Socialismo ou Barbárie – Solidarity

INTRODUÇÃO

Em maio de 1961 ocorreu em Paris uma pequena reunião de socialistas revolucionários. Participaram companheiros de Socialismo ou Barbarie (França), Unità Proletaria (Itália), Socialism Reaffirmed (Grã Bretanha), e Pouvoir Ouvrier Beige (Bélgica).

No documento aprovado nesta ocasião tentou-se redefinir os objetivos e os métodos socialistas de luta à luz da situação do começo dos anos 60. Muito havia ocorrido nas décadas anteriores. A estrutura do capitalismo sofrera profundas mudanças. As esperanças suscitadas pela Revolução de outubro não se haviam concretizado. Além disso, uma monstruosa burocracia já dominava uma parte considerável da população mundial. No ocidente, as organizações tradicionais da classe operária encontravam enormes dificuldades para lutar e para proceder à realização das aspirações dos trabalhadores.

Apesar disso, não faltavam notícias positivas. Em 1956, os húngaros sublevaram-se exigindo que a tarefa de organizar a produção fosse confiada aos operários, que os salários fossem nivelados e que o poder passasse aos conselhos operários. No ocidente, a classe trabalhadora – cuja força e capacidade de luta sobre questões de primeira ordem, totalmente inutilizada, estava intacta e totalmente disponível – emergia lentamente de uma longa e difícil experiência: a de «suas» organizações (fossem partidos ou sindicatos). Os jovens manifestavam uma intolerância crescente pela tradição política parlamentar. Também crescente era a difusão de uma atitude anti-autoritária consciente, e cada vez mais se compreendia a necessidade da intervenção política direta, muito além do velho esquema de delegação.

O Documento veio à luz em um período no qual a “esquerda” andava tonta, sem encontrar nenhum caminho de saída efetivo do enredo em que se havia metido. Não conseguia nem sequer compreender o mundo em transformação no qual estava imersa, nem definir uma imagem adequada do socialismo ao novo estado de coisas. Mesmo o conceito de socialismo se havia burocratizado totalmente, por não dizer que havia sido absorvido nas tendências de larga duração do capitalismo (nacionalização, planificação, desenvolvimento econômico, etc.). Ideias e bandeiras que talvez pudessem ter tido algum fundamento cinquenta anos antes eram repetidas, papagaiadas. Tudo isso não era estimulante para ninguém, pois que não tinha nenhuma base sobre a realidade de então. Não era surpreendente que os jovens vissem refletida nas organizações tradicionais da esquerda, precisamente a imagem de tudo que estavam dispostos a lutar para superar.

O documento elaborado em 1961 foi uma das primeiras tentativas de reformular do começo ao fim a teoria da revolução. Seus autores pensavam que, sem um desenvolvimento da teoria revolucionária, não haveria nenhum desenvolvimento da práxis revolucionária. O documento continha muitas afirmações precisas, referentes às mudanças funcionais do capitalismo, a natureza de suas atuais contradições, a natureza de classe das sociedades da Rússia e do Leste Europeu, além das relativas ao “Terceiro Mundo” e ao programa dos que estivessem em luta pelo socialismo, no que dizia respeito a como e porque se haviam degenerado as organizações tradicionais da classe operária, ao conteúdo de um autêntico programa socialista e ao tipo de organização revolucionária necessária para levar adiante tal programa. O saldo desta análise – que ainda hoje é válida – mais tarde seria expresso no nosso Como vemos.

No prólogo ao documento de 1961, se diz que o trabalho de reconstrução da teoria deve “fundar-se solidamente na experiência cotidiana das pessoas normais. Isto pressupõe que se rompa radicalmente com todas as organizações atuais, sua ideologia, sua mentalidade, seus métodos de trabalho, sua atividade. Tudo que existiu ou que existe hoje no âmbito do movimento operário (ideologia, partidos, sindicatos, etc.) acabou irreversível e irremediavelmente, corrompeu e se integrou à sociedade exploradora. Não pode haver soluções milagrosas… Deve-se começar tudo desde o princípio, mas empreendendo os movimentos a partir da imensa experiência constituída por um século de lutas operárias, e com o proletariado hoje mais próximo hoje da solução efetiva do problema”. O maio francês, no ano de 1968, ia expor à luz tanto a exatidão dessa análise como a urgência dos objetivos ali propostos.

Dos diferentes grupos que participaram na Conferência de Paris, Solidarity (que então se chamava Socialism Reaffirmed) foi o único que sobreviveu. Alguns dos outros eram prematuros do ponto de vista organizativo; outros, depois de uma longa batalha pioneira nas difíceis condições de então, diminuíram; alguns agora voltaram a linhas políticas mais tradicionais. Entretanto as ideias avançaram. Onde e quando quer que se reúnam revolucionários para discutir política, as teses da Conferência de Paris voltam a ser consideradas e debatidas. De uma forma ou de outra já são parte integrante do pensamento revolucionário contemporâneo. É difícil se lembrar hoje que, há dez anos temas como “privatização”, “despolitização”, “sociedade de consumo”, ou conceitos como “organizações tradicionais da esquerda”, “autogestão”, “autodireção”, eram usadas e conhecidas por minorias.

À luz da história, a aprovação cada vez maior conseguida por esse modo de pensar é muito mais importante que a perpetuação desta ou daquela organização. Atualmente há dezenas de pequenos grupos que se baseiam em tais teses, assim como também há organizações de grande relevo que entraram em crise. Na França, em maio de 1968, a validade desses conceitos encontrou confirmação nos fatos. Por exemplo, Daniel Cohn-Bendit teve oportunidade de declarar explicitamente como seu pensamento político esteve influenciado por eles.

Voltamos a publicar o documento depois de muitos anos de sua primeira edição. Entretanto, o movimento libertário aumentou em dimensão, ainda que pareça um pouco confuso. Esperamos que as ideias expostas nestas páginas ajudem a obter uma linha coerente e incisiva, fazendo com que a ação revolucionária possa se desenvolver num futuro imediato.

Maio 1969

I. A sociedade de classes hoje

A NATUREZA DA SOCIEDADE DE CLASSES

1. Apesar das grandes transformações sofridas nos últimos cem anos, o capitalismo continua sendo uma sociedade de classes. A luta de classes é o elemento predominante da vida social. A classe operária tem a sua frente as alternativas de sempre: submeter-se a uma exploração, a uma alienação, a uma escravização cada vez maiores, ou destruir o sistema social vigente e instaurar outro, fundado no poder da própria classe operária. Só então será possível reorganizar a sociedade e dar novos fins a vida humana.

2. As relações de produção estão na base da estrutura de classes de cada sociedade. Em todos os países do mundo, tais relações são capitalistas desde o momento que se funda o trabalho assalariado. Os que recebem o salário, sejam indivíduos ou um grupo social, são expropriados dos instrumentos de trabalho. Dos produtos de seu trabalho e do controle de sua própria atividade. São reunidos em estabelecimentos de diferentes dimensões nos quais estão sujeitos à desumana vontade do capital, personificada pelo aparato administrativo burocrático.

