Revolução Mundial e Tática Comunista – Anton Pannekoek

Revolução Mundial e Tática Comunista[1] – Anton Pannekoek (1920)

A teoria torna-se uma força material quando se enraíza nas massas.
A teoria se enraíza nas massas… quando se torna radical.
Karl Marx

I

A transformação do capitalismo em comunismo se produz por duas forças, uma material e outra subjetiva, tendo a segunda sua origem na primeira. O desenvolvimento material da economia gera consciência, e esta ativa a vontade para a revolução. A ciência marxista, que surge em função das tendências gerais do desenvolvimento capitalista, forma a teoria do partido – socialista primeiro e, posteriormente, comunista – que dota o movimento revolucionário de uma profunda e vigorosa unidade intelectual. Enquanto esta teoria penetra lentamente em uma parte do proletariado, a experiência pessoal desenvolve nas massas o reconhecimento prático de que, cada vez mais, o capitalismo é inviável. A guerra mundial e o rápido colapso econômico neste momento fizeram com que a revolução se tornasse uma necessidade objetiva antes que as massas tenham introjetado o comunismo subjetivamente. Desta contradição nascem os contrastes, as hesitações e retrocessos que fazem da revolução um processo longo e doloroso. No entanto, se agora a teoria ganha novo impulso e rapidamente se enraíza nas massas, não o faz com a velocidade necessária para acompanhar o gigantesco e súbito crescimento dos problemas e tarefas práticas.

Para a Europa Ocidental o desenvolvimento da revolução está determinado por duas forças motrizes: a derrocada da economia capitalista e o exemplo da Rússia dos Soviets. Não cabe aqui examinar as razões que levaram o proletariado na Rússia a vencer com relativa rapidez e facilidade: debilidade da burguesia, aliança com o campesinato, o fato de a revolução ter eclodido durante a guerra. O exemplo de um Estado em que a população trabalhadora está no poder, eliminou o capitalismo e está empenhada em construir o comunismo, necessariamente causaria enorme influência no proletariado do mundo inteiro. Evidentemente que este exemplo considerado isoladamente seria insuficiente para incitar o proletariado em outros países a fazer a revolução proletária. A mente humana sofre maior influência do ambiente material circundante, e consequentemente, se o capitalismo local tivesse mantido sua força anterior, as notícias da distante Rússia teriam causado pequeno impacto. “Cheias de admiração e respeito, mas também de medo pequeno burguês e sem coragem para salvarem a si mesmas, a Rússia e a humanidade como um todo se colocando em movimento”: assim Rutgers[2] descreveu a subjetividade das massas ao retornar à Europa Ocidental vindo da Rússia. Quando a guerra acabou, se esperava que houvesse uma reativação imediata da economia, enquanto a imprensa mentirosa retratava a Rússia como o lugar do caos e da barbárie e, assim, as massas rejeitavam seguir seu exemplo. Mas depois, ocorreu o contrário: o caos tomou conta dos países da antiga civilização enquanto a nova ordem mostra na Rússia sua força crescente. Agora também aqui as massas se colocam em movimento.

A derrocada econômica é a principal força motriz da revolução. Alemanha e Áustria estão completamente arruinadas economicamente e empobrecidas; Itália e França estão em decadência persistente, Inglaterra está sacudida violentamente e é duvidoso que as medidas vigorosas de reconstrução tomadas por seu governo consigam evitar o colapso e na América começam a surgir os primeiros sinais ameaçadores da crise. E em todos os países, mais ou menos nessa mesma ordem, as massas começam a se agitar, defendendo-se do empobrecimento por meio de greves massivas que atingem ainda mais duramente a economia. Gradativamente tais lutas se transformam em luta revolucionária consciente. As massas, mesmo sem serem comunistas por convicção, tomam o caminho mostrado pelo comunismo, pois a necessidade prática as leva nessa direção.

Produzida em conformidade com esta materialidade e subjetividade, desenvolve-se nestes países a vanguarda comunista, a qual reconhece claramente os objetivos e adere à III Internacional. O sintoma e a prova desse processo de revolução em desenvolvimento é a separação profunda entre comunismo e socialismo (socialdemocracia), tanto em termos subjetivos quanto organizativos. Tal separação é mais antiga nos países da Europa Central, afundados em uma crise aguda pelo Tratado de Versalhes e onde era necessário – para salvar o Estado burguês – um governo socialdemocrata. Ali a crise é tão profunda e irremediável que a massa de trabalhadores socialdemocratas radicais (USPD), mesmo continuando em boa medida adeptos dos velhos métodos, tradições, fórmulas e dirigentes da socialdemocracia, tende fortemente a aderir a Moscou e se declara pela ditadura do proletariado. Na Itália, a totalidade do partido socialdemocrata aderiu à III Internacional, e – mesmo que por meio de uma miscelânea de concepções socialistas, sindicalistas e comunistas – se percebe uma clara, revolucionária e pronta orientação das massas para a luta que se manifesta em uma guerrilha permanente contra o governo e a burguesia. Na França, apenas recentemente grupos comunistas se desligaram do partido socialdemocrata e do movimento sindical e caminham para a formação de um partido comunista. Na Inglaterra, a profunda influência da guerra sobre as condições tradicionais do movimento operário gerou um movimento comunista composto ainda de vários grupos e partidos de origem diversa e de novas organizações. Nos EUA, dois partidos comunistas se separaram do partido socialdemocrata enquanto este último também se declarou a favor de Moscou.

