças naturais de seu corpo, a fim de apropriar-se das produções da natureza de forma ajustada a suas próprias necessidades. Pois, atuando assim sobre o mundo exterior e modificando-o, ao mesmo tempo ele modifica sua própria natureza. Ele desenvolve seus poderes inativos e compele-os a agir em obediência à sua própria autoridade. Não estamos lidando agora com aquelas formas primitivas de trabalho que nos recordam apenas o mero animal. Um intervalo de tempo imensurável separa o estado de coisas em que um homem leva a força de seu trabalho à venda no mercado como uma mercadoria, daquele em que o trabalho humano ainda se encontrava em sua etapa instintiva inicial. Pressupomos o trabalho em uma forma que o caracteriza como exclusivamente humano. Uma aranha leva a cabo operações que lembram as de um tecelão, e uma abelha deixa envergonhados muitos arquitetos na construção de suas colmeias. Mas, o que distingue o pior arquiteto da melhor das abelhas é que o arquiteto ergue a construção em sua mente antes de a erguer na realidade. Na extremidade de todo processo de trabalho, chegamos a um resultado já existente antes na imaginação do trabalhador ao começa-lo. Ele não apenas efetua uma mudança de forma no material com que trabalha, como também concretiza uma finalidade dele próprio que fixa a lei de seu modus operandi, e à qual tem de subordinar sua própria vontade. E esta subordinação não é um ato simplesmente momentâneo. Além do esforço de seus órgãos corporais, o processo exige que, durante toda a operação, a vontade do trabalhador permaneça em consonância com sua finalidade. Isto significa cuidadosa atenção. Quanto menos ele se sentir atraído pela natureza de seu trabalho e pela maneira porque é executado, e, por conseguinte, quanto menos gostar disso como algo em que emprega suas capacidades físicas e mentais, tanto maior atenção é obrigado a prestar[57].”

O trabalho é a expressão própria do homem, uma expressão de suas faculdades físicas e mentais. Nesse processo de atividade genuína, o homem desenvolve-se a si mesmo, torna-se ele próprio; o trabalho não é só um meio para um fim – o produto – mas um fim em si mesmo, a expressão significativa da energia humana; por isso, pode-se gostar do trabalho.

A crítica central feita por Marx ao capitalismo não é a injustiça na distribuição da riqueza; é a perversão do trabalho, convertendo-o em trabalho forçado, alienado, sem sentido – por conseguinte, a transformação do homem em uma “monstruosidade aleijada”. O conceito marxista do trabalho como expressão da individualidade do homem é expresso sucintamente em sua visão da abolição completa da sujeição do homem a vida inteira a uma única ocupação. Visto que a meta do desenvolvimento humano é a do desenvolvimento do homem total e universal, o homem tem de ser emancipado da influência mutiladora da especialização. Em todas as sociedades anteriores, escreve Marx, o homem foi “um caçador, um pescador, um pastor ou um crítico maldizente, e tinha de assim permanecer caso não quisesse perder o seu ganha-pão; já na sociedade comunista, onde ninguém tem uma esfera exclusiva de atividade, mas cada um pode tornar-se consumado em qualquer campo que desejar, a sociedade regula a produção geral e torna possível, assim, a gente fazer hoje uma coisa e amanhã outra, caçar de manhã, pescar à tarde, criar gado de noite, criticar após o jantar, tal como se deseje, sem jamais se tornar caçador, pescador, pastor ou crítico”[58].

Não há maior erro de interpretação ou de representação das ideias de Marx do que o encontrado, implícita ou explicitamente, no pensamento dos comunistas soviéticos, dos socialistas reformistas e dos capitalistas adversos ao socialismo, todos os quais admitem que Marx só desejava o aperfeiçoamento econômico da classe operária e queria abolir a propriedade privada de modo a que o operário pudesse ter o que o capitalista tem agora. A verdade é que, para Marx, a situação de um operário de uma fábrica “socialista” russa, uma fábrica de propriedade do Estado na Grã-Bretanha ou uma fábrica norte-americana como a General Motors se afiguraria essencialmente igual. É o que Marx exprime muito claramente na seguinte passagem:

“Um aumento de salários imposto (sem considerar outras dificuldades, e especialmente a de que uma tal anomalia só pode ser mantida pela força) nada mais seria que uma remuneração melhor de escravos, e não restauraria, seja para o trabalhador, seja para o trabalho, seu significado e seu valor humano.”

“Ainda a igualdade de rendimentos reclamada por Proudhon só mudaria a relação do operário de hoje com seu trabalho para uma relação de todos os homens com o trabalho. A sociedade seria considerada, então, um capitalista abstrato[59].”

O tema central de Marx é a transformação do trabalho produtivo e livre, e não a melhor paga do trabalho alienado por um capitalismo privado ou por um capitalismo de Estado “abstrato”.

Capítulo V – Alienação

O conceito do homem ativo e produtivo, que compreende e controla o mundo objetivo com suas próprias faculdades, não pode ser plenamente entendido sem o conceito de negativação da produtividade: a alienação. Para Marx, a história do gênero humano é uma história do crescente desenvolvimento do homem e, concomitantemente, de crescente alienação. Seu conceito de socialismo é a emancipação da alienação, a volta do homem par si mesmo, a sua realização de si próprio.

A alienação (ou “alheamento”) significa para Marx, que o homem não se vivencia como agente ativo de seu controle sobre o mundo, mas que o mundo (a natureza, os outros, e ele mesmo) permanece alheio ou estranho a ele. Eles ficam acima e contra ele como objetos, malgrado possam ser objetos por ele mesmo criados. Alienar-se é, em última análise, vivenciar o mundo e a si mesmo passivamente, receptivamente como o sujeito separado do objeto.

Todo esse conceito de alienação foi pela primeira vez expresso no pensamento ocidental, através do conceito de idolatria do Antigo Testamento[60]. A essência do que era chamado de “idolatria” pelos antigos profetas não está em o homem adorar muitos deuses em vez de um único. Está em os ídolos serem a obra das mãos do próprio homem – eles são coisas, e, no entanto, o homem curva-se ante elas e as reverência; adora aquilo que ele mesmo criou. Ao fazê-lo, ele se transforma em coisa. Transfere às coisas de sua criação os atributos de sua própria vida, e, em vez de experienciar-se com a pessoa criadora, só entra em contato consigo mesmo através da adoração do ídolo. Ele se alheou às forças de sua própria vida, à riqueza de suas próprias potencialidades, e só entra em contato consigo mesmo de maneira indireta, submetendo-se à vida congelada nos ídolos[61].

O torpor e a vacuidade do ídolo estão expressos no Antigo Testamento: “Olhos eles tem e não veem, ouvidos eles tem e não ouvem”, etc[62]. Quanto mais o homem transfere seus próprios poderes para os ídolos, tanto mais pobre ele fica e tanto mais dependente dos ídolos, pois estes só lhe permitem reaver pequena parte do que era originalmente dele. Os ídolos podem ser imagens de deuses, o Estado, a Igreja, uma pessoa, posses. A idolatria muda de objetos; não é absolutamente encontrada apenas nas formas em que o ídolo tem sentido pretensamente religioso. A idolatria é sempre a adoração de algo que o homem colocou nas próprias forças criadoras e a que agora se submete, em vez de experienciar-se a si próprio em seu ato criador. Dentre as inúmeras formas de alienação, a mais frequente ocorre na linguagem. Se exprimo um sentimento por palavras, digamos, se eu falo “Eu te amo”, as palavras visam a indicar a realidade existente em meu íntimo, o poder de meu amor. A palavra “amor” é tomada como símbolo do fato amor, mas assim que é pronunciada ela tende a assumir vida própria tornando-se uma realidade. Fico na ilusão de que pronunciar a palavra equivale a ter a experiência, e em breve digo a palavra sem nada sentir, exceto o pensamento de amor expresso pela palavra. A alienação da linguagem demonstra toda a complexidade da alienação. A linguagem é uma das mais preciosas conquistas humanas; evitar a alienação deixando de falar seria tolice – contudo, é mister ter sempre em conta o perigo da palavra falada tender a substituir a experiência vivida. O mesmo aplica-se a todas as outras realizações do homem: ideias, arte, qualquer espécie de objetos criados pelo homem. Elas são criações do homem, ajudas valiosas para a vida; no entanto, cada uma é também uma armadilha, uma tentação para confundir a vida com coisas, experiência com artefatos, sentimento com capitulação e submissão.

Os pensadores dos séculos XVIII e XIX criticaram sua época por ser cada vez mais rígida, vazia e insensível. No pensamento de Goethe, uma pedra angular foi o mesmo conceito de produtividade que ocupa posição central em Spinoza assim como em Hegel e Marx. “O Divino”, diz ele, “é eficaz no que está vivo, mas não no que está morto. É eficaz vir-a-ser, no que está evoluindo, mas não no que está acabado e rígido. Por isso é que a razão, em sua tendência para o divino, só lida com o que se acha em evolução, e está vivo, enquanto o intelecto lida com o que está acabado e rígido, a fim de utilizá-lo[63].”

Encontramos críticas análogas em Schiller e Fichte, e depois em Hegel e Marx, que faz uma crítica generalizada de que em seu tempo “a verdade é sem paixão, e a paixão é sem verdade[64]”.

Essencialmente, toda a filosofia existencialista, desde Kierkegaard, é, no dizer de Paul Tillich, “um movimento de mais de cem anos de rebeldia contra a desumanização do homem na sociedade industrial”. Deveras, o conceito de alienação é, em linguagem não-teístas, o equivalente do que em linguagem teísta seria denominado “pecado”: a renúncia do homem a si mesmo, o abandono do Deus que existe dentro do homem.

O pensador que cunhou o conceito de alienação foi Hegel. Para ele, a história do homem (Entfremdung). “Aquilo porque de fato a inteligência anseia”, escreveu ele em Filosofia da História, “é a percepção de si própria; mas, ao fazê-lo, ela oculta aquele objetivo de sua própria visão e fica orgulhosa e bem satisfeita nesta alienação de sua própria essência[65]”. Para Marx, tal como para Hegel, o conceito de alienação baseia-se na distinção entre existência e essência, no fato de a existência do homem ficar alheada de sua essência, de na realidade ele não ser o que é potencialmente, ou, por outras palavras, de ele não ser o que deveria ser, e de ele dever ser aquilo que poderia ser.