3. Substancialmente, a sociedade segue dividida em duas classes. Uma dispõe dos meios de produção (tanto de direito como de fato, individualmente ou coletivamente) e faz funcionar segundo seus próprios interesses tanto a produção como o Estado. Determina a distribuição do produto social global e reforça por meio de seu próprio controle sobre o aparato do Estado. A outra classe compreende os que vivem do salário, obtido vendendo a força de trabalho de que dispõem, e que durante as horas em que trabalham não fazem outra coisa senão seguir ordens impostas de cima.

4. Cada âmbito da atividade produtiva foi se “proletarizando” de maneira progressiva. O capitalismo invadiu todos os setores da economia. Até no nível dos estudos profissionais a forma dominante já é a empresa fundada no trabalho assalariado e organizado em escala industrial. No âmbito da indústria se registrou um incremento do pessoal “não produtivo”, que por sua vez está sendo proletarizado. Esse pessoal, que compreende os empregados de “colarinho branco” da indústria e do comércio, é agora, e será cada vez mais tão proletário como o são os trabalhadores manuais. São também escravos assalariados. Também são vítimas de uma brutal divisão do trabalho e desenvolvem tarefas puramente executivas, e minuciosamente medidas e controladas de cima. Em razão do aumento numérico das funções de tal gênero, também esses foram privados de toda razoável transformação de suas próprias condições de vida.

A CLASSE OPERÁRIA

5. A evolução do capitalismo não mudou os aspectos essenciais do status da classe operária na sociedade moderna. No campo da produção, o extraordinário desenvolvimento dos conhecimentos técnicos e a crescente produtividade das máquinas teve como resultado um incremento da sujeição do trabalhador ao capital. O radical absurdo que é o trabalho no âmbito do capitalismo apareceu com claridade cada vez maior.

A luta ao nível da produção é o fator determinante de toda organização do trabalho, e influi até na tecnologia. Em razão da resistência da classe operária à organização burocrática do trabalho, os capitalistas se viram obrigados a submeter a um controle cada vez maior a fábrica inteira e todo aspecto – tanto individual como coletivo – da atividade da classe operária. Tal controle implica uma divisão cada vez maior do trabalho, o aperfeiçoamento cada vez maior dos tempos e dos métodos, uma contínua tendência ao aumento dos ritmos.

6. Na sociedade moderna, a divisão do trabalho foi levada a limites absurdos. O objetivo é transformar a atividade do trabalhador individual em algo cada vez mais fácil de medir, e, portanto, de controlar. O objetivo é também tornar possível a imposição aos trabalhadores de modos de produzir, contra os quais eles se rebelam continuamente. O ritmo de vida do operário está cada vez mais subordinado ao da máquina.

Nos setores produtivos completamente automatizados, as coisas não foram diferentes. A notável tensão nervosa, a sociedade e a monotonia que caracteriza o trabalho de controle das instalações, dão ao trabalhador a mesma sensação de ser destruído enquanto ser humano. O mesmo sucede no trabalho de gabinete e em outros setores da economia. A produção capitalista está caracterizada por uma total alienação do pessoal empregado. O operário está reduzido ao papel de simples “executor” de tarefas infinitamente divididas. É afastado do controle de sua própria atividade e se transforma em um mero instrumento nas mãos dos que organizam o trabalho, em um simples apêndice da máquina.

7. Apesar de sua capacidade de compra e de consumo aumentar lentamente, o status dos operários enquanto tais não mudou substancialmente. Continuam sendo roubados em quase metade do fruto do seu trabalho, com o qual se alimenta o consumo parasitário da classe exploradora, o gasto de um Estado que favorece os interesses dos exploradores e investimentos sobre os quais os trabalhadores não possuem controle algum. A natureza e os fins desses investidores estão determinados pela natureza classista da sociedade, além dos interesses da classe dominante. Esse modo de atuar serve para reforçar e reproduzir um determinado tipo de estrutura social.

8. Nem sequer mudou o destino dos trabalhadores na vida política e social. Continuam sendo uma classe subordinada. Todo o processo da sociedade moderna (de sua economia, do seu Estado, de sua política de fábrica, de sua instrução, dos objetos que consomem, das notícias que possam chegar a ter conhecimento, das próprias decisões referentes à paz e a guerra) continua sendo decidido por uma minoria que se auto-perpetua. Esteja organizada a sociedade de forma “democrática” ou de forma “totalitária”, a massa da população não tem nenhuma capacidade de influência sobre tal minoria.

O CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

9. O elemento característico da mudança sofrida pelo capitalismo no curso dos últimos cem anos é a crescente concentração tanto do capital como da função diretiva. Nos países de “capitalismo privado” essa concentração assumiu formas muito conhecidas (monopólios, empresas de dimensões gigantescas, trustes e sociedades financeiras, empresas “satélites”, em torno de grandes complexos, “associações”, acordo entre várias empresas, associações por categoria entre capitalistas, etc.). Apesar disso, o elemento específico de tal mudança não é esse, mas sim o novo papel assumido pelo Estado. O Estado se converteu no principal fator econômico da sociedade contemporânea. O Estado capitalista moderno absorve cerca de 25% da produção nacional total, gerencia (direta ou indiretamente) aproximadamente 50%, ostenta a propriedade determinante do capital total (concentrados em setores essenciais como a energia e os transportes) e finalmente desenvolve a função de supremo juiz dos interesses da classe capitalista.

A concentração do capital e a crescente intervenção no campo econômico por parte do Estado capitalista determinou algumas mudanças na própria economia capitalista. Alguns velhos problemas se resolveram, mas surgiram muitos outros problemas. A incapacidade de perceber tais transformações está na base da esterilidade de grande parte do que passa hoje por “análise marxista”.

As classes dominantes conseguiram ter sob controle o nível da atividade econômica e prevenir as crises de maior relevo. Isto se deve tanto à mudança de estrutura da economia, como à deliberada intervenção do Estado, considerando que a estabilização da atividade econômica não é mais que uma adaptação para garantir a expansão. O desemprego diminuiu enormemente, o aumento dos salários é mais rápido e sobretudo mais regular que antes. Isto se deve tanto às lutas que a classe operária levou adiante quanto a uma nova política dos empresários, que estão dispostos a oferecer algumas concessões salariais em troca de uma disciplina férrea no posto de trabalho. Os aumentos salariais seguem hoje próximos aos da produtividade. Isto significa que permanece mais ou menos constante a relação entre a cota de produção nacional global recebida pelos trabalhadores e a recebida pelos capitalistas.

Este aumento e extensão do consumo de massa se revelou indispensável para o bom funcionamento da economia capitalista moderna. Além disso, converteu-se em um aspecto inevitável. O “velho” capitalismo com suas crises econômicas, sua crescente estagnação, o estancamento (quando não a piora) das condições de vida das massas, é uma lembrança do passado. O que caracteriza o capitalismo contemporâneo é que se propaga tanto a produção como o consumo, de vez em quando atrasado por flutuações de modestas consequências de breve período. Tal expansão é obtida por uma exploração e a uma alienação cada vez maiores durante o tempo que provém sua própria força de trabalho.