A inesperada resistência da Rússia dos Soviets aos assaltos reacionários forçou a Entente a negociar e causou uma nova e poderosa força de atração nos partidos operários da Europa Ocidental. A II Internacional se desintegra e começou um movimento geral de grupos de centro em direção a Moscou sob o impulso do crescente ânimo revolucionário das massas. Contudo, tais grupos autodenominaram-se comunistas sem alterar substancialmente suas concepções anteriores no fundamental e transferem para a nova Internacional as concepções e métodos da velha socialdemocracia. Ao invés de ser um sinal de que tais países se tornaram mais maduros para a revolução, este fato se transforma em indicador de um fenômeno oposto: ao entrar na III Internacional ou reconhecer seus princípios (como se viu no caso do USPD), a diferenciação rigorosa entre comunistas e socialdemocratas se enfraquece mais uma vez. Por mais que se tente manter formalmente tais partidos fora da III Internacional – em um esforço para manter a coerência de princípios – eles conseguem se infiltrar na direção do movimento revolucionário em cada país e, por meio de uma adesão superficial às fórmulas novas, conseguem manter sua influência sobre as massas que entram em ação. Todo estrato dominante atua assim: em vez de permitir que as massas os eliminem, eles mesmos se tornam “revolucionários” com a finalidade de minar a revolução ao máximo possível com sua influência. E muitos comunistas tendem a enxergar nisso um aumento de forças e não um aumento de fraquezas.

Poderia parecer que, com o surgimento do comunismo e do exemplo russo, a revolução proletária assumiria uma forma simples e direta. Na realidade, agora – ao mesmo tempo em que as dificuldades – surgem as forças que fazem da revolução um processo extremamente complexo e árduo.

II

Os problemas e as soluções, os programas e as táticas, não brotam de princípios abstratos. São determinados pela experiência, pela prática real da vida. As concepções dos comunistas sobre sua meta e os caminhos que levam a ela devem ser elaboradas com base na prática revolucionária desenvolvida até o presente. A Revolução Russa e os rumos da Revolução Alemã formam o material prático dos fatos de que dispomos neste momento para determinar as forças motrizes, as condições e as formas da revolução proletária.

A Revolução Russa levou o proletariado ao poder político em um ascenso tão rápido que, naquele momento, surpreendeu completamente aos observadores ocidentais e, mesmo que as razões disso sejam claramente identificáveis, continua parecendo cada vez mais assombrosa quando comparada com as dificuldades que estamos experimentando agora na Europa Ocidental. Devido ao primeiro afluxo de entusiasmo, seu efeito inicial e inevitável foi subestimar as dificuldades da revolução no resto do mundo. Diante dos olhos do proletariado mundial a Revolução Russa revelou os princípios da nova ordem em todo o seu resplendor e pureza de poder: a ditadura do proletariado, o sistema de soviets como nova democracia, reorganizações da indústria, agricultura e educação. Em muitos aspectos, forneceu um quadro simples, claro, evidente e quase idílico da natureza e do conteúdo da revolução proletária que por pouco se diria que nada pareceria mais fácil que seguir este exemplo. No entanto, a Revolução Alemã mostrou que não era tão simples e que as forças que nela atuaram, também atuam em grande parte do restante da Europa.

Quando o imperialismo alemão caiu em novembro de 1918, o proletariado estava completamente despreparado para exercer a sua dominação. Arruinado subjetiva e materialmente pelos quatro anos de guerra e aprisionado pelas tradições socialdemocratas, não pôde adquirir uma clara consciência de suas tarefas durante as primeiras e breves semanas em que exerceu um efêmero poder governamental. E nem mesmo a intensa e breve propaganda comunista foi capaz de compensar este despreparo tão grande. A burguesia alemã aprendeu mais com o exemplo da Revolução Russa que o proletariado. Disfarçando-se de vermelho com a finalidade de distrair a vigilância dos operários, começou imediatamente a reconstruir as instituições de seu poder. Os conselhos operários entregaram seu poder voluntariamente aos dirigentes do Partido socialdemocrata e ao parlamento democrático. Ao invés de desarmarem a burguesia, os trabalhadores armados – na qualidade de soldados – se autodesarmaram. Os grupos de operários mais ativos foram massacrados por guardas brancos de recente formação e a burguesia foi armada por meio da constituição de milícias civis. Com a ajuda das direções sindicais, o proletariado desarmado foi pouco a pouco expropriado de todas as melhorias em suas condições de trabalho que haviam sido conquistadas ao longo da revolução. Dessa forma, o caminho para o comunismo foi bloqueado com uma cerca de arame farpado para que o capitalismo pudesse sobreviver, isto é, para permitir que possa se afundar cada vez mais no caos.

Evidentemente que a experiência adquirida no curso da revolução alemã não pode ser transferida automaticamente aos demais países da Europa Ocidental, pois em cada caso a revolução assumirá formas diferentes. O poder não cairá de modo imprevisto nas mãos de um proletariado despreparado como resultado de uma catástrofe político-militar. O proletariado terá de lutar duramente para conquistá-lo e, por isso, quando vencer terá alcançado um elevado nível de maturidade. O que aconteceu em ritmo febril na Alemanha após a Revolução de Novembro, ocorre mais serenamente em outros países: a burguesia está tirando suas conclusões da Revolução Russa, fazendo preparativos militares para a guerra civil ao mesmo tempo em que coloca em cena a fraude do proletariado por meio da socialdemocracia. Contudo, apesar dessas diferenças, a Revolução Alemã apresenta alguns traços gerais e oferece alguns ensinamentos de importância geral. Deixou claro que a revolução na Europa Ocidental será um processo longo e lento, e revelou quais são as forças responsáveis por isso.