Para Marx, o processo de alienação manifesta-se no trabalho e na divisão do trabalho. O trabalho é, para ele, o relacionamento ativo do homem com a natureza, a criação de um mundo novo, incluindo a criação do próprio homem. (A atividade intelectual, está claro, para Marx, sempre é trabalho, como a atividade manual ou a artística). Com a expansão da propriedade privada e da divisão do trabalho, todavia, o trabalho perde sua característica de expressão do poder do homem; o trabalho e seus produtos assumem uma existência à parte do homem, de sua vontade e de seu planejamento. “O objeto produzido pelo trabalho, seu produto, agora se opõe a ele como um ser estranho, como uma força independente do produtor. O produto do trabalho é trabalho humano incorporado em um objeto e transformado em coisa material; esse produto é uma objetificação do trabalho humano”[66]. O trabalho humano é alienado porque trabalhar deixou de fazer parte da natureza do trabalhador e, “consequentemente, ele não se realiza em seu trabalho mas nega-se a si mesmo, tem uma impressão de sofrimento em vez de bem-estar, não desenvolve livremente suas energias mentais e físicas, mas fica fisicamente exaurido e mentalmente aviltado. O trabalhador, portanto, só se sente à vontade quando de folga, ao passo que no trabalho se sente constrangido[67]. Assim, no ato de produzir, a relação do trabalhador com sua própria atividade é vivenciada “como algo alheio e não pertencente a ele, a atividade como sofrimento (passividade), o vigor como impotência, a criação como emasculação[68]”. Enquanto o homem se torna, pois, alienado de si mesmo, o produto de seu trabalho torna-se “um objeto estranho que o domina. Esta relação é ao mesmo tempo a relação com o mundo sensorial externo, com objetos naturais, como um mundo estranho e hostil[69]”. Marx ressalta dois pontos: 1) no processo do trabalho, e especialmente do trabalho nas condições do capitalismo, o homem se afasta de suas próprias faculdades criadoras, e 2) os objetos de seu próprio trabalho tornam-se seres estranhos, e eventualmente o dominam, tornando-se forças independentes do produtor. “O trabalhador existe para o processo da produção, e não este para aquele[70]”.

É bastante difundida uma incompreensão de Marx neste assunto, mesmo entre socialistas. Crê-se ter Marx falado primordialmente da exploração econômica do trabalhador, e do fato de sua participação no produto não ser tão grande quanto deveria, ou que o produto deveria pertencer a ele em vez de ao capitalista. No entanto, consoante já mostrei anteriormente, o Estado como capitalista, tal como existe na União Soviética não teria sido mais bem recebido por Marx do que o capitalista particular. Ele não está interessado primariamente na igualização da renda. Está interessado na libertação do homem de um gênero de trabalho que destrói sua individualidade, converte-o em coisa, e torna-o escravo de coisas. Assim como Kierkegaard estava interessado na salvação do indivíduo, também Marx estava, e sua crítica na sociedade capitalista não é dirigida contra seu processo de distribuição da renda, mas contra seu modo de produção, sua destruição da individualidade e sua escravização do homem, não pelo capitalista, mas a escravização do homem – trabalhador e capitalista – por coisas e circunstâncias feitas por ele próprio.

Marx vai ainda mais longe. No trabalho não alienado, o homem não só se realiza como indivíduo, mas também como um ente-espécie. Para Marx, tal como para Hegel, e muitos outros pensadores do iluminismo, cada indivíduo representa a espécie, isto é, a humanidade como um todo, a universalidade do homem: o desenvolvimento do homem conduz ao desabrochar de toda a humanidade nele existente. No processo de trabalhar, ele “não mais se reproduz a si mesmo a si mesmo meramente de forma intelectual, como na consciência, mas ativamente e em sentido real, e vê seu próprio reflexo em um mundo que ele construiu. Enquanto, por conseguinte, o trabalho alienado afasta do homem o objeto da produção, também afasta dele sua vida como espécie, sua objetividade real como ente-espécie, e muda sua superioridade sobre os animais em uma inferioridade, na medida em que seu corpo inorgânico, a natureza, é afastado dele. Exatamente como o trabalho alienado transforma a atividade livre e dirigida pela própria pessoa em um meio de existência física. A consciência de espécie é transformada por intermédio da alienação de modo que a vida como espécie se torna para ele apenas um meio[71]”.

Como indiquei antes, Marx admitiu que a alienação do trabalho, apesar de existir através de toda a História, atinge o auge na sociedade capitalista, e que a classe trabalhadora é a mais alienada de todas. Esta suposição baseou-se na ideia de que o operário, não participando da direção do trabalho, sendo “empregado” como parte das máquinas a que serve, é transformado em coisa, em sua dependência do capital. Por isso, para Marx, “a emancipação da sociedade, da propriedade privada, da servidão, assume a forma política de emancipação dos operários; não na acepção da emancipação destes ser a única em jogo, mas por esta abranger a emancipação da humanidade como um todo. Pois toda servidão humana está abrangida na relação entre trabalhador e produção, e todos os tipos de servidão são apenas modificações ou consequências desta relação[72]”.

Novamente deve ser salientado que a meta de Marx não se limita à emancipação da classe operária, mas visa a emancipação de todo ser humano através do retorno à atividade não-alienada, e portanto livre, de todos os homens, e a uma sociedade em que o homem deixe de ser “uma monstruosidade aleijada, tornando-se um ser humano plenamente evoluído[73]”. O conceito marxista do produto alienado do trabalho vem expresso em um dos pontos mais fundamentais expostos em O Capital, no que ele denomina “o fetichismo das mercadorias”. A produção capitalista transforma as relações de indivíduos em qualidades de coisas em-si, e esta transformação constitui a natureza da mercadoria na produção capitalista. “Não poderia ser de outra maneira, em uma forma de produção em que o trabalhador existe para satisfazer a necessidade de expansão própria dos valores existentes, em vez de, ao contrário, a riqueza material existir para satisfazer as necessidades de desenvolvimento por parte do trabalhador. Como na religião o homem é governado pelos produtos de seu próprio cérebro, assim na produção capitalista é governado pelos produtos de suas próprias mãos.[74]” “A maquinaria é adaptada à fragilidade do ser humano, de molde a converter o ser humano fraco em uma máquina.[75]

A alienação do trabalho na produção humana é muito maior do que o era quando a produção se baseava nos ofícios manuais e na manufatura. “Nos ofícios manuais e na manufatura, o trabalhador utiliza-se de uma ferramenta; na fábrica, a máquina utiliza-se dele. Lá, os movimentos do instrumento de trabalho procediam dele; aqui, é o movimento das máquinas que ele tem de acompanhar. Na manufatura, os trabalhadores são partes de um mecanismo vivo; na fábrica, temos um maquinismo vivo, independente do operário, que se torna mero apêndice vivo[76].” É da máxima importância, para se compreender Marx, ver como o conceito de alienação foi e continuou sendo o ponto focal do pensamento do jovem Marx que escreveu os Manuscritos Econômicos e Filosóficos, e do “velho” Marx que escreveu O Capital. Além dos exemplos dados, as seguintes passagens, uma dos Manuscritos e outra de O Capital, devem deixar bem clara essa continuidade:

“Este fato simplesmente sugere que o objeto produzido pelo trabalho, seu produto, agora se lhe contrapõe como um ser estranho, como uma força independente do produtor. O produto do trabalho humano é trabalho humano incorporado em uma objetificação do trabalho humano. A execução do trabalho é concomitantemente sua objetificação. A execução do trabalho aparece na esfera da Economia Política como uma perversão do operário, a objetificação como uma perda e como servidão ante o objeto, e a apropriação como alienação[77].

Eis o que Marx escreveu em O Capital: “Dentro do sistema capitalista, todos os processos para aumentar a produtividade social do trabalho são empregados à custa do trabalhador individual; todos os meios para o desenvolvimento da produção transformam-se em meios de dominação e exploração dos produtores; eles mutilam o trabalhador, reduzindo-o a um fragmento de homem, rebaixam-no ao nível do apêndice de uma máquina, destroem todo resquício de atrativo do trabalho dele e convertem-no em uma ferramenta odiada; afastam-no das potencialidades intelectuais do processo do trabalho, na mesma proporção em que a ciência é nele incorporada como um poder independente[78].”

Também o papel da propriedade privada (claro que não como propriedade de objetos de uso, mas como capital que contrata trabalhadores) já foi visto nitidamente em sua função alienadora pelo jovem Marx: “A propriedade privada”, escreveu ele, “é, por conseguinte, o produto, o resultado necessário, do trabalho alienado, da relação eterna do operário com a natureza e consigo mesmo. A propriedade privada, pois, deriva-se da análise do conceito de trabalho alienado; isto é, homem alienado, vida alienada, e homem separado[79].”

Não é só o mundo das coisas que se torna superior ao homem, mas também as circunstâncias sociais e políticas por ele criadas se tornam seus senhores. “Esta consolidação do que nós mesmos produzimos, que se converte em um poder objetivo acima de nós, escapando a nosso controle, frustrando nossas expectativas, reduzindo a nada os nossos cálculos, é um dos principais fatores da evolução histórica até a presente data[80].” O homem alienado, que julga ter-se tornado o senhor da natureza, tornou-se escravo das coisas e das circunstâncias, o apêndice impotente de um mundo que é simultaneamente a expressão congelada de seus próprios poderes.

Para Marx, a alienação no processo de trabalho, do produto deste e das circunstâncias está inseparavelmente ligada à alienação de si próprio, de seus semelhantes e da natureza. “Uma consequência direta da alienação do homem do produto de seu trabalho, da atividade de sua vida e da vida de sua espécie é que o homem é alienado dos outros homens. Quando o homem se enfrenta a si mesmo, também enfrenta os outros homens. O que é verdade quanto à relação entre o homem e seu trabalho, o produto de seu trabalho e ele próprio, também é verdade quanto à sua relação com outros homens, e com o trabalho e os objetos do trabalho deles. De maneira geral, a afirmação de o homem estar alienado da vida da espécie significa cada homem estar alienado dos outros e cada um destes estar alienado, analogamente, na vida humana[81]”. O homem alienado não o está apenas dos outros homens; ele está alienado da essência humanidade, de seu “ente-espécie”, tanto em seus atributos naturais como espirituais. Essa alienação da essência humana leva a um egoísmo existencial, descrito por Marx como a essência humana do homem convertendo-se em “um meio para a existência individual dele. Ele [o trabalho alienado] aliena o homem de seu próprio corpo, natureza externa, vida mental e vida humana[82]”.

O conceito de Marx alude, nisto, ao princípio kantista de o homem sempre dever ser um fim em si mesmo, e jamais um meio para um fim. Mas ele amplia o princípio ao asseverar que a essência humana do homem nunca deve converter-se em meio para a existência individual. O contraste entre a opinião de Marx e o totalitarismo comunista não poderia ser manifestado de maneira mais radical; a humanidade no homem, fala Marx, nunca deve vir a ser sequer um meio para a existência individual dele – muito menos poderá ser considerada um meio para o Estado, a classe ou a nação.

A alienação conduz à perversão de todos os valores. Fazendo da economia e de seus valores – “lucro, trabalho, poupança e sobriedade[83]” – a meta suprema da vida, o homem deixa de desenvolver os valores verazmente morais, “as riquezas de uma boa consciência, de virtude, etc., mas como poderei ser virtuoso se não estiver vivo, e como poderei ter uma boa consciência se não tomar conhecimento de nada?[84]”. Num estado de alienação, cada esfera da vida, a econômica e a moral, é independente da outra, “cada uma se concentra em uma área específica de atividade alienada e está, ela própria, alienada da outra[85]”.