A MUDANÇA DE ESTRUTURA DA CLASSE DOMINANTE

11. A concentração do capital, em razão de toda uma série de motivos, determinou uma série de mudanças na estrutura social clássica. Tais mudanças se referem à composição social da classe dominante e aos mecanismos de trâmite dos quais os indivíduos particulares podem chegar a fazer parte. Desde o momento em que a “racionalização” e a organização externa de todas as atividades humanas se convertem no traço dominante da sociedade capitalista, a burocratização se difunde em todos os campos da vida social. No curso de tal processo, a riqueza pessoal herdada chega a ser relativamente menos importante do que antes enquanto mecanismo que garante as posições de comando da economia do Estado.

12. A classe dominante “tradicional” (cuja potência se baseia no controle da indústria pesada, da indústria manufatureira, da navegação, do crédito e dos seguros) está obrigada, cada vez mais, a repartir suas funções administrativas e de direção (tanto da economia quanto da sociedade em geral) que tradicionalmente detinha de maneira exclusiva com uma nova classe burocrática. Esta classe está se tornando parte integrante das sociedades capitalistas modernas. É indispensável para seu funcionamento “eficiente” e reflete as mudanças profundas e irreversíveis ocorridas nas estruturas de suas economias.

13. Algumas das raízes dessa burocracia se estendem também ao campo da produção. A concentração do capital e a “racionalização” da produção por meio de mecanismos externos ao ato de produzir, fazem necessária a expansão do aparato burocrático ao interior da fábrica. A função deste aparato é “dirigir” o processo produtivo e a força de trabalho, além de coordenar as forças da empresa com o resto da economia.

A burocracia encontra também sustentação no crescente número de pessoas dedicadas aos mais altos níveis da atividade estatal (indústrias nacionalizadas, agentes do governo que atuam no campo econômico, etc.). Isto se deve às profundas mudanças conectadas com o novo papel de natureza econômica assumida pelo Estado.

Finalmente a burocracia encontra sustentação nas organizações políticas e sindicais da própria classe operária. Para pôr limite aos operários, para integrá-los cada vez mais à ordem constituída, é necessário um aparato burocrático especial. Tal aparato participa cada vez mais na administração ordinária e extraordinária da sociedade capitalista, da qual é parte integrante.

A burocracia não é um agrupamento social homogêneo. Seu grau de desenvolvimento varia de um país para outro. Sua base econômica encontra fundamento no estágio final da concentração capitalista ou na tendência do capitalismo de monopólios à completa fusão com a máquina estatal. Nos países de capitalismo clássico, a burocracia dirigente não se baseia em modos de produção ou de circulação dos serviços que sejam substancialmente novos, mas sim sobre mudanças da base econômica de um capitalismo que, na prática, é sempre o mesmo.

14. O desenvolvimento da burocracia alterou profundamente a estrutura interna da classe dominante. Novos elementos tornaram-se parte dela como também aumentou o número dos privilegiados. Surgem novos tipos de relações hierárquicas; o processo se desenvolveu de uma maneira bastante desigual, desde o momento em que a resistência das velhas classes dominantes à fusão com as novas classes se revelou bastante diferente de um lugar a outro, sendo maior ou menor segundo o teor dos problemas econômicos com os quais os capitalistas tinham que contar, segundo a pressão exercida pela classe operária por soluções mais radicais e segundo o grau de clarividência histórica que haviam alcançado as classes dominantes.

AS CONTRADIÇÕES PERMANENTES DO CAPITALISMO

15. As citadas transformações do capitalismo contribuíram, de fato, para reduzir as contradições situadas ao nível da produção e do trabalho e que estão na origem da alienação do operário. O capitalismo tenta transformar os operários em simples executores de ordens estabelecidas por outros, em puras engrenagens das máquinas com as quais trabalham. Mas, paradoxalmente, se tal tentativa fosse bem sucedida o capitalismo terminaria. De fato, enquanto se ocupa sem trégua de excluir os operários do controle e das alternativas operacionais referentes ao seu trabalho, o capitalismo está obrigado a buscar seu consenso e sua participação. Esta contradição domina qualquer empresa capitalista e constitui o âmbito no qual a luta de classes se renova continuamente, por mais alto que seja o nível dos salários.

16. As tentativas realizadas pelos capitalistas para resolver tal contradição, “racionalizando” as empresas mediante o taylorismo, o estudo científico dos tempos e dos movimentos, o emprego de sociólogos e psicólogos de fábricas, e grandes discursos sobre “a importância das relações humanas”, foram mal sucedidas. Mas nem por isso diminuiu a intensidade da luta de classes que hoje mostra os operários opostos aos dirigentes, em todos os países do mundo em questões e conflitos referentes às condições e aos ritmos de trabalho, além do controle da atividade humana no âmbito do processo de produção.

17. De diferentes maneiras, a mesma contradição se coloca em relevo em cada aspecto da vida coletiva. A atividade política, por exemplo, está organizada de forma a excluir a grande maioria das pessoas de ocupar o controle efetivo sobre as questões nas quais, ao mesmo tempo, estão diretamente implicadas. A consequência disso é a indiferença e a apatia. Estas, por sua vez, fazem com que as instituições políticas capitalistas se empenhem em funcionar inclusive em sentido favorável aos interesses da classe operária[1]. Estas organizações, de fato, necessitam de um mínimo de participação autêntica, se não se quiser que apareça claramente sua natureza mistificadora.

18. O desenvolvimento e a burocratização do capitalismo não reduziram sua irracionalidade e sua fundamental desordem. Tanto no nível da fábrica como no nível da sociedade em geral, a direção burocrática capitalista é uma mescla de despotismo e de confusão que determinam um gigantesco desperdício humano e material. As classes dominantes e seu aparato burocrático são uma pequena minoria separada tanto da imensa maioria da humanidade como da própria realidade social. Precisamente por isso são incapazes de dirigir efetivamente seu sistema, criado para servir a seus próprios interesses. Estão numa condição cada vez menor para resolver os problemas presentes hoje na humanidade. Em razão disto, e apesar de haver menos crises econômicas de tipo clássico, o capitalismo não é, e será cada vez menos, capaz de evitar as crises de outro tipo: Os momentos nos quais a irracionalidade do sistema em geral explode de uma forma ou de outra, levando consigo derrocadas cíclicas da “administração ordinária” da sociedade.