A lentidão, mesmo que relativa, do desenvolvimento revolucionário na Europa Ocidental originou uma oposição de correntes táticas conflitantes. Em períodos de desenvolvimento revolucionário rápido as diferenças táticas são rapidamente superadas pela ação prática ou nem mesmo chegam a ser conscientes; a intensa agitação de princípios esclarece as mentes das pessoas ao mesmo tempo em que as massas afluem e a práxis da atividade revoluciona as velhas concepções. Mas quando sobrevém um período de marasmo, quando as massas permitem que tudo aconteça sem reagir e a força de atração das soluções revolucionárias parece incapaz de capturar a imaginação, quando as dificuldades se acumulam e o adversário parece sair maior de cada luta, quando o partido comunista continua débil e experimenta somente derrotas, nestas conjunturas as opiniões se dividem e novas perspectivas de ação e novos meios táticos são buscados. Principalmente por tais motivos emergem e se enfrentam duas tendências principais que podem ser identificadas em cada país mesmo diante das particularidades locais. Uma tendência pretende esclarecer e revolucionar as consciências por meio da palavra e da ação, e consequentemente procura colocar do modo mais nítido a oposição entre os novos princípios e as velhas concepções. A outra tendência pretende ganhar para a atividade prática as massas que ainda se mantém a margem e, para isso, enfatiza mais os pontos de acordo que os pontos de diferença em um esforço para evitar, até onde seja possível, qualquer questão que as contrarie. A primeira se esforça por uma separação clara e precisa, e pode ser chamada de tendência radical. A segunda se esforça pela unidade e pode ser chamada de tendência oportunista. Considerando a situação atual na Europa – na qual, por um lado, a revolução se choca com poderosos obstáculos enquanto, por outro, a força inquebrantável da Rússia dos Soviets contra as tentativas de esmagamento pelos governos da Entente para destruí-la, produz uma forte impressão nas massas, pode-se prever um importante afluxo para a III Internacional de agrupamentos operários até agora vacilantes – o oportunismo se converterá indubitavelmente em uma força poderosa na Internacional Comunista.

Oportunismo não implica necessariamente em moderação na linguagem e no conteúdo ou atitudes conciliadoras e pacifistas, nem radicalismo implica em comportamento acerbo. Pelo contrário, a falta de princípios táticos claros geralmente se esconde por trás de palavras veementes e raivosas. De fato, em situações revolucionárias é característico do oportunismo esperar tudo, e de uma vez só, do grande acontecimento revolucionário. Sua natureza consiste em considerar sempre as questões imediatas e não as que se situam no futuro e em sempre se fixar nos aspectos superficiais dos fenômenos em vez de se preocupar com as causas determinantes mais profundas. Quando não se tem forças suficientes para realizar um objetivo de imediato, o oportunismo não procura fazer com que as forças se robusteçam e sim estuda meios para realizar o objetivo por outras vias, contornando as dificuldades. Dado que sua meta é o sucesso imediato, o oportunismo sacrifica as condições para um sucesso duradouro no futuro. Proclama repetidamente que é possível conquistar o poder ou pelo menos debilitar o inimigo, dividi-lo, quebrar a unidade das classes capitalistas e conseguir melhores condições para a luta se o proletariado realizar alianças com outros grupos “progressistas” e fizer concessões diante de concepções caducas. Porém, em tais casos, esse poder resulta sempre em uma aparência de poder, um poder pessoal de alguns dirigentes e não o poder da classe proletária. Esta contradição conduz apenas a confusões, corrupções e conflitos. Um poder governamental conquistado sem ter por trás um proletariado plenamente preparado para exercer a sua dominação está destinado a ser perdido novamente ou a ser obrigado a fazer tantas concessões para concepções reacionárias que ficará podre por dentro. Uma divisão nas classes inimigas – fórmula apreciadíssima pelo reformismo – não afetaria a coesão interna dos capitalistas, mas geraria confusão, ilusão e debilidade no proletariado. Obviamente, pode acontecer de a vanguarda comunista do proletariado ser forçada a tomar o poder antes que ocorram as condições normais, mas, nessa hipótese, apenas terá valor duradouro e servirá de base para o desenvolvimento posterior rumo ao comunismo aquilo que as massas conseguirem adquirir em termos de clareza, perspicácia, solidariedade e autonomia.

A história da II Internacional está repleta de exemplos desta política oportunista e tais exemplos começam a surgir na Terceira. Na época da II Internacional o oportunismo consistia em tentar atingir objetivos socialistas com massas de trabalhadores não socialistas ou de outras classes. Isto levou a táticas corrompidas e, finalmente, à catástrofe. A situação da III Internacional é agora fundamentalmente diferente, pois o período de desenvolvimento capitalista pacífico – no qual a socialdemocracia podia apenas fazer propaganda dos princípios como preparação para épocas revolucionárias futuras – terminou e o capitalismo agora está afundando. O mundo não pode esperar até que nossa propaganda esclareça a maioria sobre uma visão clara do comunismo. As massas devem atuar imediatamente para salvarem a si mesmas e ao mundo da ruína. O que pode fazer um pequeno partido, quaisquer que sejam seus princípios, quando o momento exige as massas? Não seria o oportunismo, com sua pretensão de reunir as massas rapidamente, um imperativo ditado pela necessidade?

Uma revolução não pode ser feita por um pequeno partido radical, nem por um grande partido de massas e tampouco por uma coligação de diferentes partidos. A revolução irrompe espontaneamente das massas. Mesmo que as ações decididas por um partido possam detoná-la (algo que raramente ocorre), as forças determinantes se encontram em dois outros lugares, nos fatores psicológicos que se situam no inconsciente profundo das massas e nos grandes acontecimentos da política mundial. A tarefa de uma organização de revolucionários consiste em divulgar com antecedência posições claras para que, em toda parte no interior das massas, existam pessoas que saibam o que fazer em tais momentos e tenham capacidade própria de avaliação da situação. Durante a revolução, tal organização deve determinar os programas, as palavras de ordem, orientações, soluções e diretrizes que sejam reconhecidas como corretas pelas massas que atuam espontaneamente por entenderem que elas expressam suas próprias aspirações e objetivos da forma mais adequada e atingem assim maior esclarecimento. É deste modo que tal organização se torna uma referência para a luta. Enquanto as massas permanecerem passivas essa tática parecerá infrutífera, mas a clareza de princípios tem um efeito subjetivo em muitas pessoas que em um primeiro momento estejam afastadas da revolução e revela o poder ativo desta fornecendo-lhes uma diretriz clara. Se, pelo contrário, o esforço é no sentido de formar uma grande organização diluindo princípios, fazendo acordos, alianças e concessões, permite-se que, ao chegar o momento da revolução, pessoas confusas tenham influência sem que as massas se apercebam disso por suas próprias insuficiências.