Marx reconheceu o que sucede com as necessidades humanas em um mundo alienado, e previu realmente, com nitidez espantosa, a conclusão dessa marcha conforme é hoje em dia perceptível. Enquanto em uma perspectiva socialista a importância capital deveria ser atribuída “à riqueza das necessidades humanas e, consequentemente, também a um novo modo de produção e a um novo objeto de produção”, a “uma nova manifestação dos poderes humanos e a um novo enriquecimento do ser humano[86]”, no mundo alienado do capitalismo as necessidades não são manifestações de poderes latentes do homem, isto é, elas não são necessidades humanas; no capitalismo, “cada homem especula sobre como criar uma nova necessidade em outro homem a fim de força-lo a um novo sacrifício, colocá-lo em uma nova dependência, e incitá-lo a um novo tipo de prazer e, por conseguinte, à ruína econômica. Todos tentam estabelecer sobre os outros um poder estranho para com isso lograr a satisfação de sua própria necessidade egoísta. Com a massa de objetos, portanto, cresce também o rol de entidades estranhas a que o homem fica sujeito. Todo produto novo é uma nova potencialidade de embuste e roubo mútuos. O homem torna-se cada vez mais pobre como homem; ele tem necessidade cada vez maior de dinheiro a fim de apossar-se do ser hostil. O poder do dinheiro diminui diretamente com o aumento do volume de produção, isto é, sua necessidade cresce com o poder crescente do dinheiro. A necessidade de dinheiro, por conseguinte, é a necessidade real criada pela economia moderna, e a única necessidade por esta criada. A quantidade de dinheiro cada vez mais se torna sua única qualidade importante. Assim como ela reduz toda sua própria evolução, a uma entidade quantitativa. O excesso e a imoderação passam a ser seus verdadeiros padrões. Isso é demonstrado subjetivamente em parte no fato de a expansão da produção e das necessidades se converter em uma subserviência engenhosa e sempre calculista a apetites desumanos, depravados, antinaturais e imaginários. A propriedade privada não sabe como transformar a necessidade crua em necessidade humana; seu idealismo é fantasia, capricho e ilusão. Eunuco algum bajula seu tirano de maneira mais vergonhosa ou procura estimular-lhe o apetite embotado por meios mais infames, para granjear qualquer favor, do que o eunuco da indústria, o homem de empresa, para adquirir algumas moedas de prata ou para atrair o ouro da bolsa do seu bem-amado próximo. (Todo produto é uma isca por meio da qual o indivíduo tenta apanhar a essência da outra pessoa, o dinheiro dela. Toda necessidade real ou potencial é uma fraqueza que trará o passarinho para o visgo. Exploração universal da vida humana em comum. Assim como toda imperfeição do homem é um vínculo com o céu, um ponto em que o coração dele é acessível ao sacerdote, também cada necessidade é uma oportunidade para se achegar ao próximo com ar de amizade, e dizer: “Caro amigo, dar-lhe-ei aquilo de que você precisa, mas você conhece a conditio sine qua non. Você sabe qual tinta tem de usar para se entregar a mim. Eu o trapacearei ao proporcionar-lhe satisfação.”) O homem de empresa concorda com os mais depravados caprichos de seu próximo, desempenha o papel de alcoviteiro entre ele e suas necessidades, desperta apetites mórbidos nele, e presta atenção a cada fraqueza a fim de, posteriormente, reivindicar a remuneração por esse serviço de amor[87]”. O homem que assim se tornou sujeito a suas necessidades alienadas é “um ser mental e fisicamente desumanizado – a mercadoria com consciência e atividade próprias[88]”. Esse homem mercadoria só conhece um meio de relacionar-se com o mundo exterior: o de tê-lo e consumi-lo (usá-lo). Quanto mais alienado estiver, tanto mais a sensação de ter e usar constituirá sua relação com o mundo. “Quanto menos você é, quanto menos exprime sua vida, tanto mais você tem, tanto maior é sua vida alienada e maior a poupança de seu ser alienado[89].”

Só há uma correção introduzida pela História no conceito marxista de alienação. Marx acreditava ser a classe operária a mais alienada; daí a emancipação da alienação ter de começar necessariamente pela libertação dessa classe. Marx não previu até que ponto a alienação chegaria a ser o destino da vasta maioria das pessoas, especialmente do segmento cada vez maior da população que manipula símbolos e homens, em vez de máquinas. Se possível, o empregado de escritório, o comerciário, o diretor de empresa estão hoje em dia mais alienados ainda do que o operário especializado. O funcionamento deste último ainda depende da expressão de certas qualidades pessoais, como habilidade, confiança de que é merecedor, etc., e ele não é obrigado a vender sua força “personalidade”, seu sorriso, suas opiniões, ao ser contratado; já os manipuladores de símbolos não são contratados apenas por sua perícia, mas também por todas as qualidades pessoais que os tornam “acondicionamentos de personalidades atraentes”, de fácil trato e manuseio. Eles são os verdadeiros “homens da organização” – mais ainda que o trabalhador especializado – cujo ídolo é a empresa. Porém, no que toca ao consumo, não há diferença entre trabalhadores manuais e membros da burocracia. Todos anseiam por coisas, coisas novas, para ter e usar. Eles são os receptores passivos, os consumidores, presos e debilitados pelas próprias coisas que satisfazem suas necessidades sintéticas. Eles não se relacionam com o mundo produtivamente, apreendendo-o em toda sua realidade e, com isto, unindo-se a ele; eles adoram coisas, as máquinas que produzem as coisas – e nesse mundo alienado sentem-se estranhos e bastante sozinhos. A despeito de ter Marx subestimado o papel da burocracia, sua descrição geral poderia perfeitamente ser escrita hoje em dia: “A produção não produz simplesmente o homem como mercadoria, o homem-mercadoria, o homem no papel de utilidade; ela o produz em harmonia com este papel como um ser espiritual e fisicamente desumanizado – [a] imoralidade, deformação e embrutecimento dos trabalhadores e dos capitalistas. Seu produto é a mercadoria com consciência e atividades próprias… a mercadoria humana[90].”

Até onde as coisas e circunstâncias por nós mesmos criadas se tonaram nossos senhores, Marx dificilmente poderia prever; contudo, nada poderia provar mais drasticamente sua profecia do que o fato de toda a raça humana estar hoje prisioneira de armas nucleares por ela criadas, e das instituições políticas também por ela elaboradas. Uma humanidade aterrorizada aguarda angustiada para ver se será salva do poderio das coisas que criou, da ação cega das burocracias por ela designadas.

Capítulo VI – Conceito Marxista do Socialismo

O conceito marxista do socialismo deflui de seu conceito do homem. A esta altura já deve estar claro que, de acordo com esse conceito, o socialismo não é uma sociedade de indivíduos arregimentados e automatizados, independente de haver ou não igualdade de renda e de estarem bem alimentados e bem vestidos. Não é uma sociedade onde os indivíduos sejam subordinados ao Estado, à máquina, à burocracia. Ainda que o Estado fosse, como “capitalista abstrato”, o empregador, ainda que “a totalidade do capital social estivesse nas mãos de um único capitalista ou de uma única empresa capitalista”[91], isso não seria socialismo. Com efeito, conforme Marx diz assaz claramente nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, “o comunismo não é em si a meta da revolução humana”. Qual, então, é essa meta?

Bem evidentemente, a meta do socialismo é o homem. É criar uma forma de produção e uma organização da sociedade onde o homem possa superar a alienação de seu produto, de seu trabalho, de seu semelhante, de si mesmo e da natureza; na qual ele possa regressar a si mesmo e apreender o mundo com suas próprias forças, tornando-se, destarte, unido ao mundo. O socialismo, para Marx, era, nas palavras de Paul Tillich, “um movimento de desistência contra a destruição do amor na realidade social”[92].

Marx exprimiu o alvo do socialismo com grande nitidez no fim do terceiro volume de O Capital: “De fato, o reino da liberdade não começa até ser ultrapassado o ponto em que é exigido o trabalho sob a premência da necessidade e da utilidade externa. Na própria natureza das coisas, ele fica além da esfera da produção material em sentido restrito. Tal como o selvagem tem de lutar com a natureza para satisfazer suas necessidades, para conservar sua vida e reproduzi-la, também o homem civilizado tem de fazê-lo, e tem de fazê-lo em todas as formas de sociedade e sob todos os possíveis sistemas de produção. Com sua evolução, o reino da necessidade natural expande-se, porque suas precisões crescem; ao mesmo tempo, porém, aumentam as forças de produção, por meio das quais aquelas são atendidas. A liberdade neste campo não pode consistir senão no fato de o homem socializado, os produtores associados regularem seu intercâmbio com a natureza racionalmente, submeterem-se ao controle comum deles em vez de serem governados por ela como por uma força cega; eles realizam sua tarefa com o mínimo dispêndio de energia e nas condições mais compatíveis com sua natureza humana e mais dignas delas. Mas continua sendo sempre um reino de carência. Para além, inicia-se o desenvolvimento da força humana, que é seu próprio fim, o verdadeiro reino da liberdade, que, no entanto, só pode florescer tomando como base aquele mundo de carência.[93]

Marx manifesta, nesta passagem, todos os elementos essenciais do socialismo. Primeiro, o homem produz de forma associativa, e não competitiva; ele produz racionalmente e de maneira não-alienada, equivalendo a dizer que mantém a produção sob seu controle, em vez de ser dirigido por ela como por uma força cega. Isso claramente exclui um conceito de socialismo onde o homem seja manobrado por uma burocracia, mesmo que esta governe toda a economia do Estado, em vez de apenas a de uma grande empresa. Quer dizer que o indivíduo participa ativamente do planejamento e da execução dos planos; significa, em síntese, a concretização da democracia política e industrial. Marx esperava que, por esta nova forma de uma sociedade não-alienada, o homem se tornaria independente, dependeria exclusivamente de si próprio e não mais seria invalidado pelo sistema alienado de produção e consumo; que ele seria deveras o senhor e o criador de sua própria vida, e em consequência poderia tornar a viver sua principal ocupação ao invés de produzir os meios para viver. O socialismo, para Marx, nunca foi por si mesmo a consecução da vida, porém a condição para essa consecução. Quando o homem tiver construído uma forma racional e não-alienada de sociedade, terá a oportunidade para iniciar com o que é a meta da vida: “o desenvolvimento das forças humanas, que é seu próprio fim, o verdadeiro reino da liberdade”. Marx, o homem que todos os anos lia as obras de Ésquilo e Shakespeare, que em si próprio deu vida às maiores obras do pensamento humano, nunca teria sonhado que sua ideia de socialismo pudesse ser interpretada como tendo por meta o Estado de “bem-estar” ou “obreiro”, com todo mundo bem alimentado e bem vestido. O homem, segundo Marx, criou no decurso da História uma cultura que ele terá liberdade de tornar sua quando se livrar dos grilhões não só da pobreza econômica, mas a pobreza em sua fé no homem, nas potencialidades intrínsecas e reais da essência do homem que se formaram ao longo da História. Ele encarou o socialismo como a condição para a liberdade e criatividade humanas, não como constituindo em si o objetivo da vida do homem.