19. A crise de todas as instituições capitalistas é mais profunda do que nunca. A cada dia que passa o capitalismo se revela mais incapaz de resolver as relações interpessoais no âmbito do processo produtivo. Mostra-se, além disso, incapaz de resolver qualquer outro problema de relevo da vida social contemporânea. Suas instituições políticas são vistas com desconfiança e desapreço pela maior parte da população, que parece cada vez menos interessada na política “tradicional”. Registra-se uma decadência geral de todos os valores, tanto morais quanto políticos, sociais ou culturais. As crises do conceito tradicional de família e a natureza cada vez mais absurda, artificial e burocrática da “escola” na sociedade moderna, provocaram em todos os países sociais uma gigantesca rebelião juvenil. Hoje a juventude tenta viver sua própria vida tanto fora como contra a ordem estabelecia. Isto tem enormes consequências a partir de um ponto de vista revolucionário.

20. O único objetivo que a classe dominante é capaz de propor à humanidade é a mentira do “crescente nível de vida”. Isto significa somente incremento no consumo de bens materiais. Porém tal incremento é continuamente superado pelo aumento das “necessidades” que a sociedade capitalista gera automaticamente ou cria artificialmente. A luta pelo prestígio e pela conquista de riqueza é muito mais intensa na sociedade moderna industrial que em uma primitiva aldeia africana. O lento, porém regular, crescimento do nível de vida, que é uma característica do capitalismo contemporâneo, encontra sua contrapartida no desgaste e alienação cada vez maior no trabalho, e não basta para conter a latente insatisfação de milhões de indivíduos, nem as tensões sociais que são consequências deles. Para confirmar o que afirmamos basta observar com que vivacidade se desenvolve a luta de classes precisamente naqueles países nos quais é mais alto o nível dos salários.

RÚSSIA, EUROPA ORIENTAL, ETC.

21. As coisas não são diferentes ao leste da Cortina de Ferro. Nestes países, uma burocracia assumiu as funções de direção da economia e do Estado antes assumidas pelos capitalistas privados. Tal burocracia foi fruto, ora da degeneração da revolução proletária (como no caso da Rússia), ora nasceu depois da inclusão de diferentes países na esfera do domínio russo (como no caso da Europa Oriental). Em alguns países “atrasados” a burocracia preencheu o vazio político que se criou após a derrocada completa de todas as relações sociais estabelecidas. Em países como a China, por exemplo, assumiu posições de predomínio graças ao sistema de lideranças proporcionado pelas massas em rebelião. A subida ao poder da burocracia nestes países foi facilitada pela ausência ou debilidade relativa de um proletariado com consciência de classe, capaz de impor suas próprias soluções à crise da sociedade moderna.

22. Nestes países, a burocracia frequentemente revolucionou as relações de propriedade – em alguns casos expropriou as classes dominantes e em outros se fundiu a elas. Apesar disso, nunca modificou as relações de produção, a contradição – no âmbito do processo produtivo – entre dominantes e dominados. Estas sociedades seguiram sendo sociedades de classes. Em seu interior a luta não é somente pela redistribuição da mais-valia, mas também em torno da questão de quem deve governar a produção e a sociedade, se a burocracia ou o proletariado.

23. Nestes países, graças à centralização da vida econômica e a uma ditadura desumana, a burocracia conseguiu assegurar uma veloz acumulação de capital baseada em uma intensa exploração do trabalho. Conseguiu ainda promover a industrialização – nos países em que predomina – mais rapidamente do que nos países de capitalismo privado. Mas a industrialização não é o socialismo. Nem a “racionalização” nem a planificação eliminam as classes e a luta a elas inerente. Sejam privados ou “nacionalizados”, os meios de produção não são de fato uma verdadeira propriedade coletiva na medida em que os trabalhadores não podem dispor realmente deles; em outros termos, não o serão até que os operários controlem direta e totalmente a produção determinando os métodos e os objetivos.

24. Nos países de que falamos, o controle da burocracia sobre a produção é total. E se dá tanto na totalidade da economia como na empresa individual (na qual, no que diz respeito à organização, métodos de trabalho e sistemas de remuneração, não se registra nenhuma diferença em relação à empresa capitalista). A “planificação” não é objeto de controle por parte das massas, trata-se de um instrumento por meio do qual a burocracia controla a produção, orientando-a segundo seus próprios interesses e objetivos a longo prazo. A ditadura política dos Partidos Comunistas e seu controle absoluto sobre os aspectos da vida são um instrumento necessário à burocracia para que garanta seus próprios privilégios e mantenha seu domínio absoluto sobre a sociedade.

II. O programa socialista

25. A história demonstra claramente que nenhuma reforma pode mudar o destino do trabalhador na sociedade capitalista ou resolver a crise em que se encontra a sociedade. O programa dos reformistas de outrora já é realidade em muitos países: a sua futilidade encontra confirmação indiscutível nos fatos! A história demonstra, além disso, que nenhuma classe, categoria ou organização pode edificar o socialismo “em nome” do proletariado ou substituindo-o. Ao socialismo somente poder-se-á chegar por meio da destruição radical do sistema social vigente atualmente. Na medida em que este se encontra dominado pela burocracia, só se poderá chegar ao socialismo destruindo todas as burocracias (entre elas as que se dizem “vanguarda do proletariado”), ou seja, por meio da autonomia e da atividade consciente das massas trabalhadoras. “A emancipação da classe operária é uma tarefa da própria classe operária”.

26. Socialismo significa abolição não só do capitalismo privado, mas sim de todas as classes dominantes e privilegiadas. Significa também a abolição de todos aqueles grupos sociais que pretendem dirigir a produção “em nome do proletariado”.

27. A revolução socialista deve proclamar e realizar a expropriação dos capitalistas e a supressão da burocracia nas fábricas, no Estado, na sociedade em geral. Deve confiar aos trabalhadores (operários, empregados, técnicos) a gestão das fábricas em que trabalham. Os órgãos dessa gestão serão os conselhos operários, as assembleias de fábrica e de setor, os conselhos de fábrica compostos por representantes eleitos, porém revogáveis a qualquer momento. A produção deverá ser programada em harmonia com as necessidades humanas. Deverá se elaborar um grande número de programas alternativos (para possibilitar as diferentes opções), e o cálculo eletrônico servirá cada vez mais para estudar a interação eficaz dos diferentes setores econômicos. Isto porém, não passa do aspecto técnico da planificação. As consequências dos diferentes programas (referentes a questões de fundo, a partir de um ponto de vista humano, como o horário de trabalho, o nível dos consumos, o nível dos investimentos) deverão ser comunicados à população para que possa se pronunciar a respeito. Assim tornar-se-á possível escolher autêntica e significativamente. E este é o aspecto político da planificação. Dever-se-á abolir todo benefício que decorra da exploração do trabalho. Salários e pensões deverão ser iguais até o momento em que, na prática, se torne possível a abolição do dinheiro.

28. Na sociedade contemporânea, o Estado é o alicerce que sustenta todos os sistemas de exploração e de opressão. A revolução socialista deverá destruir o Estado enquanto instrumento de coerção independente e separado da massa.