Adaptar-se às posições tradicionais é uma tentativa de conquistar o poder sem revolucionar as ideias como condição prévia. E tem por consequência deter o ritmo da revolução. Além do mais se trata de uma ilusão, pois quando as massas iniciam um processo revolucionário apenas os pensamentos mais radicais conseguem nela se enraizar, ao passo que fora de conjunturas revolucionárias são os pensamentos moderados que predominam. Uma revolução significa um salto profundo no pensamento das massas – ruptura e ascenso -, e simultaneamente engendra as condições para este salto e por ele é condicionada. Por tal motivo, pela força e clareza que seus princípios têm de transformar o mundo, que a direção da revolução recai sobre o partido comunista.

Ao invés de demarcar resoluta e firmemente os novos princípios que separam o comunismo da socialdemocracia (sistema de conselhos e ditadura), o oportunismo na III Internacional se apoia, na medida do possível, nas formas e métodos difundidos pela II Internacional. Depois que a Revolução Russa substituiu o parlamentarismo pelo sistema dos soviets e assentou o movimento sindical sobre as organizações de empresa, o primeiro impulso na Europa Ocidental foi seguir esse exemplo. O Partido Comunista da Alemanha boicotou as eleições à Assembleia Nacional e fez propaganda pela saída – imediata ou progressiva – dos sindicatos. No entanto, quando a revolução entrou em refluxo e paralisou em 1919, o Comitê Central do KPD adotou outra tática, consistente no reconhecimento ao parlamentarismo e no apoio às velhas confederações sindicais contra as uniões industriais. O principal argumento em defesa desta tática foi de que o partido comunista não pode perder contato com as massas, que pensam em termos parlamentares, que se chega melhor a elas por meio de campanhas eleitorais e discursos no parlamento e que as massas tem se filiado maciçamente nos sindicatos, aumentando seu número para sete milhões. Este mesmo pensamento se manifesta na Inglaterra pela atitude do BSP (British Socialist Party) em não querer se desligar do Partido Trabalhista, embora este pertença à II Internacional, por medo de perder contato com a massa trabalhista. Tais argumentos foram formulados e reunidos de modo mais rigoroso por nosso amigo Karl Radek em seu escrito “Desenvolvimento da revolução mundial e as tarefas do partido comunista”, redigido durante sua prisão em Berlim, pode ser considerado como a declaração programática do oportunismo comunista[3]. Nele se explica que a revolução na Europa Ocidental será um processo de longa duração no qual o comunismo deverá utilizar todos os meios de propaganda, dentre os quais a atividade parlamentar e o movimento sindical continuarão a ser as armas principais do proletariado, acrescentando como novo objetivo da luta a introdução gradual do controle operário nas empresas.

A exatidão de nossa posição será demonstrada pelo exame dos fundamentos, condições e dificuldades da revolução proletária na Europa Ocidental.

III

Enfatizou-se muito que a revolução na Europa Ocidental será mais longa pelo fato da burguesia aqui ser mais forte que na Rússia. Analisemos o fundamento dessa força. Reside em seu número? As massas proletárias são muito mais numerosas. Reside no domínio sobre a totalidade da vida econômica? Certamente é um fator considerável de poder, mas esta hegemonia diminui e na Europa Central a economia está em plena bancarrota. Reside, finamente, no controle do Estado com os seus meios de coerção? De fato, sempre reprimiu as massas por este meio e, por isso, a conquista do poder político era o primeiro objetivo do proletariado. Mas em novembro de 1918 o poder de Estado, na Alemanha e na Áustria, saiu sem dificuldade das mãos da burguesia, os instrumentos de violência do Estado estavam totalmente paralisados e as massas estavam no comando. Contudo, a burguesia foi capaz de reconstruir este poder estatal e submeter novamente ao proletariado. Foi a demonstração de que a burguesia possuía outra fonte oculta de poder, que havia ficado intacta, que permitiu a ela restabelecer sua hegemonia quando tudo parecia perdido. Este poder oculto é a influência ideológica da burguesia sobre o proletariado. Pelo fato de estarem completamente dominadas pela mentalidade burguesa, as massas proletárias restauraram com suas próprias mãos a hegemonia da burguesia depois da catástrofe[4].