Para Marx, o socialismo (ou comunismo) não é uma fuga, abstração ou perda do mundo objetivo que os homens criaram pela objetividade de suas faculdades. Não é um regresso empobrecido à simplicidade antinatural e primitiva. É, antes, o primeiro real aparecimento, a genuína efetivação da natureza do homem como algo real. O socialismo, para Marx, é uma sociedade que permite a efetivação da essência do homem superando sua alienação. É nada mais nada menos que a criação das condições para o homem verdadeiramente livre, racional, ativo e independente; é a consecução do objetivo profético: a destruição dos ídolos.

Ter podido Marx ser encarado como um inimigo da liberdade só foi possibilitado pela fantástica fraude de Stalin ao presumir falar em nome de Marx, associada à fantástica ignorância existente no mundo ocidental a respeito de Marx. Para ele, o alvo do socialismo era a liberdade, mas liberdade em um sentido muito mais radical que o concebido pela democracia existente – liberdade no sentido de independência, apoiada no fato de o homem valer-se a si próprio, utilizando suas próprias forças e relacionando-se produtivamente com o mundo. “A liberdade” disse Marx, “é em tão alto grau a essência do homem que até seus inimigos percebem isso… Nenhum homem combate a liberdade: no máximo, combate a liberdade dos outros. Toda espécie de liberdade, portanto, sempre existiu, às vezes como um privilégio especial, outras vezes como um direito universal”[94].

O socialismo, para Marx, é uma sociedade que atende às necessidades do homem. Muitos, porém, indagarão: não é isso exatamente o que faz o moderno capitalismo? Não estão as nossas grandes empresas mais do que ansiosas por atender às necessidades do homem? E as grandes companhias de publicidade são as patrulhas de reconhecimento que, por meio de enormes esforços, desde o levantamento até “análises de motivações”, procuram descobrir quais são as necessidades do homem? Em verdade, só se pode entender o conceito de socialismo uma vez entendida a distinção feita por Marx entre as necessidades verdadeiras do homem e as suas necessidades sintéticas, artificialmente produzidas.

Segundo se conclui do conjunto do conceito do homem, suas necessidades reais têm raízes na natureza dele: esta distinção entre necessidades reais e falsas só é possível partindo de uma imagem da natureza do homem e das verdadeiras necessidades humanas implantadas nessa natureza. As verdadeiras necessidades do homem são aquelas cuja satisfação é indispensável à efetivação de sua essência como ser humano. Conforme Marx diz: “A existência daquilo que eu verdadeiramente amo é sentida por mim como uma necessidade, como uma exigência, sem a qual minha essência não pode ser realizada, satisfeita, completa”[95]. Somente baseando-se em um conceito específico da natureza do homem pode Marx estabelecer a diferença entre necessidades verdadeiras e falsas do homem. De maneira puramente subjetiva, as necessidades falsas são experienciadas como sendo urgentes e reais tal e qual a verdadeiras, e sob um ponto de vista puramente subjetivo não poderia haver um critério para fazer a distinção. [Na terminologia moderna, poder-se-ia diferençar entre necessidades neuróticas e racionais (sadias)][96]. Frequentemente, o homem só é consciente de suas necessidades falsas e inconsciente das reais. A missão do analista da sociedade é exatamente despertar o homem para tomar conhecimento das ilusórias necessidades falsas e da realidade de suas necessidades verdadeiras. O principal objetivo do socialismo, para Marx, é a identificação de efetivação das necessidades verdadeiras do homem que só serão possíveis quando a produção servir ao homem e o capital cessar de criar e explorar as falsas necessidades do homem.

O conceito que Marx fazia do socialismo era de um protesto, como ocorre com toda a filosofia existencialista, contra a alienação do homem. Se, conforme assevera Aldous Huxley, “nossas medidas econômicas, sociais e internacionais do presente são baseadas, em grande proporção, no desamor organizado[97], então o socialismo de Marx é um protesto contra exatamente esse desamor, contra a exploração do homem pelo homem, e contra sua atitude exploradora face à natureza, o esbanjamento de nossos recursos naturais a expensas da maioria dos homens de hoje, e mais ainda das gerações vindouras. O homem não-alienado, que é o objetivo do socialismo segundo demonstramos antes, é o homem que não “domina” a natureza, porém se une a ela, que é sensível e suscetível aos objetos, de modo que estes se tornam vivos para ele.

Não quer tudo isto dizer que o socialismo de Marx é a concretização dos mais profundos impulsos religiosos comuns às grandes religiões humanistas do passado? De fato, é o que sucede, se entendemos que Marx, à semelhança de Hegel e de muitos outros, exprime sua preocupação com a alma do homem, não em linguagem teísta, mas filosófica.

Marx combateu a religião exatamente por ela estar alienada e não atender às necessidades verdadeiras do homem. A luta de Marx contra Deus é, na realidade, uma luta contra o ídolo a que chamam de Deus. Já na juventude ele escreveu, como lema de uma dissertação: “Não são ateus os que desprezam os deuses das massas, porém aqueles que atribuem as opiniões das massas aos deuses”. O ateísmo de Marx é a forma mais adiantada de misticismo racional, mais próximo de Meister Eckhart ou do budismo Zen do que o estão muitos dos defensores de Deus e da religião que o acusam de “impiedade”.

Não é possível falar da atitude de Marx ante a religião sem mencionar a conexão entre sua filosofia da história e do socialismo com a esperança messiânica dos profetas do Antigo Testamento e as raízes espirituais do pensamento grego e romano. A esperança messiânica é, deveras, um característico ímpar no pensamento ocidental. Os profetas do Antigo Testamento não são apenas, como Lao Tsé ou Buda, líderes espirituais; eram igualmente chefes políticos. Eles mostram ao homem uma visão daquilo que deveria ser, confrontando com as alternativas entre as quais deve escolher. A maior parte dos profetas do Antigo Testamento compartilha da ideia de que a história tem um sentido, de que o homem se aperfeiçoa com o correr da História, e que acabará criando uma ordem social de paz e justiça. Mas, para os profetas, paz e justiça não significam a ausência de guerra e de injustiça. Paz e justiça são conceitos entranhados no conjunto do conceito do homem no Antigo Testamento. O homem, antes de ter consciência de si próprio, isto é, antes de ser humano, vive em união com a natureza (Adão e Eva no Paraíso). O primeiro ato de Liberdade, que é a capacidade de dizer “não”, abre-lhe os olhos, e ele se vê como um estranho no mundo, acossado por conflitos com a natureza, entre o homem e seu semelhante, entre o homem e a mulher. O processo da História é aquele graças ao qual o homem desenvolve suas qualidades especificamente humanas, suas faculdades de amor e compreensão; e uma vez haja atingido a plenitude da humanidade, pode regressar à perdida união com o mundo. Esta nova união, entretanto, é diferente da anterior, da pré-consciente, que existia antes de a História principiar. Ela é a reconciliação do homem consigo mesmo, com a natureza e com seu semelhante, baseada no fato de o homem ter gerado a si próprio no decurso da História. No pensamento do Antigo Testamento, Deus é revelado na história (“O Deus de Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó”), e na história, não em uma situação que transcenda a história, se acha a salvação do homem. Significa isso estarem as metas espirituais do homem inseparavelmente ligadas à transformação da sociedade; a política fundamentalmente não é um domínio capaz de ser divorciado dos valores morais e da autorrealização do homem.

Ideias corretas surgiram no pensamento grego (e helenista) e romano. Desde Zenão, o fundador da filosofia estoica, até Sêneca e Cícero, os conceitos de direito natural e de igualdade do homem exerceram poderoso influxo nas mentes dos homens e, juntamente com a tradição profética, são os alicerces do pensamento cristão.

Embora a cristandade, especialmente a partir de Paulo, tenha tendido a transformar o conceito histórico de salvação em um conceito “sobrenatural”, puramente espiritual, e embora a Igreja se tornasse o sucedâneo da “boa sociedade”, essa transformação não foi absolutamente completa. Os primeiros padres da Igreja manifestam uma crítica radical ao Estado de então; o pensamento cristão do fim da Idade Média critica a autoridade secular e o Estado sob o ponto de vista do direito divino e do natural. Esse modo de ver salienta que sociedade e Estado não devem divorciar-se dos valores espirituais arraigados na revelação e na razão (“intelecto”, na acepção escolástica do termo). Além disso, a ideia messiânica foi expressa em formas ainda mais radicais nas seitas cristãs anteriores à Reforma, e no pensamento de muitos grupos cristãos depois desta, até a Sociedade dos Amigos de nossos dias.

Sem embargo, o curso principal do pensamento messiânico após a Reforma não mais se exprimiu em ideias religiosas, porém em ideias filosóficas, históricas e sociais. Exprimiu-se, de maneira um tanto oblíqua, nas grandes utopias do Renascimento, em que o mundo novo não está em um futuro distante, mas em lugar remoto. Foi manifestado no pensamento dos filósofos do iluminismo e das revoluções francesa e inglesa. Encontrou sua última e mais completa expressão na conceituação do socialismo feita por Marx. Qualquer que tenha sido nele a influência direta do pensamento do Antigo Testamento, por intermédio de socialistas como Moses Hess, sem dúvida a tradição messiânica influenciou-o indiretamente graças ao pensamento dos filósofos iluministas e especialmente as ideias brotadas de Spinoza, Goethe e Hegel. O que é comum ao pensamento profético, às ideias cristãs do século XIII, iluminismo do século XVIII[98] e socialismo do XIX é a noção de que o Estado (sociedade) e os valores espirituais não podem divorciar-se uns dos outros; que a política e os valores morais são indivisíveis. Essa ideia foi atacada pelos conceitos seculares do Renascimento (Maquiavel) e novamente pelo secularismo do Estado Moderno. Parece que o homem ocidental, sempre que ficou sob a influência de gigantescas conquistas materiais, entregou-se sem restrições às novas forças adquiridas, embriagado com estas, esquecendo-se de si mesmo. A elite dessas sociedades ficou obcecada com o desejo de poder, luxo e direção de homens, e as massas acompanharam-na. Isso aconteceu no Renascimento com sua nova ciência, o descobrimento do globo, as prósperas Cidades-Estados da Itália setentrional: aconteceu, uma vez mais, na expansão expositiva da primeira revolução industrial, assim como na segunda, atualmente em curso.

Esta última expansão, todavia, foi complicada pela presença de outro fator. Se o Estado ou a sociedade se destina atender à concretização de certos valores espirituais, existe o perigo de uma autoridade suprema dizer ao homem – e obrigá-lo – a pensar e a conduzir-se de certa maneira. A incorporação de determinados valores objetivamente válidos na vida social tende a produzir autoritarismo. A autoridade espiritual da Idade Média era a Igreja Católica. O Protestantismo combateu essa autoridade, a princípio prometendo maior independência para o indivíduo, somente para fazer do Estado opulento o governante indisputado e arbitrário do corpo e alma do homem. A rebeldia contra a autoridade do príncipe ocorreu em nome da nação, e, por certo tempo, o Estado nacional prometeu ser o representante da liberdade. Em breve, porém, o Estado nacional dedicou-se à proteção material dos que possuíam o capital, podendo assim explorar o trabalho da maioria da população. Certas classes da sociedade protestaram contra esse novo autoritarismo e insistiram na libertação do indivíduo da interferência da autoridade secular. Esse postulado de liberalismo, propenso a proteger a “liberdade”, levou, por outro lado, à insistência de que Estado e sociedade não devem procurar concretizar a “liberdade para”, ou seja, o liberalismo teve que insistir não apenas na separação da Igreja do Estado, mas também de negar fosse função do Estado auxiliar e efetivar certos valores morais e espirituais; esses valores, por hipótese, eram exclusivamente da alçada do indivíduo.