A gestão do aparato produtivo e as formas de organização social deverão ser radicalmente distintas das de hoje. As novas instituições deverão estar nas mãos dos que nela trabalham. O exército e a polícia atuais deverão ser abolidos. O “povo em armas” defenderá o poder revolucionário contra as tentativas da contrarrevolução. As ameaças mais graves contra à nova sociedade virão não só da ex-classe dominante, como também das tendências burocráticas que surgem no âmbito da própria classe operária, especialmente por parte dos que reclamam e sustentam que é oportuno que a gestão do aparato produtivo e do poder político esteja confiada à minorias “especializadas”. A atividade do governo deverá estar nas mãos das assembleias de representantes eleitos, e constantemente revogáveis, dos conselhos de fábrica e de outros setores da população trabalhadora.

29. A revolução socialista dará uma nova meta à vida humana. A desaparição progressiva da anarquia e do desperdício causados pelo aparato burocrático, junto com a mudança na atitude dos trabalhadores até no aparato produtivo realmente sobre seu controle, permitirão à sociedade desenvolver a produção e o consumo até níveis hoje impensáveis. Tal desenvolvimento, não obstante, não será o principal objetivo da revolução socialista. Desde sua declaração inicial, a revolução deverá aspirar conscientemente à transformação do homem. Deverá fazer grandes esforços para obter uma mudança na própria natureza do trabalho (da sujeição à máquina como ocorre hoje, a uma situação na qual as faculdades criativas possam encontrar pleno desenvolvimento). Deverá se criar uma escola permanente e aberta a todos, mas de uma maneira completamente nova. Deverá ser abolida a separação existente hoje entre a educação e o trabalho, entre a preparação para o trabalho intelectual e para o trabalho manual, entre a escola e a vida cotidiana. Dever-se-á eliminar a divisão existente na atualidade entre a cidade e o campo e, por conseguinte, tentar dar vida a comunidades humanas integradas.

30. Todos estes objetivos não podem ser relegados a um imprevisível futuro “comunista”. Se assim fosse, as pessoas teriam a sensação de que tudo continuaria como antes, em todos os aspectos que as atingem mais de perto. Se assim fosse o dinamismo das massas declinaria. Por amor à “eficiência”, entrariam em ação os “especialistas” e começariam a tomar suas decisões. No princípio, tal modo de proceder poderá estar motivado pelas melhores intenções, mas depois a revolução começará a se degenerar. A revolução socialista tem a possibilidade de ser vitoriosa somente se, desde o primeiro dia, for bem sucedida em propor à humanidade uma nova forma de agir e um novo modelo de vida em todos os campos da atividade humana.

III. A degeneração das organizações da classe operária

31. Em todos os países de capitalismo moderno, a luta de classes assume aspectos contraditórios. No âmbito da produção, tal luta é de uma intensidade jamais experimentada antes, e se orienta tanto no campo das simples reivindicações de ordem econômica, quanto cada vez mais para os problemas relativos às condições de vida e de trabalho na fábrica. As greves “selvagens” nos EUA e as “não oficiais” na Grã Bretanha são confirmações reiteradas dessa tendência.

Por outro lado, fora da fábrica a luta de classes não é tão aguda como antes: ou se manifesta somente de modo prematuro, deformada pelas organizações da classe operária que mobilizam burocraticamente determinadas categorias de trabalhadores; ou a “luta” se resolve no puro e simples apoio eleitoral aos chamados partidos operários. No âmbito político, o tempo atual se caracteriza pela falta quase total de participação proletária. Tal fenômeno (que se define como “apatia” ou “despolitização”) foi mais amplo do que qualquer nível de atividade política anterior da classe operária, mesmo que de modo temporário.

32. Na sociedade atual, o proletariado parece não ter seus próprios objetivos. Não se mobiliza, salvo no sentido eleitoral para apoiar os partidos que afirmam representá-lo. Raramente os militantes de tais partidos são trabalhadores. Visto de fora, o proletariado aparece totalmente sob controle dos aparatos de “seus” partidos e de “seus” sindicatos. Mas este controle é cada vez mais exterior e serve como pano de fundo para a ausência total de participação da classe operária. O apoio dos trabalhadores a tais organizações é puramente passivo. As razões de fundo de tal estado de coisas se encontram em dois processos ligados estreitamente entre si: A evolução do capitalismo moderno e a burocratização das organizações da classe operária.

33. A degeneração das organizações da classe operária não se deve aos “maus dirigentes” que a “traem”. O problema tem raízes muito mais profundas. É, antes de tudo, consequência das pressões e da influência da sociedade capitalista no movimento proletário. Nascidas em sua origem para subverter a sociedade burguesa[2], as organizações políticas e sindicais da classe operária adotaram cada vez mais os objetivos, os métodos, a filosofia e os modelos organizativos da mesma sociedade contra a qual lutavam. Isto levou a que desenvolvessem no seu interior uma crescente separação entre dirigentes e dirigidos, entre quem dá as ordens e quem as recebe. Este processo culminou no surgimento de uma burocracia da classe operária que não se pode nem renovar nem controlar. Esta burocracia persegue seus próprios objetivos.

34. As organizações tradicionais continuam afirmando que dirigem a classe operária. Na realidade, veem na classe operária uma massa de manobra, manejável segundo as ideias pré-concebidas dos que dominam a máquina dos diferentes partidos. Por emancipação da classe operária esta gente entende um grau cada vez maior de participação da classe operária na “prosperidade” geral. Os reformistas sustentam que a isto se pode chegar melhorando a organização do capitalismo tradicional. Os stalinistas e os trotskistas defendem na prática que, o que se necessita, é uma mudança na propriedade formal dos meios de produção além de uma planificação de cima para baixo. Sua filosofia comum se resume em aspirar a um aumento da produção e do consumo como o que ocorreu pelo domínio de uma elite de gestores, elevada à condição de uma nova hierarquia baseada na “habilidade”, na “experiência”, na “devoção à causa”, etc. Tal objetivo não é substancialmente diferente dos que se propõe o capitalismo contemporâneo.

35. A degeneração não se deve a defeitos intrínsecos das organizações da classe operária (como sustentam alguns anarquistas). E tampouco se deve ao fato de que os reformistas e os stalinistas tenham “ideias equivocadas” e apliquem uma “direção incorreta” (como pensam muitos trotskistas e leninistas). E muito menos o desvio se deve à influência negativa de indivíduos particulares (Gaitskell, Stálin, etc.). A verdadeira razão de tudo isto é o fato de que a classe operária, inclusive quando luta por derrubar o sistema capitalista, segue em parte prisioneira dele, e de modo muito mais sutil do que se pode crer habitualmente. Segue prisioneira dele no sentido de que continua concebendo a própria libertação como uma tarefa a ser confiada aos dirigentes de determinadas organizações às quais a classe operária poderia delegar seu próprio papel histórico.

36. As organizações da classe operária (partidos e sindicatos), burocratizadas como estão, há tempos deixaram de expressar os interesses históricos dos trabalhadores. A burocracia reformista tenta assegurar para si um bom cargo na estrutura governamental do capitalismo como ele é sem propor de maneira alguma sua superação. A burocracia stalinista quer instituir um regime do tipo russo, do qual sairia o grupo social dominante, ao mesmo tempo em que tenta fazer da classe operária ocidental um peão da política exterior do bloco russo.