Esta experiência alemã nos coloca diante do maior problema da revolução na Europa Ocidental. Nestes países, o velho sistema burguês de produção e a cultura burguesa altamente desenvolvida que dele deriva impregnou completamente – e durante muitos séculos – o pensar e o sentir das massas populares. Por isso, a mentalidade e o caráter subjetivo das massas populares são aqui inteiramente distintos daqueles das massas populares dos países da Europa Oriental, que não experimentaram o domínio da cultura burguesa. Esta é a determinação fundamental que faz com que a revolução tenha tomado rumos diferentes no Ocidente e no Oriente europeus. Desde a Idade Média existiu na Inglaterra, França, Holanda, Itália, Alemanha e Escandinávia uma poderosa classe burguesa baseada na pequena produção capitalista primitiva. Com o declínio do Feudalismo, cresceu também ali nas áreas rurais uma classe de camponeses independentes igualmente poderosa. Ambas as classes proprietárias de seus pequenos meios de produção. Sobre esta base se desenvolveu a vida intelectual burguesa até se converter em uma sólida cultura nacional, sobretudo nos países marítimos, Inglaterra e França, que primeiro se desenvolveram em termos capitalistas. No século XIX, a subordinação do conjunto da economia ao capital e a inclusão das áreas rurais mais remotas ao circuito do sistema capitalista de comércio mundial, reforçou e refinou esta cultura nacional, além de fixar solidamente seus valores – por meio das instituições de propaganda tais como escolas, igrejas e imprensa – no mundo subjetivo tanto das massas que proletarizou e empurrou para as cidades, quanto das massas que deixou no campo. Trata-se de uma verdade não apenas nas regiões de origem do capitalismo, como também na América e Austrália, onde os europeus fundaram novos Estados, e nos países da Europa Central (Alemanha, Áustria, Itália) até então de desenvolvimento retardatário, nos quais a nova onda de desenvolvimento capitalista se articulou com a antiga e atrasada pequena economia agrária integrada por pequenos camponeses e de cultura pequeno burguesa. Porém, ao chegar às regiões orientais da Europa, o capitalismo se defrontou com condições materiais e tradições muito diferentes. Na Rússia, Polônia, Hungria e territórios alemães a leste do Rio Elba, não havia classe burguesa poderosa que houvesse dominado desde muito tempo a vida intelectual, que se encontrava determinada por relações agrícolas primitivas, pela grande propriedade da terra, pelo feudalismo patriarcal e pelo comunismo de aldeia. Em função disso, as massas nestas regiões se vincularam ao comunismo de modo mais simples, aberto, receptivas como papel em branco. Com frequência, alguns socialdemocratas da Europa Ocidental expressaram com irônica estranheza o fato dos “ignorantes” russos se proclamarem a vanguarda do novo mundo proletário. Em resposta a eles, um delegado inglês na conferência comunista em Amsterdam[5] apontou corretamente a diferença: os russos podem ter sido mais ignorantes, mas o proletariado inglês está abarrotado de preconceitos a tal ponto que a propaganda do comunismo entre eles é muito mais difícil. Tais preconceitos são apenas o aspecto superficial, exterior, da mentalidade burguesa que satura a maioria do proletariado na Inglaterra, Europa Ocidental e América.

O conteúdo integral desta mentalidade é tão multifacetado e complexo em sua oposição à concepção proletária e comunista do mundo que dificilmente poderia ser resumido em poucas frases. Seu primeiro traço distintivo é o individualismo, originado das primevas formas de trabalho camponês e pequeno burguês, que apenas gradualmente cede lugar ao novo sentimento coletivista proletário e à necessária disciplina voluntária (provavelmente esta característica é mais pronunciada tanto na burguesia quanto no proletariado dos países anglo-saxões). A perspectiva individualista se circunscreve ao seu lugar de trabalho, ao invés de abranger toda a sociedade. O princípio da divisão social do trabalho aparece de modo tão absoluto que a própria política, o governo do conjunto da sociedade, não é visto como assunto de interesse de todos mas sim como monopólio de um extrato dominante, área de certo tipo de especialistas, os políticos. A cultura burguesa, após séculos de comércio, material e intelectual, e por meio de sua literatura e arte, se enraizou profundamente nas massas proletárias e gerou um sentimento de unidade nacional – enraizamento mais profundo que a indiferença perante o exterior ou o internacionalismo de fachada possa sugerir – que pode se expressar sob a forma de solidariedade nacional de classe e impedir o internacionalismo.

A cultura burguesa existe no proletariado sobretudo como paradigma tradicional do pensamento. As massas que dela são prisioneiras pensam mais em termos ideológicos que em termos realistas, pois o pensamento burguês sempre foi ideológico. Porém, esta ideologia e esta tradição não estão integradas. Os reflexos subjetivos derivados das inumeráveis lutas de classes travadas ao longo dos séculos passados, transmitidos sob a forma de sistemas de pensamento político e religioso, dividem o velho mundo burguês – e consequentemente o proletariado que surgiu dele – em grupos, igrejas, seitas, partidos divididos segundo concepções ideológicas. Assim, em segundo lugar, o passado burguês também sobrevive no proletariado sob a forma de tradição organizativa que bloqueia o caminho para a unidade de classe necessária para a criação do novo mundo. Nestas organizações arcaicas os proletários constituem os seguidores e aderentes de uma vanguarda burguesa. Os dirigentes imediatos destas lutas ideológicas são fornecidos pela intelectualidade (padres, professores, literatos, jornalistas, artistas, políticos) que forma uma classe numerosa cuja função é fomentar, desenvolver e propagar a cultura burguesa. Estes intelectuais a transmitem às massas e atuam como intermediários entre a dominação do capital e os interesses das massas. A hegemonia do capital sobre as massas se enraíza por meio da influência deste grupo. De fato, mesmo que as massas tenham se rebelado frequentemente contra o Capital e suas instituições, somente o fizeram sob a direção destes dirigentes intelectuais e quando, mais tarde, eles se passaram abertamente para o lado do capitalismo, a consistente solidariedade e disciplina adquiridas nestas lutas comuns se converteram no mais firme apoio ao sistema. Assim se manifesta a ideologia cristã dos decadentes extratos pequeno-burgueses que, enquanto expressão da luta contra o moderno Estado capitalista, chegou a ser uma força viva e, na sequência, se converteu em regra em um sistema de governo reacionário e conservador de grande valor como ocorreu com o catolicismo na Alemanha após a Kulturkampf[6]. Pode-se dizer mais ou menos o mesmo da socialdemocracia, em que pese o valor de sua contribuição teórica para destruir e expulsar as velhas ideologias do proletariado quando precisou se sublevar: tornou as massas mentalmente dependentes de dirigentes políticos ou de outro tipo que, na qualidade de especialistas, receberam a confiança das massas para se encarregarem de todos os assuntos importantes, de natureza geral, que afetavam a classe, ao invés de elas mesmas se ocuparem disso. As relações de solidariedade e a disciplina forjadas em encarniçadas lutas de classes durante meio século não enterraram o capitalismo, pois significaram o poder dos dirigentes e das organizações sobre as massas. Em agosto de 1914 e novembro de 1918 tais poderes converteram as massas em poderoso instrumento da burguesia, do imperialismo e da reação. O poder ideológico do passado burguês sobre o proletariado significa em muitos países da Europa Ocidental, Alemanha e Holanda por exemplo, a existência de divisões entre proletários separados por grupos ideológicos que impedem a unidade da classe. Originalmente a socialdemocracia objetivava realizar esta unidade de classe, mas, em parte por causa de sua tática oportunista que colocava a ação puramente política em substituição à política de classe, fracassou e não fez mais do que agregar mais um grupo aos que já existiam.