O socialismo (em sua forma marxista e nas outras) retornou à noção da “boa sociedade” como condição para realização das necessidades espirituais do homem. Ele era antiautoritário, tanto face à Igreja quanto ao Estado, de modo que visava ao eventual desaparecimento do Estado e ao estabelecimento de uma sociedade composta de indivíduos cooperando voluntariamente. Sua meta era uma reconstrução da sociedade de tal maneira que fizesse dela a base para um verdadeiro regresso do homem a si mesmo, sem a presença daquelas forças autoritárias que limitavam e empobreciam a inteligência do homem.

Assim, a forma marxista e as outras formas de socialismo são herdeiras do messianismo profético, do sectarismo quiliasta cristão, do tomismo do século XIII, das ideias utópicas renascentistas e do iluminismo do século XVIII[99]. Elas constituem a síntese da ideia profético-cristã da sociedade como o plano de realização espiritual e da ideia de liberdade individual. Por essa razão, opõem-se à Igreja devido à restrição exercida por esta sobre a mente, e ao liberalismo por causa de seu isolamento da sociedade e dos valores morais. Opõem-se ao estalinismo e ao kruschevismo por força de seu autoritarismo, bem como de seu desprezo aos valores humanistas.

O socialismo é o repúdio da auto-alienação do homem, a volta do homem como ser humano real. “Ele é a solução definitiva do antagonismo entre homem e natureza e entre homem e homem. É a verdadeira solução do conflito entre existência e essência, entre objetificação e auto-afirmação, entre liberdade e determinismo, entre indivíduo e espécie. Ele é a resposta ao enigma da História e tem consciência disso[100][101]. Para Marx, o socialismo significa a ordem social que permite o regresso do homem a si mesmo, a identidade entre existência e essência, a superação do isolamento e antagonismo entre sujeito e objeto, humanização da natureza; significa um mundo onde o homem não mais é um estranho entre estranhos, mas está no mundo dele, onde se sente em casa.

Capítulo VII: A Continuidade do Pensamento de Marx

Nossa apresentação do conceito marxista da natureza humana, alienação, atividade, etc., seria bastante unilateral e, com efeito, desorientadora, se estivessem certos os que alegam terem as ideias do “jovem Marx”, contidas nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, sido abandonadas pelo Marx mais velho e amadurecido, como reminiscências de um passado idealista ligado aos ensinamentos de Hegel. Se eles estivessem com a razão, poder-se-ia ainda preferir o jovem Marx ao Marx mais velho, e desejar vincular o socialismo ao primeiro em vez de ao segundo. Contudo, felizmente, não é mister tal fragmentação de Marx em dois. O fato é que as ideias básicas sobre o homem, como Marx as exprimiu nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, e as manifestadas pelo Marx mais velho em O Capital não sofreram nenhuma modificação fundamental; Marx não repudiou suas opiniões primitivas, como pretendem os representantes da tese acima mencionada.

Primeiro que tudo, quem são os que sustentam haver contradição nas opiniões do “jovem Marx” e do “Marx velho” acerca do homem? Na maioria, são comunistas russos; nem podem eles deixar de fazer isso, isto como o ideário deles, tanto quanto seu sistema social e político é, sob todos os aspectos, uma contestação do humanismo de Marx. No sistema deles, o homem é o servo do Estado e da produção, antes que a meta suprema de todas as providências sociais. A meta de Marx, o desenvolvimento da individualidade da personalidade humana, é negada no sistema soviético com maior amplitude ainda que no capitalismo contemporâneo. O materialismo dos comunistas está muito mais próximo do materialismo mecanicista da burguesia do século XIX, combatido por Marx, do que do materialismo histórico desse.

O Partido Comunista da União Soviética expressou este modo de ver ao obrigar G. Lukács, o primeiro a reviver o humanismo de Marx, a uma “confissão” de seus erros, quando ele foi à Rússia em 1934, depois de se ver forçado a fugir dos nazistas. Analogamente, Ernst Bloch, que apresenta a mesma ênfase no humanismo marxista em seu brilhante livro Das Prinzips Hoffnung (“O Princípio Esperança”)[102], sofreu ataques severos de escritores do Partido Comunista, malgrado seu livro conter diversas referências elogiosas ao comunismo soviético. À parte dos escritores comunistas, recentemente Daniel Bell adotou a mesma posição ao afirmar que a concepção do humanismo de Marx baseada nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos “não é a do Marx histórico”. Conquanto se possa apreciar tal maneira de encarar’, diz Bell, “é só colaborar para aumentar os mitos ler esse conceito de novo como o bem central de Marx.[103]

É verdade que os intérpretes clássicos de Marx, quer fossem reformistas como Bernstein, ou marxistas ortodoxos como Kautsky, Plekhanov, Lênin ou Bukharin, não explicaram a obra de Marx em função de seu existencialismo humanista. Dois fatos, sobretudo, esclarecem o assunto. Primeiro, o de os Manuscritos Econômicos e Filosóficos não terem sido publicados antes de 1932, e até então serem desconhecidos mesmo em manuscritos; e outro, o de Ideologia Alemã nunca ter sido publicada integralmente até aquele mesmo ano, sendo que em parte só foi em 1926[104]. Naturalmente, tais fatos contribuíram bastante para a interpretação deturpada e unilateral das ideias de Marx pelos escritores acima citados. Contudo, o fato de esses trabalhos de Marx terem sido mais ou menos desconhecidos até o princípio das décadas de 1920 e 1930, respectivamente, não é de forma alguma suficiente para explicar a desconsideração do humanismo marxista pela interpretação “clássica”, posto que O Capital e outros trabalhos publicados de Marx, como a Crítica à Filosofia do Direito de Hegel (publicada em 1844), poderiam ter dado base suficiente para tornar visível o humanismo de Marx. A explicação mais relevante está no fato de o pensamento filosófico da época, desde a morte de Marx até a década de 1920, ter estado dominado por ideias positivista-mecanicistas que influenciaram pensadores como Lênin e Bukharin. Tampouco deve ser esquecido que, como o próprio Marx, os marxistas clássicos eram alérgicos a termos que cheirassem a idealismo e religião, pois se davam bem conta de esses termos muito comumente serem empregados para ocultar realidades econômicas e sociais básicas.

Para Marx, essa alergia à terminologia idealista era muito mais compreensível por estar ele profundamente enraizado na tradição espiritual, conquanto não-teísta, que se estende não só de Spinoza e Goethe a Hegel, como também remonta ao messianismo profético. Estas últimas ideias atuaram bem conscientemente em socialistas como Saint-Simon e Moses Hess, e certamente formaram grande parte do pensamento socialista do século XIX e mesmo do ideário de destacados socialistas até a 1ª Guerra Mundial (como Jean Jaurés).

A tradição espiritual-humanista, em que Marx ainda vivia e quase foi afogada pelo espírito mecanicista-materialista do industrialismo vitorioso, experimentou um ressurgimento, embora somente uma pequena escala, em alguns pesadores individualmente, no fim da 1ª Guerra Mundial, e em escala maior durante e após a 2ª Guerra Mundial. A desumanização do homem, evidenciada nas crueldades dos regimes de Stalin e Hitler, na brutalidade do morticínio indiscriminado durante a guerra, e também no crescente embrutecimento acarretado pelo novo homem consumidor e membro de organização, maníaco por engenhocas, levou a esta nova manifestação de ideias humanistas. Por outras palavras, o protesto contra a alienação, enunciado por Marx, Kierkegaard e Nietzsche, depois emudecido pelo aparente sucesso do industrialismo capitalista, ergueu novamente sua voz ante o fracasso humano do sistema vigente e conduziu a uma reinterpretação de Marx, baseada no Marx integral e em sua filosofia humanista. Já mencionei os autores comunistas mais notáveis nesta revisão humanista. Acrescentarei agora os comunistas iugoslavos que, malgrado ainda não tenham, tanto quanto estou a par, suscitado o ponto filosófico da alienação, ressaltaram como principal objeção ao comunismo russo a sua preocupação com o indivíduo face à maquinaria estatal, e elaboraram um sistema de descentralização e de iniciativa individual contrastando radicalmente com o ideal russo de centralização e de burocratização completas.

Na Polônia, Alemanha Oriental e Hungria, a oposição política aos russos esteve intimamente aliada aos representantes do socialismo humanista. Na França, Alemanha e, em menor proporção, na Inglaterra, há uma discussão acesa em curso sobre Marx, baseada em um conhecimento e uma compreensão completos de suas ideias. Da bibliografia em alemão, só cito os documentos contidos nos Marxismusstudien[105], escritos sobretudo por teólogos protestantes; a francesa é ainda maior, e escrita por filósofos católicos[106], bem como por marxistas e não-marxistas[107].

O reflorescimento do humanismo marxista em países de língua inglesa sofreu devido aos Manuscritos Econômicos e Filosóficos não terem sido traduzidos para o inglês senão recentemente. Não obstante, homens como T. B. Bottomore e outros compartilham das ideias acerca do humanismo marxista expostas pelos autores atrás mencionados. Nos Estados Unidos, a obra mais importante que inaugurou uma compreensão do humanismo de Marx é Reason and Revolution[108] de Herbert Marcuse. O livro de Raya Dunayevskaya, Marxism and Freedom, com um prefácio por H. Marcuse[109], também é significativo reforço ao pensamento humanista marxista.

Chamar a atenção para o fato de os comunistas russos terem sido obrigados a apregoar o cisma entre o jovem Marx e o Marx velho e aduzir os nomes de diversos escritores profundos e sérios que contestam essa posição russa não constitui, entretanto, prova de os russos (e D. Bell) estarem errados. Apesar de transcender os limites deste volume tentar refutar totalmente, como desejável, a posição russa, procurarei, não obstante, demonstrar para o leitor que acho insustentável a atitude russa.

Há alguns fatos que, superficialmente apreciados, talvez pareçam apoiar a posição comunista. Em Ideologia Alemã, Marx e Engels não mais empregaram os termos “espécie” e “essência humana” (Gattung e menschliches Wessen), usados nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Outrossim, Marx disse mais tarde (no prefácio à Crítica da Economia Política, 1859) que, em Ideologia Alemã, ele e Engels resolveram “arquitetar juntos a oposição que fazíamos ao ponto de vista ideológico da filosofia alemã; de fato, livrar-nos de nossa antiga consciência filosófica”[110]. Foi alegado que esse “livramento de sua consciência filosófica antiga” queria dizer que Marx e Engels haviam abandonado as ideias fundamentais expressas nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos. No entanto, um mero estudo superficial de Ideologia Alemã revela não ser isso verdade. Se bem que Ideologia Alemã não contenha certos termos como “essência humana”, etc., sem embargo prossegue na mesma linha principal de ideias dos Manuscritos, especialmente o conceito de alienação.