37. Apesar de seus periódicos conflitos com a classe dominante, tanto os partidos e os sindicatos reformistas quanto os stalinistas, aspiram em último caso integrar o proletariado na sociedade de classes. São os veículos por meio dos quais as ideias, atitudes e mentalidade capitalistas se infiltram no proletariado. Estas organizações tentam canalizar e controlar todas as formas de expressão de revolução operária contra a ordem estabelecida. Tentam limitar os excessos do sistema, ou melhor, manter a exploração dentro de limites “toleráveis”. Dão aos trabalhadores a sensação de estarem representados e de “participarem” no governo da sociedade. Sobretudo, continuam negociando concessões salariais em troca de uma crescente submissão da classe operária ao processo produtivo.

38. As organizações políticas e sindicais da classe operária se deparam com um dilema insolúvel. Por um lado, são parte integrante da ordem estabelecida; por outro, aspiram à manutenção do controle de uma classe que – em virtude das condições de vida e trabalho em que se encontra – está induzida a destruir tal ordem estabelecida. Um conjunto de circunstâncias (tipo de estrutura da classe operária, oportunidade de participar das formas de organização da classe, tradições nacionais, formas organizativas que assume, etc.), pode fazer com que os revolucionários se unam individualmente às organizações citadas. Mas não tem qualquer utilidade a assunção pelos revolucionários de cargos de algum relevo em semelhantes partidos e sindicatos. Do mesmo modo, nas organizações revolucionárias não deve haver o mínimo interesse em se proporem objetivos como o de “reformá-las” ou “apropriar-se delas”. As ilusões da classe operária referentes à possibilidade de “democratizar” ou de mudar estes mecanismos não devem ser nutridas; mais do que isso, deve-se denunciar sua inconsistência. As organizações de que a classe operária necessita só podem estar baseadas em estruturas e ideologias completamente diferentes, e fazer uso de métodos de luta completamente diferentes.

39. A apatia e a despolitização são frutos da degeneração burocrática. As organizações da classe operária não se distinguem em nada das instituições políticas burguesas. Seus dirigentes lamentam a falta de participação por parte da classe operária, mas sempre que os trabalhadores tentam participar em massa de algum ato ou decisão, logo gritam que a luta “não está autorizada e que vai contra os autênticos interesses” do sindicato ou do Partido. As estruturas burocráticas impedem a participação ativa dos trabalhadores. Prostituem a ideia do socialismo reduzindo-a a uma simples variação exterior da ordem estabelecida, para chegar à conclusão de que a participação ativa das massas não é necessária.

40. A apatia e a despolitização são também resultados das mudanças sofridas pela sociedade capitalista. A expansão econômica, o pleno emprego, o gradual aumento do nível dos salários durante um longo período (que até agora não chegou ao seu fim), deram à classe operária a ilusão do progresso. Um nível de vida cada vez mais alto parece possível e chega a ser uma das principais preocupações do trabalhador. E o capitalismo, de maneira deliberada e muito hábil, instrumentaliza e estimula tal atitude voltando-a a seu favor.

IV. O caminho a seguir

41. A classe operária possui uma experiência crescente da sociedade capitalista moderna. Atualmente, os trabalhadores estão mais do que nunca em situação de obter uma ideia mais profunda da situação na qual efetivamente se encontram, e de compreender os autênticos problemas que devem levar em consideração se quiserem alcançar sua própria libertação enquanto produtores.

O crescimento constante dos consumos, típico do capitalismo contemporâneo, não está privado de seus problemas específicos. A aquisição de cada vez mais bens é possível a preço de um trabalho cada vez mais pesado (que ao mesmo tempo torna impossível o desfrute dos bens adquiridos). As “necessidades” parecem não terminar jamais. A absurda corrida, como galgos[3] em busca de um nível de vida em contínuo aumento, gera resistências intrínsecas. Os trabalhadores acabarão se dando conta mais claramente de que o verdadeiro problema é a transformação do processo produtivo; em outros termos, a construção do poder operário.

42. Simultaneamente ao aumento de conhecimento, a classe operária percebe de modo cada vez mais claro o fato de que suas organizações estão burocratizadas. Isto fará com que compreendam cada vez melhor que a única solução válida para seus problemas é a ação autônoma, por meio da qual tomarão em suas mãos seu próprio destino.

43. É evidente, mais do que nunca, que a classe operária está passando precisamente por uma experiência deste tipo. São cada vez mais numerosas, tanto nos EUA como na Grã Bretanha, as greves convocadas para modificar as condições de trabalho nas fábricas. Este problema está se tornando o mais importante entre os quais está envolta a classe operária. Ainda que de forma implícita e em pequena escala, cada vez que os operários “contestam” os direitos da direção, na prática o problema em questão é o de quem deve dirigir a empresa e a produção. O número cada vez maior de greves “selvagens” nos Estados Unidos, e “não oficiais” na Grã Bretanha, demonstra claramente que grande parte da classe operária começa a compreender a verdadeira natureza da burocracia sindical. Os mesmos problemas, em toda sua dimensão efetiva, foram a base da Revolução Húngara de 1956. Durante esta grande rebelião, os trabalhadores tentaram destruir a burocracia enquanto tal e conseguir o controle da produção por meio de conselhos operários, órgãos de seu poder.

44. Para superar o presente estado de coisas, a classe operária deve se dotar de sua própria organização revolucionária. É cada vez mais óbvio que os trabalhadores comprometidos hoje na luta de classes têm a necessidade de organizações desse tipo. O que se demonstrou claramente na experiência da greve geral que recentemente eclodiu na Bélgica.

V. A organização revolucionária

45. O nascimento de uma nova organização revolucionária será inútil (e além disso impossível) se suas ideias, seu programa, sua estrutura e seus métodos operativos não se basearem na experiência histórica da classe operária, em particular na dos últimos quarenta anos. Isto significa que se deverá apreender todos os ensinamentos possíveis do período que ficou caracterizado pela burocratização e que se deverá romper com qualquer costume ou resquício do passado. Somente assim poder-se-á dar uma resposta efetiva aos problemas reais, e frequentemente novos, que se imponham à classe operária nos próximos anos.

46. Deve-se mudar radicalmente tanto o conceito de crise da sociedade moderna quanto a crítica do capitalismo. A crítica ao modo de produção e ao modo de trabalho, próprios do capitalismo, deve ser um dos primeiros objetivos da organização revolucionária. Devemos deixar de pensar que o capitalismo organiza as fábricas de maneira racional, estuda racionalmente o maquinário e organiza o trabalho de modo “eficiente” ainda que talvez um pouco brutal e com fins equivocados. Devemos afirmar o que cada trabalhador de cada país vê muito claramente: que o trabalho se tornou absurdo, que implica na constante opressão e castração de quem trabalha e que a organização burocrática do trabalho está na origem da confusão e dos desperdícios sem fim.