Em tempos de crise, quando as massas são levadas ao desespero e à ação, a hegemonia da ideologia burguesa sobre elas não pode impedir o declínio temporário da força de tais tradições, como ocorreu na Alemanha em novembro de 1918. Mas logo em seguida a ideologia ressurgiu e transformou a vitória temporária em derrota. O exemplo alemão revela as forças concretas que, de nosso ponto de vista, expressam a hegemonia das concepções burguesas: a veneração por fórmulas abstratas como “democracia”, o poder dos antigos hábitos de pensamento e de velhos pontos programáticos como a realização do socialismo por meio de dirigentes parlamentares e de um governo socialista, falta de confiança do proletariado em si mesmo – demonstrada pela influência sobre as massas da enorme onda de sujas mentiras publicadas sobre a Rússia na imprensa -, falta de credibilidade das massas em seu próprio poder, e, sobretudo, na confiança no partido, nas organizações e nos dirigentes que durante décadas personificaram as lutas proletárias, seus objetivos revolucionários, seu idealismo. A tremenda força mental, moral e material das organizações, essas gigantescas máquinas criadas pelas próprias massas durante anos de trabalho perseverante, que representam a tradição das formas de luta de um período no qual o movimento operário era uma parte do capitalismo em ascensão, neste momento esmagam todas as tendências revolucionárias que despertavam entre as massas.

Este exemplo não será único. A contradição entre a rápida derrocada econômica do capitalismo e a imaturidade subjetiva, representada pela força das concepções burguesas sobre o proletariado – contradição que não se deu por acaso, dado que enquanto o capitalismo florescer o proletariado não adquirirá maturidade subjetiva para o poder e a liberdade – apenas pode se resolver pelo processo de desenvolvimento revolucionário, no qual levantes espontâneos e tomadas de poder se alternam com retrocessos. Isto determina um curso tal da revolução que, durante um longo período, o proletariado se lançará, sempre em vão, contra a fortaleza do capital se valendo tanto de velhos quanto de novos meios de luta até que seja finalmente conquistada de uma vez por todas no futuro. Desse modo, fracassa também a tática proposta por Radék de um prolongado e complexo assédio. O problema da tática não consiste em pesquisar como se pode conquistar o poder de forma mais rápida possível, pois neste caso será um poder ilusório – e este cairá relativamente rápido nas mãos dos comunistas -, e sim em como devem se formar no proletariado os fundamentos de um poder duradouro. Nenhuma “minoria decidida” pode resolver problemas que apenas são resolvidos pela ação da classe como um todo. Se a massa da população permite que aconteça tal conquista de poder de modo aparentemente indiferente, não se trata de uma massa realmente passiva, mas significa que – enquanto não estiver ganha para o comunismo – será capaz a qualquer instante de se virar contra a revolução e se tornar seguidora ativa da reação. Até mesmo uma “coligação com a forca nas mãos” seria um paliativo para disfarçar tal tipo de ditadura de partido[7]. Se o proletariado por meio de um levante violento destrói o poder burguês em bancarrota, e o partido comunista, sua vanguarda mais consciente, assume a direção política, tem apenas uma tarefa: erradicar por todos os meios as fontes de debilidade no proletariado e fortalecê-lo a fim de capacitá-lo no mais alto nível para as lutas revolucionárias futuras. Isto significa elevar o nível de atividade das massas ao máximo, estimular suas iniciativas, reforçar sua autoconfiança, para que elas mesmas saibam reconhecer as tarefas que somente elas podem realizar e apenas desse modo podem ser realizadas com sucesso. Para atingir tal objetivo é preciso acabar com a dominação das formas tradicionais de organização e dos velhos dirigentes (em nenhuma hipótese formar com eles uma coalizão governamental), construir as novas instituições, consolidar o poder material das massas. Somente assim será possível reorganizar a produção e defender a revolução contra os ataques do capitalismo vindos do exterior, primeira condição para impedir a contrarrevolução.

O poder que a burguesia ainda possui neste período se assenta na ausência de autonomia e na dependência subjetiva do proletariado. O desenvolvimento da revolução corresponde ao processo de autoemancipação proletária dessa dependência e das tradições do passado – o que apenas é possível por meio de sua própria experiência de luta. Onde o capitalismo é antigo e a luta proletária contra ele dura várias gerações, o proletariado foi obrigado em cada período a criar métodos, formas e instrumentos de luta adaptados ao grau de evolução do capitalismo. Porém, rapidamente deixaram de ser vistos como recursos temporários que são e passaram a ser idolatrados como formas finais, acabadas, absolutas, perfeitas e, assim, se converteram em obstáculos ao desenvolvimento da revolução que devem ser removidos. Enquanto a classe passa por um processo de transformação em evolução cada vez mais rápida, os dirigentes permanecem em uma fase determinada, como representantes de uma determinada fase, e podem deter o movimento com sua grande influência. As formas de ação se transformam em dogmas e as organizações são elevadas à condição de fins em si mesma, dificultando uma orientação nova e condições de luta modificadas. Isto é válido neste momento, pois cada fase de luta deve superar a tradição da fase anterior para ser capaz de reconhecer com clareza suas tarefas e realizá-las eficazmente, embora no presente a situação evolua em ritmo acelerado. Este é o modo como a revolução se desenvolve em seu processo de luta interna, pois é no interior do próprio proletariado onde se engendram as resistências que deve superar e, ao superá-las, supera suas limitações e amadurece para o comunismo.