A alienação, em Ideologia Alemã, é explicada como o resultado da divisão do trabalho humano que “subentende a contradição entre o interesse do indivíduo isolado ou da família individual e o interesse comunitário de todos os indivíduos com relações entre si”[111]. No mesmo parágrafo, o conceito de alienação é definido, como nos Manuscritos, por estas palavras: “Os atos do próprio homem convertem-se em uma força estranha e a ele oposta, que o escraviza ao invés de ser por ele controlada[112].” Nisto, também, vemos a definição de alienação referida e circunstâncias já atrás citadas: “Esta cristalização da atividade social, esta consolidação do que produzimos em uma força objetiva acima de nós, escapando a nosso controle, frustrando nossas expectativas, reduzindo a nada nossas previsões, é um dos principais fatores da evolução histórica até hoje[113]”.[114]

Quatorze anos mais tarde, em sua polêmica com Adam Smith (em 1857-58), Marx empregou os mesmos argumentos supostamente “idealistas” utilizados nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, sustentando que a necessidade de trabalhar não constitui por si mesma uma restrição à liberdade (desde que não seja trabalho alienado). Marx fala da “auto-realização” da pessoa, “em consequência, da verdadeira liberdade”.[115] Subsequentemente, a mesma ideia de que a meta da evolução humana é a expansão do homem, a criação do homem “rico” que vendeu a contradição entre ele próprio e a natureza e alcançou a verdadeira liberdade, aparece em muitas passagens de O Capital, escrito pelo Marx velho e amadurecido. Como foi antes citado, Marx escreveu no terceiro volume de O Capital: “Para além dele [do reino da necessidade], inicia-se o desenvolvimento da força humana, que é seu próprio fim, o verdadeiro reino da liberdade, que, no entanto, só pode florescer tomando como base aquele mundo de carência. A redução do dia de trabalho é sua premissa fundamental”[116].

Em outras partes de O Capital, ele fala da importância de produzir “seres humanos plenamente desenvolvidos”[117], do “desenvolvimento total da raça humana”[118], da “necessidade de o homem desenvolver-se a si mesmo”[119] e do “fragmento de Homem”, como resultado do processo de alienação[120].

Visto ser D. Bell um dos poucos autores norte-americanos interessados no conceito marxista de alienação, desejo demonstrar por que sua posição, que é, de fato, a mesma assumida pelos comunistas russos, por motivos diametralmente opostos, é também indispensável. A principal alegação de Bell é que interpretar Marx sob o ponto de vista dos autores humanistas acima citados aumentará a criação de mitos. Ele sustenta que “Marx repudiara a ideia de alienação, divorciada do sistema econômico, e, ao fazê-lo, fechou um caminho que nos teria dado uma análise mais ampla da sociedade e da personalidade do que o dogmatismo marxista que tem vigorado”.

Essa declaração é, a um só tempo, ambígua e errônea. Dá a impressão de que Marx, em suas últimas obras, haja repudiado a ideia de alienação em seu significado humano, transformando-a em uma “categoria puramente econômica”, como diz Bell adiante. Marx nunca rejeitou a ideia de alienação e em seu sentido humano, mas sustentou que ela não pode ser divorciada do processo da vida concreta e real do indivíduo alienado. Isso é algo assaz diferente de agarrar-se ao testa-de-ferro do “velho Marx” que repudia o conceito de alienação humana do “jovem Marx”. Bell deve ter assim errado por aceitar na totalidade a chapa batida da interpretação convencional de Marx. “Para Marx, a única realidade social não é o homem, nem o indivíduo, mas classes de homens, econômicas. Indivíduos e seus motivos não contam para nada. A única forma de consciência suscetível de ser transformada em ação – e de explicar a História, o passado, o presente e o futuro – é a consciência de classe”. Ao procurar demonstrar que Marx não se achava interessado no indivíduo, porém tão-somente na massa, assim como por hipótese ele não mais se interessava por fatores humanos mas unicamente por econômicos, Bell não vê – ou não menciona – que Marx criticou o capitalismo exatamente por destruir a personalidade individual (tal como criticou o “comunismo vulgar” pela mesma razão), e que a afirmação segundo a qual a História só pode ser explicada pela consciência de classe é uma afirmação de fato, na medida em que se considera a história anterior, e não uma expressão do desprezo de Marx pelo indivíduo.

Infelizmente, Bell cita erradamente um texto de Marx que é de decisiva importância para provar essa tese. Ele diz de Marx: “Mas, ao dizer que não existe natureza humana inerente a cada indivíduo separado” (como Marx o faz em sua sexta tese sobre Feuerbach), e “sim apenas classes, introduz-se uma nova pessoa, uma nova abstração”.

O que diz Marx deveras na sexta tese sobre Feuerbach? “Feuerbach reduz a essência da religião à essência do homem. Mas a essência do homem não é uma abstração inerente a cada indivíduo de per si. Na realidade, ela é o conjunto (agregado) de relações sociais. Feuerbach, que não se aprofunda mais na crítica da essência verdadeira, é por isso obrigado: 1) A abstrair do processo da História e a estabelecer o temperamento religioso como algo independente e conceber um indivíduo humano abstrato – isolado. 2) A essência do homem, portanto, pode ser entendida somente como “genus”, e generalidade íntima, muda, que une naturalmente os indivíduos”[121]. Marx não afirma, como cita Bell, que não “existe natureza humana inerente a cada indivíduo separado”, mas algo assaz diferente, ou seja, que “a essência do homem não é uma abstração inerente a cada indivíduo”. Isso é o ponto essencial do “materialismo” de Marx em oposição ao idealismo de Hegel. Marx nunca abandonou seu conceito de natureza humana (como demonstramos ao citar a declaração feita em O Capital), mas essa natureza não é exclusivamente biológica, nem tampouco uma abstração; ela só pode ser interpretada historicamente, porque se revela na História. A natureza (essência) do homem pode ser inferida de suas múltiplas manifestações (e deturpações) na História; não pode ser vista como tal, como uma entidade de existência estatística “por trás” ou “acima” de cada homem de per si, mas como a existente em cada homem como uma potencialidade, revelando-se e modificando-se através do processo histórico.

Além de tudo isto, Bell não entendeu adequadamente o conceito de alienação. Ele define como “a dissociação radical de um sujeito que anseia por controlar seu próprio destino e um objeto que é manipulado por outros”. Como se depreende de minha exposição, bem como das apreciações dos mais sérios estudiosos do conceito de alienação, essa é uma definição completamente imprópria e enganadora. Com efeito é tão imprópria quanto a asserção de Bell segundo a qual o budismo Zen (como outras “moderna filosofias tribais e comunais” de “reintegração”) visa “à perda da pessoa do sentimento do próprio eu” e, assim, em última análise é anti-humana porque eles [os filósofos da reintegração, inclusive o Zen] são anti-individualistas. Não há espaço disponível para refutar esse chavão, e limito-me a sugerir uma leitura mais atenta e menos preconcebida dos textos de Marx e do budismo Zen.

Sintetizando este tópico da suposta diferença entre o jovem Marx e o Marx amadurecido: é verdade que Marx (como Engels), no decurso da vida, alterou algumas de suas ideias e concepções. Tornou-se mais adverso ao emprego de termos demasiado próximos do idealismo hegeliano; sua linguagem ficou menos entusiástica e escatológica; provavelmente, também, ficou mais desencorajado nos últimos anos da vida do que o estava em 1844. Todavia, a despeito de certas mudanças nos conceitos, no estado de ânimo, na linguagem, o cerne da filosofia exposta pelo jovem Marx jamais se modificou e é impossível compreender seu conceito de socialismo e sua crítica do capitalismo, como formulada ulteriormente, salvo se se tomar como base o conceito por ele apresentado em seus primeiros estudos. 

Capítulo VIII: Marx, O Homem

A incompreensão e a interpretação errônea das obras de Marx só encontram paralelo na interpretação desvirtuada de sua personalidade. Exatamente como no caso de suas teorias, a distorção de sua personalidade também segue uma chapa repetida por jornalistas, políticos, e até mesmo cientistas sociais que tinham obrigação de estar bem informados. Ele é descrito como um homem “solitário”, isolado dos semelhantes, agressivo, arrogante e autoritário. Quem quer que tenha o mais ligeiro conhecimento da vida de Marx terá grande dificuldade para aceitar isso, pois achará difícil reconciliar essa afirmação com a imagem de Marx como esposo, como pai e como amigo.

Quiçá tenha havido poucos matrimônios conhecidos pelo mundo que fossem tão plenos de realização humana como o foi o de Karl Marx e Jenny Marx. Ele, filho de um advogado judeu, apaixonou-se, ainda adolescente, por Jenny von Westphalen, filha de uma família feudal prussiana e descendente de uma das mais antigas famílias escocesas. Casaram-se, quando ele estava com 24 anos de idade, e sobreviveu a ela pouco mais de um ano. Foi um casal em que, malgrado as diferenças de antecedentes, malgrado uma vida de contínua pobreza e doenças físicas, houve amor constante e felicidade mútua, somente possíveis no caso de duas pessoas com extraordinária capacidade de amar, e profundamente enamoradas uma da outra.

A filha mais moça deles, Eleanor, descreveu a relação entre os pais em uma carta, referindo-se a um dia pouco antes da morte da mãe e mais de um ano antes da morte do pai. “Moor” [apelido de Marx], escreve ela, “melhorou novamente de sua enfermidade. Jamais esquecerei a manhã em que se sentiu bastante forte para entrar no quarto da mamãe. Quando eles se reuniam, ficavam jovens de novo – ela, a mocinha, e ele o rapaz apaixonado, ambos no limiar da vida, não um velho cheio de doenças e uma velha moribunda, despedindo-se um do outro definitivamente”[122].

As relações entre Marx e os filhos eram tão destituídas de qualquer tonalidade de dominação, e cheias de amor produtivo, quanto as com sua esposa. Basta ler-se as descrições feitas por sua filha Eleanor dos passeios dele com os filhos, quando lhes narrava contos, medidos em quilômetros e não em capítulos. “Conte-nos outro quilômetro”, gritavam as meninas. “Ele lia, na íntegra, Homero, os Niebelungenlied, Gudrum, Dom Quixote, as Mil e uma noites, etc. Quanto a Shakespeare, era a Bíblia de nossa casa, e raras vezes não estava em nossas mãos ou em nossos lábios. Aos seis anos, eu já sabia de cor muitas cenas inteiras de Shakespeare”[123].