Naturalmente, a pobreza material, na medida em que exista, deve ser denunciada assim como os critérios com os quais o capitalismo escolhe o que oferece ao consumo. Não basta criticar a escassez de vagas para a escola: é preciso desmascarar o conteúdo da instrução capitalista. Devemos criticar o conceito de escola como algo separado da vida e da sociedade. Não é suficiente exigir mais locais para a moradia: é preciso denunciar o conceito de cidade-quartel e o modo de vida que nela se obtém.

Não basta dizer que os governos atuais representam os interesses de uma classe privilegiada. Devemos criticar também toda a forma e o conteúdo da política contemporânea, que é uma tarefa reservada aos “viciados em trabalho” que se interessam somente por um pequeno número de problemas bastante circunscritos. Uma organização revolucionária deve romper com o modelo tradicional de fazer política. E deve, além disso, demonstrar que a política revolucionária não se reduz ao problema dos salários, do governo e dos assuntos exteriores, mas sim que interfere em todo o concernente ao homem e sua vida social.

47. Deve-se desmascarar a confusão referente ao programa do socialismo causada pelas organizações degeneradas (reformistas, stalinistas ou trotskistas). A ideia de que o socialismo consiste somente na nacionalização dos meios de produção e na planificação (e de que seu objetivo essencial é o aumento da produção e do consumo) deve ser combatida implacavelmente. Deve-se deixar claro, sem trégua, como tais conceitos se identificam com as linhas fundamentais do capitalismo.

O socialismo significa o governo operário da produção e da sociedade, e o poder aos conselhos operários. Isto deve ser abertamente proclamado e explicado, estando atento a experiência histórica. Essencialmente, o socialismo implica restituir a cada homem de domínio sobre sua própria existência, a transformação do absurdo modelo de trabalho para se ganhar o pão em uma ação livre e criativa de indivíduos e grupos, além do surgimento de comunidades humanas integradas e a fusão da cultura com a vida cotidiana. Este conteúdo chamado de socialismo não deve ser escondido vergonhosamente por parecer uma reflexão abstrata sobre um futuro indeterminado. Ao invés disso, deve-se propor como a única resposta possível aos problemas que torturam e sufocam a sociedade atual. O problema do socialismo deve ser proposto como o que ele é: um projeto de humanização do trabalho e da sociedade. O socialismo não é um quintal de agradável tempo livre anexo à prisão industrial. Não é um rádio de transistores[4] presenteado aos detentos. É a destruição da prisão industrial.

48. As organizações tradicionais da classe operária partem do pressuposto que as questões salariais são o problema principal dos trabalhadores e que o capitalismo não está em condição de satisfazer suas reivindicações neste sentido. Esta é uma ideia já abandonada porque não mais corresponde com precisão à realidade. As organizações revolucionárias que atuam no âmbito dos sindicatos não devem buscar êxito tentando superar os outros grupos no âmbito das demandas por aumentos salariais. Frequentemente, a direção sindical já se compromete em tal sentido, e ao final, o sistema capitalista consegue atender o que sem muita dificuldade. A capacidade do sistema para conceder tais aumentos salariais é – na prática – a base da permanente opção reformista dos sindicatos. O capitalismo contemporâneo só pode sobreviver se conceder frequentes aumentos salariais: por isto, os sindicatos burocratizados e reformistas são indispensáveis. Isto não significa que os revolucionários devam sair do sindicato e não mais lutar por conquistas salariais. Significa, não obstante, que nem uma coisa nem outra têm a importância primordial que antes lhes era atribuída.

49. Na sociedade contemporânea a exploração assume cada vez mais a forma de uma relação hierárquica. A “necessidade” da organização hierárquica se afirma ao mesmo tempo pelos capitalistas e pelas organizações operárias. Efetivamente, tornou-se a base ideológica fundamental do sistema. O movimento revolucionário deve promover uma luta sistemática contra a ideologia da hierarquia em todas as suas manifestações, incluídas aqui a hierarquia dos salários e dos trabalhos nas fábricas e nas próprias organizações operárias.

50. Em qualquer luta, o modo pelo qual se busca o resultado é tão importante quanto o próprio resultado. Do ponto de vista da eficiência, as ações organizadas e dirigidas pelos próprios operários são superiores às decididas e guiadas burocraticamente. Somente as primeiras criam as condições que tornam possível um progresso, posto que somente elas ensinam os operários a gerir por si próprios seus interesses. A atividade do movimento revolucionário deveria estar fundada, antes de tudo, no critério de buscar intervir não para substituir e sim para desenvolver a iniciativa e a autonomia dos trabalhadores.

uir e sim para desenvolver a iniciativa e a autonomia dos trabalhadores. 135. 51. Mesmo quando, no âmbito da produção, as lutas alcançarem uma grande intensidade, será difícil para os operários passarem de um conhecimento da própria experiência imediata à compreensão dos problemas da sociedade em sua totalidade. Neste campo, a organização revolucionária deve desenvolver um papel de primeiro plano. Com isto não nos referimos à agitação estéril ou à especulação sobre os escândalos que pululam na vida dos partidos capitalistas ou dos partidos operários degenerados. Tal tarefa consiste, em demonstrar como o sistema sempre funciona em prejuízo dos trabalhadores, que não podem resolver seus próprios problemas de outra maneira senão suprimindo o capitalismo e a burocracia, e construindo uma sociedade completamente nova. Consiste, além disso, em tornar claro que existe uma profunda e arraigada analogia entre seu destino de produtores e o de homens na sociedade. Nem o primeiro nem o segundo podem ser mudados a não ser que se elimine a divisão da sociedade em duas classes: a que decide e a que se limita a seguir as ordens. Somente graças a um longo e paciente trabalho em tal sentido tornar-se-á possível propor novamente – e em termos corretos – a questão da mobilização dos operários frente a problemas de ordem geral.

52. Na sociedade moderna, a revolução dos jovens e a ruptura entre as gerações obtiveram um relevo que jamais havia tido outrora. Hoje, os jovens não se colocam contra os adultos com o propósito de tomar-lhes o posto, no âmbito de um sistema social estabelecido e aceito. Eles rechaçam tal sistema, não reconhecendo nele valores edificantes. A sociedade contemporânea está perdendo suas amarras nas novas gerações que produz. E tal ruptura é particularmente radical no âmbito político. A grande maioria dos operários politicamente ativos, e dos que apoiam as tradicionais organizações da “esquerda“, qualquer que seja sua boa-fé e vontade, não podem se colocar numa perspectiva de autêntica renovação. Permanecem iludidos com a ideologia de um tempo que já passou. Repetem mecanicamente as lições e as frases aprendidas outrora, frases que hoje não mais possuem qualquer conteúdo revolucionário. Permanecem unidos a esquemas operacionais e organizativos que são equivocados.