IV

Na época da II Internacional as duas principais formas de luta foram a atividade parlamentar e o movimento sindical.

Os congressos da I Associação Internacional dos Trabalhadores fixaram as bases dessa tática, refutaram concepções primitivas dos tempos pré-capitalistas e pequeno burgueses e, de acordo com a teoria social de Marx, definiram o caráter da luta de classes como uma luta contínua do proletariado contra o capitalismo por suas condições de vida até a conquista do poder político. Quando terminou a fase das revoluções burguesas e das insurreições armadas, esta luta política teve que ser travada nos limites de Estados nacionais recém criados ou antigos e a luta sindical em limites ainda mais estritos. Por tal motivo, a I Internacional estava destinada a se dissolver e a luta pelas novas táticas, que ela mesma era incapaz de levar à prática, a fez acabar enquanto a tradição das velhas concepções e velhos métodos permaneceu viva no anarquismo. As novas táticas foram deixadas como legado pela Internacional aos que a colocariam em prática: sindicatos e partidos socialdemocratas que surgiam por todas as partes. Quando deles surgiu a II Internacional sob a forma de uma federação com vínculos frouxos, ainda foi preciso combater as tradições do período anterior representadas pelo anarquismo, mas o legado da I Internacional já constituía sua base tática indiscutível. Hoje todo comunista sabe por que tais métodos de luta foram necessários naquele momento: quando o proletariado ainda está se desenvolvendo no interior do capitalismo ascendente, não é capaz de criar o conjunto de instituições por meio das quais será possível dominar e ordenar a sociedade, e sequer concebe a necessidade de fazê-lo. Antes de tudo deve se orientar mentalmente e aprender a entender o capitalismo e sua classe dominante. Assim, a vanguarda do proletariado, o partido socialdemocrata, devia revelar a natureza do sistema por meio de sua propaganda, propor as reivindicações de classe e mostrar às massas quais são seus objetivos. Consequentemente para seus representantes era necessário entrar nos parlamentos – esses centros do poder burguês – com o objetivo de elevar suas vozes nas tribunas e participar das lutas políticas dos partidos.

As coisas mudam quando a luta do proletariado entra em uma fase revolucionária. Não trataremos aqui das razões pelas quais o sistema parlamentar, enquanto sistema de governo, não se adapta ao autogoverno das massas e deve ser substituído pelo sistema dos soviets e sim da utilização do parlamento como meio de luta do proletariado[8]. O parlamentarismo é a forma típica da luta mediada por dirigentes, em que as massas desempenham um papel subordinado. Sua prática consiste em deixar a direção efetiva da luta nas mãos de personalidades separadas, os deputados, e estes por sua vez devem manter as massas na ilusão de que outros podem travar a luta por elas. Antigamente se acreditava que os deputados eram capazes de conseguir, pela via parlamentar, reformas importantes em favor do proletariado, tal ilusão chegava ao ponto de imaginar que os parlamentares poderiam realizar a revolução socialista por meio de medidas legislativas. Hoje, quando o parlamentarismo sofreu abalos, argumenta-se que a tribuna parlamentar pode ser um importante espaço para a propaganda comunista[9]. Em ambos os casos a importância decisiva é atribuída aos dirigentes e escusado será dizer que o cuidado na definição da política a seguir é deixada aos especialistas, disfarçadas de discussões democráticas e resoluções de congresso. Mas a história da social-democracia é uma série ininterrupta de tentativas frustradas para permitir que os próprios militantes definam a política do partido. Enquanto o proletariado lutar pela via do parlamento e não construir os órgãos de sua própria ação e, portanto, a revolução não esteja na agenda, isso é inevitável. Pelo contrário, a partir do momento que as massas sejam capazes de intervir, agir e, portanto, decidir por si mesmas, os danos causados pelo parlamento assumem um caráter de gravidade sem precedentes.

O problema da tática consiste em encontrar os meios de extirpar das massas proletárias a mentalidade burguesa que as paralisa. Tudo o que fortalece as concepções tradicionais é nocivo. O aspecto mais persistente e solidamente estabelecido desta mentalidade reside nesta aceitação da dependência em relação aos dirigentes, que faz com que as massas deixem com os dirigentes o poder de decidir a direção de seus interesses de classe. O parlamentarismo tem por efeito inevitável paralisar a atividade das massas, necessária à revolução. De nada adianta e nada muda com belos discursos e apelos inflamados à ação revolucionária: esta nasce da dura e árdua necessidade, quando não há outra saída.

A revolução exige ainda algo mais que a ofensiva das massas, capaz de derrubar o regime vigente fruto das necessidades profundas das massas. Exige que o proletariado assuma os grandes problemas da reconstrução social, tome decisões difíceis, participe como um todo no movimento criador. Para tanto é necessário que a vanguarda e, em seguida, as massas cada vez mais amplas tomem as coisas em suas mãos, se considerem responsáveis, se dediquem a tentar, a fazer propaganda, a combater, experimentar, refletir, considerar para depois se atrever e chegar até o final. Mas tudo isso é duro e penoso. Por isso, enquanto o proletariado tiver a impressão de que existe um caminho mais fácil – em que outros atuem no seu lugar, lancem consignas do alto de uma tribuna, tomem decisões, deem o sinal para a ação, façam leis – ele vacilará, permanecerá passivo e prisioneiro dos velhos hábitos de pensamento e das velhas debilidades.