A amizade dele e Friedrich Engels talvez seja ainda mais rara do que sua vida conjugal e suas relações com os filhos. O próprio Engels era um homem de extraordinárias qualidades humanas e intelectuais. Sempre reconheceu e admirou o talento superior de Marx. Dedicou a vida à obra de Marx, e sem embargo jamais relutou em dar sua própria contribuição, nem tampouco a subestimou. Nunca houve qualquer atrito na relação entre esses dois homens, nem competição, mas só um sentimento de camaradagem enraizado em uma estima tão grande entre os dois como não será possível encontrar maior entre dois homens.

Marx era o homem produtivo, não-alienado e independente que suas obras espelhavam como o homem de uma nova sociedade. Ligado produtivamente ao mundo inteiro, às pessoas e às ideias, ele era o que pensava. Um homem que lia todos anos Ésquilo e Shakespeare na língua original, e que durante a época mais triste de sua vida, a da doença da esposa, mergulhou na matemática e estudou Cálculo, Marx era um humanista de ponta a ponta. Nada o maravilhava mais do que o homem, e exprimiu esse sentimento em uma citação frequentemente repetida de Hegel: “Ainda o pensamento criminoso de um malfeitor possui mais grandeza e nobreza do que os prodígios dos céus”. Suas respostas ao questionário preparado para ele por sua filha Laura revelam muito do homem: sua ideia de desgraça era a sujeição; o vício que mais detestava era o servilismo, e suas máximas favoritas eram: “Nada do que é humano me é estranho”, e “Deve-se duvidar de tudo”.

Por que supõem ter sido esse homem arrogante, solitário, autoritário? À parte a intenção de difamar, houve diversas razões para esse erro de interpretação. Antes de mais nada, Marx (como Engels) tinha um estilo sarcástico, especialmente ao escrever, e era um lutador dotado de grande agressividade. Mas, o que é mais importante, era um homem totalmente incapaz de tolerar a tapeação e a impostura, e absolutamente sério acerca dos problemas da existência humana. Era incapaz de aceitar, polidamente e com um sorriso nos lábios, racionalizações desonestas ou afirmações fictícias sobre assuntos importantes. Era incapaz de qualquer espécie de insinceridade, quer no tocante a relações pessoais, quer a ideias. Como a maioria das pessoas prefere pensar em ficções a pensar em realidades, e enganar a si mesma e as outras sobre os fatos subjacentes à vida individual e social, tinha, com efeito, de encarar Marx como uma pessoa arrogante ou fria, mas esse juízo depõe mais contra elas do que contra Marx.

Só e quando o mundo retornar à tradição do humanismo e superar a deterioração da cultura ocidental, tanto em sua forma soviética quanto na capitalista, ele verá, deveras, que Marx não foi nem um fanático nem um oportunista – mas representou o florescimento da humanidade ocidental, foi um homem com um sentimento intransigente da verdade, que penetrava na própria essência da realidade, e nunca embaído pela superfície ilusória; foi um homem de coragem e integridade inextinguível, profundamente preocupado com o homem e o futuro deste; altruísta, pouco vaidoso e sem ambição de poder; sempre animado e estimulante, instilando vida em tudo quanto tocava, ele representou a tradição ocidental em seus melhores aspectos: sua fé na razão e no progresso do homem. Ele representou, de fato, o próprio conceito do homem que se achava no centro de seu pensamento. O homem que é muito e tem pouco; o homem que é rico por precisar de seus semelhantes.


[1] É triste dizer, mas não pode ser evitado, que essa ignorância e essa deturpação de Marx são mais comuns nos Estados Unidos do que em qualquer outro país ocidental. Deve ser especialmente mencionado que nos últimos quinze anos houve um extraordinário renascimento de discussões sobre Marx na Alemanha e na França, mormente em torno dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos publicados neste volume. Na Alemanha, os participantes dos debates são sobretudo teólogos protestantes. Menciono, inicialmente, os extraordinários Marxismusstudien (Estudos Marxistas), organizados por I. Fetscher, 2 volumes. I. C. B. Mohr (Tübingen, 1954, 1957). Ademais, a excelente introdução por Landshur à edição Kroner dos Manuscritos. A seguir, as obras de Lukács, Bloch, Pepitz e outros, citados adiante. Nos Estados Unidos, tem sido observado ultimamente um interesse por Marx, que cresce aos poucos. Infelizmente, em parte se manifesta através de diversos livros cheios de prevenção e adulterações, como The Red Prussian, de Schwarzchild, ou   de   livros   excessivamente   simplificados   e   enganadores   como The Meaning of Communism de Overstreet. Em contraste, Joseph A. Schumpeter, em seu Capitalism, Socialism and Democracy (Harper & Brothers, 1947), dá uma excelente apresentação do marxismo. Cf. também o problema do naturalismo histórico, Christianity and Communism, de John C. Bennet (Association Press, Nova York). Ver, igualmente, as excelentes antologias (e introduções) de Feuer (Anchos Books) e de Bottomore e Rubel (Londres, Watts and Co.). Especificamente, acerca da opinião de Marx sobre a natureza humana desejo mencionar Human Nature: The Marxist View, por Venable, que, malgrado sagaz e objetivo, padece do fato de o autor não ter podido recorrer aos Manuscritos Econômicos e Filosóficos. Cf., ainda, para a base filosófica do pensamento de Marx, o brilhante e penetrante livro de H. Marcuse, Reason and Revolution (Nova York, Oxford University Press, 1958). Ver, também, meu estudo de Marx em The Sane Society, já citada.  A minha discussão anterior da teoria de Marx em Zeitschrift für Sozialforschung, vol. 1 (Leipzig, Hirschfeld, 1932). Na França, os debates têm sido em parte conduzidos por padres católicos e em parte por filósofos, na maioria socialistas. Entre os primeiros, cito especialmente, J. Y. Calvez, La Pensée de Karl Marx, Paris, ed. Du Seil, 1956; entre os últimos, A. Kojève, Sartre e, sobretudo, as várias obras de Henri Lefebvre.

[2] A primeira versão inglesa foi publicada em 1959, na Inglaterra, por Lawrence and Wishart, utilizando uma tradução recentemente publicada pela Editora de Línguas Estrangeiras, de Moscou. A tradução por Tom Bottomore, incluída neste volume, é a primeira feita por um estudioso ocidental.

[3] O Capital, I, Karl Marx, Charles H. Kerr & Co., Chicago, 1906, pág. 406.

[4] Economic and Philosophical Manuscripts, pág. 181.

[5] German Ideology, Karl Marx e R. Engels, organizado com uma introdução por R. Pascal, New York, International Publishers, Inc., 1939, pág. 14. (O grifo é meu – E. F.)

[6] K. Marx e F. Engels, Die Heilige Famile (“A Família Sagrada”) 1845. (Tradução minha – E. F.)

[7] German Ideology, K. Marx e F. Engels, op. cit., pág. 7.

[8] “Theses on Feuerbach”, German Ideology, op. cit., pág. 197.

[9] “Enquanto o capitalismo do tipo clássico ferreteia o consumo individual como um vício contra sua função, de abster-se de acumular, o capitalismo modernizado é capaz de olhar a acumulação como abstinência de prazer” (O Capital, I, loc. cit., pág. 650).

[10] Tentei elucidar este problema em um artigo “Über aufagabe und method einer analytischen Sozialpsychologie” (“Sobre o Método e Objetivo da Psicologia Social Analítica”), Zeitschrift für Sozialforschung, vol. I. C. L. Hirshfeld, Leipzig, 1932, págs. 28-54.

[11] Marx-Engels Gesamtausgabe, Marx-Engels Verlag, org. por P. Rjazanow, Berlim, 1932, I, 6, pág. 179. (A abreviatura MEGA será usada nas referências ulteriores a esta obra).

[12] Ao rever este manuscrito, deparei com uma excelente interpretação de Marx, caracterizada não só pelo conhecimento perfeito como por uma genuína compreensão, da autoria de Leonard Krieger, “The Uses of Marx for History”, em Political Science Quarterly, vol. XXXV, 3. Diz ele: “Para Marx, a substância comum da História era a atividade dos homens – “Os homens simultaneamente autores e atores de sua própria história” – e essa atividade estendia-se igualmente a todos os níveis: modos de produção, relações e categorias sociais” (pág. 362). Quanto ao alegado caráter “materialista” de Marx, escreve Krieger: “O que nos intriga acerca de Marx é sua capacidade para descobrir um racional essencialmente ético através e ao longo dos séculos, ao mesmo tempo que percebe a diversidade e complexidade da existência histórica” (pág. 362). (Os grifos são meus – E. F.). Ou adiante (pág. 368): “Não há aspecto mais característico do arcabouço filosófico de Marx do que sua reprovação categórica do interesse econômico como uma distorção vis-à-vis do homem moral integral.”

[13] MEGA, V, pág. 596.

[14] German Ideology, op. cit., pág. 7.

[15] O Capital, I, op. cit., pág. 406.

[16] O Capital, I, op. cit., págs. 91-92.

[17] “Prefácio a uma Contribuição à Crítica da Economia Política”, Marx, Engels, Selected Works, Vol. I, Foreign Languages Publishing House, Moscou, 1955, págs. 362-364.

[18] * Instrumento aperfeiçoado no fim da Idade Média, para lançar, por meio de espelhos, a imagem de um cenário numa superfície plana. Foi largamente usado por artistas para estabelecer as proporções de um objeto ou cena natural. A imagem aparecia invertida no papel, embora isso fosse mais tarde corrigido com o uso de uma lente.

[19] German Ideology, op. cit., págs. 13-14.

[20] Cf. meu capítulo em Suzuki, Fromm e De Martino, Zen Buddhism and Psychoanalysis, Harper and Brothers, New York, 1960. Cf., ainda, a declaração de Marx: “A linguagem é tão antiga quanto a consciência, ela é a consciência prática, pois existe para outros homens, e por essa razão começa a existir igualmente para mim pessoalmente: pois a linguagem, como a consciência [percepção], só brota da necessidade, da necessidade de intercâmbio com outros homens. Onde há uma relação, ela existe para mim: o animal não tem relação com coisa alguma, nem as pode ter. Para o animal, sua relação com outros não existe como tal. A consciência, portanto, é desde o começo um produto social, e assim permanece enquanto existam os homens. A consciência, a princípio, está claro, é mera percepção do meio físico sensível e da ligação limitada com outras pessoas e objetos intrínsecos ao indivíduo, que se vai tornando consciente de si mesmo. Ao mesmo tempo, ela é a percepção da natureza, que de início se afigura aos homens como uma força completamente estranha, onipotente e invulnerável, com a qual as relações dos homens são puramente animais e que os deixam totalmente atemorizados como se fossem feras; é, assim, uma percepção exclusivamente animal da natureza (religião natural).” – German Ideology, op. cit., pág. 19.

[21] German Ideology, op. cit., págs. 197-198 (grifos meus – E. F.). Cf., também, a famosa carta de Engels a Mehring (14 de julho de 1893), em que ele afirma terem ele e Marx “negligenciado [ao salientar os aspectos formais da relação entre a estrutura sócio-econômica e a ideologia a estudar] a maneira e a forma de aparecimento das ideias”.