53. Deve-se mudar a ideia referente à relação que existe entre o proletariado e a organização revolucionária. A organização não é e não pode ser a direção do proletariado. Deve constituir um instrumento para a luta proletária.

54. A organização revolucionária não estará em condição de combater a tendência à burocratização (que, no ambiente capitalista, reaparece sem trégua) se não funcionar segundo os princípios da democracia proletária e de um modo conscientemente anti-burocrático. Isto implica numa recusa radical do “centralismo democrático” e de todas as demais estruturas organizativas que favorecem a burocratização. Uma organização autenticamente revolucionária implica: a) na autonomia mais ampla possível de todos os grupos locais; b) a democracia direta em todos os casos possíveis; c) delegados eleitos e revogáveis a qualquer momento pelos grupos locais que representam, em todos os casos nos quais a centralização das decisões se mostre necessária.

Para vencer a tendência à burocratização, é necessário muito mais do que garantias constitucionais. Somente se vencerá na medida em que se realize uma autêntica participação coletiva de todos os membros, tanto na atividade como na formulação da linha política.

55. A consciência revolucionária não pode ser unicamente fruto da propaganda. A organização revolucionária deve participar nas lutas dos operários e dos outros extratos da população, tanto os ajudando quanto aprendendo com eles. Inclusive declarando-se incondicionalmente a favor dos trabalhadores, nas lutas nas quais eles se comprometem. Considerando seus interesses imediatos, a organização deve buscar clarear e concretizar os nexos existentes entre tais lutas e os objetivos históricos do movimento proletário (demanda por igualdade salarial, rejeição da alienação do operário no âmbito da produção). A organização deve apoiar todos os métodos que possibilitem a ação coletiva e o controle por parte dos trabalhadores das lutas que eles próprios levam adiante (comitês de greve eletivos e revogáveis, reuniões de massa dos trabalhadores antes da tomada de decisões importantes, etc.). Deve se opor às formas organizativas de tipo burocrático e difundir a ideia da criação de instituições mais representativas (como os conselhos de fábrica). Finalmente, deve construir a máxima solidariedade possível com os trabalhadores em luta, dar informações precisas e difundi-las, além de extrair os ensinamentos possíveis relacionados com os objetivos de longo prazo.

56. A organização revolucionária deve também tentar aproximar as lutas proletárias das lutas dos outros extratos da população, que não tem voz nem voto nas questões que lhes interessam imediatamente. Quanto a isto, o movimento pacifista é uma entidade a ser levada particularmente em conta. Ela também, de fato, contradiz profundamente a ordem estabelecida. Também não pode se movimentar além das organizações tradicionais. Também suscita o entusiasmo dos jovens e pode gerar formas novas de luta e de organização muito significativas para a futura construção do socialismo.

Parte da propaganda e das atividades da organização revolucionária devem ser dirigidas aos novos extratos de trabalhadores assalariados (“colarinhos brancos”, empregados de escritório, estudantes e intelectuais). Deve-se demonstrar continuamente a semelhança entre os objetivos de tais extratos e os da classe operária, assim como a autêntica solução de seus problemas que é única para ambos: ou seja, a democratização completa da sociedade por meio da revolução socialista.

57. A propaganda revolucionária deve ir além. Seu objetivo deve ser também dar uma interpretação e significado gerais às experiências da classe operária, para elevar a luta do âmbito da fábrica ao da sociedade em sua totalidade. Isto implica numa crítica da sociedade capitalista em todos os seus aspectos, segundo a linha de conjunto que descrevemos nestas páginas. Isto implica, além disso, em levar à classe operária o verdadeiro programa do socialismo: a gestão coletiva de uma sociedade autenticamente humana.


[1] Na versão de Zero-ZYX diz: “estas, por sua vez, fazem com que as instituições políticas capitalistas se empenhem em funcionar inclusive em sentido favorável aos interesses da própria classe capitalista.” Isto não tem nenhum sentido aqui e adotamos a solução mais plausível. Nota do CICA.

[2] Esta é uma diferença importante entre as teorias derivadas do grupo Socialismo ou Barbárie e a análise dos comunistas de conselhos. A tese de que a motivação original das organizações operárias era subverter a ordem burguesa, nos leva a ver o problema da degeneração burocrática e reformista como um simples problema de coerência meios-fins. A tese conselhista de que os sindicatos e os partidos políticos operários surgiram, na realidade, como expressões do desequilíbrio social da sociedade capitalista imatura do século XIX. Sua finalidade prática era suprimir essa desigualdade extrema e não o capitalismo como tal, apesar das ilusões que os proletários mais radicais da época tivessem sobre suas finalidades. A tese conselhista leva assim a compreender que a contradição efetiva não está entre “meios e fins”, mas sim entre, por um lado, a consciência e as aspirações efetivas de um movimento operário limitado, e, por outro, a necessidade histórica da superação do capitalismo e de sua natureza de classe antagônica e irreconciliável. A aparente incoerência das organizações operárias tradicionais é, na realidade, expressão de sua coerência prática imanente – ainda que tal coerência esteja envolta numa falsa consciência. O que o comunismo de conselhos sustenta é que a coerência revolucionária “meios-fins” somente pode se desenvolver sobre a base de uma aspiração revolucionária radical e do desenvolvimento da compreensão correspondente à superação efetiva do capitalismo, que somente pode ser produto do amadurecimento histórico da luta de classes. A outra tese chega somente a uma explicação estática do problema da “degeneração” (conceito que implica, em si mesmo, um equívoco): esta seria causada pelo estado de alienação produzido e reproduzido pela sociedade capitalista, com suas consequências sobre as formas de consciência (tese 35 do texto); não seria assim um problema do desenvolvimento histórico do capitalismo e da própria luta de classes, e com ela, da subjetividade proletária e sua práxis, desaparecendo do horizonte a determinação histórico-material do processo ou inclusive dissociando dela a construção da práxis proletária e adotando, consequentemente, o ponto de vista ideológico-diretivo sobre os problemas de desenvolvimento do movimento proletário. A concepção que separa o desenvolvimento da práxis das condições históricas concretas, e por sua vez, o desenvolvimento da consciência do movimento histórico concreto, tende assim a adotar invariavelmente um ponto de vista leninista sobre o problema do desenvolvimento do proletariado como sujeito revolucionário efetivo. Nota do tradutor e digitalizador para o CICA (R. Ferreiro).

[3] Galgos são uma espécie de cães com os quais se promovem corridas, tal como em um jóquei, porém a peculiaridade desta competição é o fato desses animais correrem atrás de um coelho mecânico que está sempre à sua frente e jamais será alcançado. Nota do Tradutor.

[4] A expressão “rádio de transistores” à época queria significar o que havia de mais avançado tecnologicamente em eletroeletrônicos. Para uma analogia atual, seria algo como um “mp3 player”, por exemplo; e quer representar um “agrado” para reconfortar diante de um abuso sofrido. Nota do Tradutor.

O presente texto foi traduzido por Resistência Autonomista. O original encontra-se em: Parte 1 e Parte 2.