[22] O Capital, I, loc. cit., pág. 824.

[23] O Capital, I, pág. 668.

[24] German Ideology, op. cit., pág. 198.

[25] “Heilige Famile”, MEGA, V, pág. 359. [Tradução minha do alemão – E. F.]

[26] Manuscritos Econômicos e Filosóficos, pág. 141. (Doravante será usada a abreviatura MEF).

[27] MEF, pág. 139.

[28] H. Marcuse, Reason and Revolution, Oxford University Press, New York, 1941, pág. 146.

[29] Marcuse, op. cit., pág. 113.

[30] Marcuse, op. cit., págs. 142-149; Hegel, Science and Logic, vol. I, pág. 404.

[31] Marcuse, op. cit., pág. 149.

[32] Marcuse, op. cit., pág. 152.

[33] Cf. conversa de Goethe com Eckermann, 29 de janeiro de 1826.

[34] Goethe, em palestra com Eckermann, a 29 de janeiro de 1826. [Tradução e grifos meus – E. F.].

[35] Citado por K. Löwith, Von Hegel zu Nietzsche, W. Kohlhammer Verlag, Stuttgart, 1951, pág. 24. (Tradução minha – E. F).

[36] Cf. a descrição minuciosa da orientação do caráter produtivo em E. Fromm, Man for Himself. (N. do T. – em português, Análise do Homem, Rio, Zahar Editores, 5ª edição, 1966).

[37] Cf. H. Popitz, Der enthfremdete Monsch (“O Homem Alienado”). Verlag für Recht und Gessellschaft, A. G., Basiléia, pág. 119.

[38] MEF, pág. 168.

[39] MEF, págs. 126-127.

[40] MEF, pág. 134.

[41] MEF, pág. 134.

[42] MEF, pág. 133.

[43] MEGA, vol. III, pág. 191.

[44] MEF, pág. 132. Esta última afirmação é quase exatamente a mesma feita no pensamento do budismo Zen, assim como por Goethe. De fato, o pensamento e Goethe, Hegel e Marx se acha intimamente ligado ao do Zen. O que há de comum neles é a ideia de o homem superar a cisão entre sujeito e objeto; o objeto é um objeto, mas no entanto cessa de ser objeto, e nesta nova abordagem o homem se funde com o objeto, conquanto ele e o objeto continuem a ser dois. O homem, ao relacionar-se humanamente com o mundo objetivo, supera a alienação de si mesmo.

[45] Por “propriedade privada”, conforme é empregada aqui e em outras afirmações, Marx nunca se refere à propriedade privada de bens de uso (como uma casa, uma mesa, etc.). Ele tem em vista a propriedade das “classes proprietárias”, isto é, dos capitalistas, que, por possuírem os meios de produção, podem contratar o indivíduo desprovido de propriedades para trabalhar para eles, em condições que este último se vê obrigado a aceitar. “Propriedade privada”, no emprego de Marx, portanto, sempre se refere a propriedade privada na sociedade de classes capitalista, sendo, pois, uma categoria social e histórica; o nome não diz respeito a bens de uso, por exemplo, em uma sociedade socialista.

[46] MEF, pág. 127.

[47] MEF, pág. 101.

[48] MEF, págs. 137-138. Este conceito dialético do homem rico como sendo o nobre necessitando dos outros é, em muitos aspectos, análogo ao conceito de pobreza exposto por Meister Eckhart, em seu sermão “Bem-Aventurados Sejam os Pobres”. (Meister Eckhart, trad. por R. B. Blakney, New York, Harper, 1941).

[49] MEGA, I, 1ª, pág. 184.

[50] MEF, págs. 134-135.

[51] MEF, pág. 132.

[52] MEF, págs. 144-145.

[53] MEF, pág. 145.

[54] MEF, pág. 138.

[55] Marx refere-se, neste ponto, a especulações de certos pensadores comunistas excêntricos de seu tempo, que imaginavam que se tudo era propriedade comum também as mulheres o deveriam ser.

[56] MEF, págs. 124-126.

[57] O Capital, I, op. cit., págs. 197-198.

[58] German Ideology, op. cit., pág. 22.

[59] MEF, pág. 107.

[60] A conexão entre alienação e idolatria foi também salientada por Paul Tillich em Der Mensch im Cristentum und im Marxismus, Düsseldorf, 1953, pág. 14. Tillich indica igualmente, em outra conferência, “Protestantische Vision”, que o conceito de alienação pode também ser encontrado, no fundo, no pensamento de [Santo] Agostinho. Löwith também mostrou que o que Marx combate não são os deuses, porém os ídolos [cf. Von Hegel zu Nietzsche, op. cit., pág. 378].

[61] Esta é, incidentalmente, também, a psicologia do fanático. Ele está oco, morto, deprimido, mas, para compensar seu estado de depressão e insensibilidade interior, escolhe um ídolo, seja o Estado, um partido, uma ideia, a igreja, ou Deus. Converte esse ídolo no absoluto, e submete-se-lhe de maneira total. Ao fazê-lo, a vida dele logra obter um sentido, e ele se entusiasma com a submissão ao ídolo escolhido. Seu entusiasmo, entretanto, não brota da alegria do relacionamento produtivo; é um entusiasmo intenso, mas no entanto frio, oriundo do torpor interior, ou, para falar simbolicamente, é “gelo candente”. (N. do T. – Cf. Sinclair Lewis, Elmer Gantry).

[62] N. do T. – Salmos, XXXV.

[63] Conversações de Eckermann com Goethe, 18 de fevereiro de 1929, publicadas em Leipzig, 1984, pág. 47. [Minha tradução – E. F.]

[64] 18 Brumário de Luís Bonaparte.

[65] The Philosophy of History, tradução de J. Sibree, The Colonial Press, New York, 1899.

[66] MEF, pág. 95.

[67] MEF, pág. 98.

[68] MEF, pág. 99.

[69] MEF, pág. 99.

[70] O Capital, I, op. cit., pág. 536.

[71] MEF, págs. 102-103.

[72] MEF, pág. 107.

[73] O Capital, I, op. cit., pág. 396.

[74] O Capital, I, op. cit., págs. 680-681.

[75] MEF, pág. 143.

[76] O Capital, I, op. cit., págs. 461-462.

[77] MEF, pág. 95.

[78] O Capital, I, op. cit., págs. 708.

[79] MEF, págs. 105-106.

[80] German Ideology, op. cit., pág. 23.

[81] MEF, pág. 103.

[82] MEF, pág. 103.

[83] MEF, pág. 146.

[84] MEF, pág. 146.

[85] MEF, pág. 146.

[86] MEF, pág. 140.

[87] MEF, págs. 140-142.

[88] MEF, pág. 111.

[89] MEF, pág. 144.

[90] MEF, pág. 111.

[91] O Capital, I, op. cit., pág. 689.

[92] Protestantische Vision, pág. 6.

[93] O Capital, III, pág. 954.

[94] Citado por R. Dunayevskaya, Marxism and Freedom, com prefácio por H. Marcuse, Bookman Associates, New York, 1958, pág. 19.

[95] MEGA, I, 1ª, pág. 184.

[96] Cf. meu Man for Himself. (N. do T. – Em português, Análise do Homem, Rio, Zahar Editores, 5ª edição, 1966).

[97] A. Huxley, The Perennial Philosophy, Harper, 1944, pág. 93.

[98] Cf. Carl L. Becker, The Heavenly City of the Eighteenth-Century Philosophers, Yale Univ. Press, New Haven, 1932 e 1959; A. P. d’Entrèves, The Medieval Contribution to Political Thought, Oxford Univ. Press, 1939; Hans Baron, Fifteenth-Century Civilization and the Renaissance, in The Cambridge Modern History, vol. 8; Harold J. Laski, Political Theory in the Later Middle Ages, in The New Cambridge Modern History, vol. 1.

[99] Tratarei aqui em minúcia dessa evolução num próximo livro da “World Perspective Religious Series”, organizada por Ruth Nanda Ashen para Harper & Brothers, New York.

[100] MEF, pág. 127.

[101] A ideia da relação entre o profetismo messiânico e o socialismo de Marx tem sido destacada por diversos autores. Podemos mencionar aqui os seguintes: Karl Löwith, Meaning in History, Chicago University Press, 1940; Paul Tillich em trabalhos citados neste livro. Lukács, em Geschichte und Klassenbewustsein, fala de Marx como um pensador escatológico. Cf., também afirmações de Alfred Weber, J. A. Schumpeter, e diversos outros autores, citados em Marxismusstudien.

[102] Ernst Bloch, Das Prinzips Hoffnung, Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main, 1959, 2 volumes.

[103] Esta e todas as seguintes citações de D. Bell são de seu artigo “The Meaning of Alienation”, em Thought, 1959.

[104] Em Marx-Engels Archiv, I, org. por Riazanov.

[105] J. C. B. Mohr, Tübingen, vols. I e II, 1954, 1957.

[106] A obra principal sobre este tema é de um padre jesuíta, Jean-Yves Calvez, La Pensée de Karl Marx, Editions du Seuil, Paris, 1956.

[107] Mencionarei apenas as obras de H. Lefebvre, Naville, Goldmann, e de A. Kojève, Jean-Paul Sartre, M. Merleau-Ponty. Cf. o excelente artigo “Der Marxismus im Spiegel der Französischen Philosophie”, por I. Fetzscher, em Marxismusstudien, op. cit., vol. I, págs. 137 e segs.

[108] Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1941.

[109] Bookman Associates, New York, 1958.

[110] Quando circunstâncias exteriores tornaram impossível a publicação deste livro (Ideologia Alemã), “abandonamos o manuscrito às críticas roedoras dos ratos, com tanto maior boa-vontade por termos alcançado nossa principal finalidade – a de auto-esclarecimento”.

[111] Ideologia Alemã, op. cit., págs. 22.

[112] German Ideology, op. cit., págs. 22.

[113] German Ideology, op. cit., págs. 22-23.

[114] É significativo que Marx corrigisse a expressão de Engels “auto-atividade” para “atividade”, quando Engels a empregou com relação à história anterior. Isto mostra como Marx considerava importante reservar a expressão “auto-atividade” (ou atividade própria) para uma sociedade não-alienada. Ver MEGA I, vol. V, pág. 61.

[115] Cf. o brilhante artigo d Th. Ramm, “Die Künftige Geselschaftsordnung nach der Theorie von Marx und Engels”, em Marxismusstudien, II, op. cit., págs. 77 e segs.

[116] Cf. O Capital, I, op. cit., págs. 945-46. (Os grifos são meus – E. F.).

[117] Cf. O Capital, I, op. cit., págs. 529-30.

[118] O Capital, I, págs. 554-55.

[119] O Capital, I, pág. 563.

[120] O Capital, I, pág. 708.

[121] Marx e Engels, German Ideology, loc. Cit., págs. 198-99. [Os grifos são parcialmente meus – E. F.]

[122] Reminiscences of Marx and Engels, Foreign Languages Publishing House, Moscou, pág. 127.

[123] Reminiscences of Marx and Engels, op. cit., pág. 252.