Enquanto, por um lado, o parlamentarismo tem o efeito contrarrevolucionário de fortalecer a preponderância dos dirigentes sobre as massas, por outro, tende a corromper aos próprios dirigentes. Quando a habilidade política pessoal precisa compensar as carências das massas, ocorre uma diplomacia minuciosa. Qualquer tentativa que o partido queira iniciar, necessita adquirir uma base legal, conquistar uma posição parlamentar, de tal modo que, ao final, se inverte a relação entre meios e fins. O parlamento deixa de ser um meio para alcançar o comunismo e este se transforma em fórmula anunciadora da política parlamentar. No processo, o próprio partido comunista assume um caráter diferente: ao invés de ser uma vanguarda que reúne atrás de si o conjunto da classe para a ação revolucionária, se transforma em um partido parlamentar com o mesmo status legal que os demais, manobrando da mesma maneira que eles, ou seja, uma nova edição da velha socialdemocracia com slogans radicais.

Assim, no que concerne à sua natureza interna, não deve haver nenhuma contradição antagônica entre o proletariado revolucionário e o partido comunista – dado que o partido comunista encarna uma forma de síntese entre a consciência de classe proletária mais lúcida e sua crescente unidade – mas o parlamentarismo rompe esta unidade e cria a possibilidade de tal antagonismo: ao invés de unificar a classe, o comunismo se converte em novo partido, com seus próprios dirigentes, que se alia a outros partidos e, assim, perpetua a divisão política do proletariado. E acontecerão situações em que o partido tentará com todas as suas forças destruir a compacidade e a força da classe por meio de concessões, acordos e outros pretextos.

Está fora de dúvidas que todas estas tendências serão interrompidas com o desenvolvimento da economia em sentido revolucionário, mas, mesmo em suas primeiras manifestações, tal processo causa estragos no movimento revolucionário, inibindo a evolução subjetiva de uma clara consciência de classe, e, quando a situação econômica favorecer a contrarrevolução, esta política limpará o caminho para desviar a revolução para o terreno da reação.

O que existe de grande e verdadeiramente comunista na Revolução Russa é, acima de tudo, o fato de haver despertado a autoatividade das massas e ter desenvolvido nelas uma energia subjetiva e física tal que as torna aptas para construir e sustentar uma nova sociedade. Este despertar das massas para a consciência de sua própria força é algo que não pode ser alcançado subitamente, de uma só vez, mas sim apenas gradualmente, exige fases. E a fase de negação do parlamentarismo é uma delas no caminho que leva à autonomia e à autolibertação.

Quando, em dezembro de 1918, o Partido Comunista da Alemanha, recentemente formado, decidiu boicotar a Assembleia Nacional, não o fez a partir da ilusão prematura de que haveria uma vitória rápida e fácil, mas da necessidade que tinha o proletariado de se livrar da dependência subjetiva dos representantes parlamentares – reação necessária contra a tradição socialdemocrata – e porque, em seguida, o caminho para a autoatividade podia se vislumbrar pela construção do sistema de conselhos. Mas uma parte dos que estavam juntos nesse momento, isto é, os que permaneceram no KPD (Spartakusbund), readotaram o parlamentarismo após o refluxo da revolução. As consequências disso ainda veremos, mas parte delas já foi demonstrada. Em outros países as opiniões dos comunistas estão divididas e muitos grupos se negam a utilizar o parlamentarismo antes mesmo da eclosão da revolução. Assim, a disputa internacional sobre o uso do parlamento como método de luta será um dos principais problemas táticos dentro da III Internacional nos próximos anos.

Por outro lado, todos estão de acordo que a atividade parlamentar é apenas um aspecto secundário de nossa tática. A II Internacional pôde se desenvolver até o ponto em que revelou a essência da nova tática: o proletariado somente pode vencer o imperialismo com a arma da ação de massas. Mas ela mesma era incapaz de empregá-la, pois estava forçada a sucumbir quando a guerra mundial colocou a luta de classes sobre bases internacionais. O resultado alcançado pela Internacional precedente constitui naturalmente a base para a nova: a ação de massas do proletariado até o ponto da greve geral e da guerra civil constitui a plataforma tática comum dos comunistas. Na atividade parlamentar o proletariado está dividido em seções nacionais e não é possível uma intervenção genuinamente internacional. Na ação de massas contra o capital internacional as divisões nacionais se enfraquecem e cada movimento, em qualquer país que se estenda ou se limite, é parte de uma única luta mundial.

V

Da mesma forma que o parlamentarismo expressa o domínio subjetivo dos dirigentes sobre as massas trabalhadoras, o movimento sindical expressa seu poder material. No regime capitalista, os sindicatos constituem as organizações naturais para agrupar o proletariado. Neste aspecto, Marx acentuou sua importância desde o princípio. No capitalismo desenvolvido, e mais ainda na fase imperialista, os sindicatos se converteram em gigantescas confederações que apresentam as mesmas tendências evolutivas já manifestadas no próprio Estado burguês em período anterior. Neles se formou uma classe de funcionários, uma burocracia, que controla todos os recursos da organização – dinheiro, imprensa, contratação de funcionários e, com frequência, até poderes de maior alcance de modo que deixaram de serem servidores da coletividade convertendo-se em seus senhores, identificando-se com a organização -. E os sindicatos também se assemelham ao Estado e sua burocracia, mesmo considerando as formas democráticas, devido ao fato de que a vontade dos sindicalizados é incapaz de prevalecer contra a burocracia: toda rebelião é contida pelo aparelho, cuidadosamente constituído de regulamentos e estatutos, antes que possa abalar a hierarquia. Apenas depois de anos de obstinada persistência uma oposição algumas vezes consegue obter um limitado êxito, em geral restrito a mudanças de pessoas. Por isso nos últimos anos, antes e depois da guerra, na Inglaterra, Alemanha e América ocorreram revoltas frequentes dos sindicalizados que lutaram por iniciativa própria, contra a vontade dos dirigentes ou das decisões do próprio sindicato. Que tais acontecimentos pareçam e sejam considerados naturais demonstram que a organização já não é o conjunto dos que estão organizados, mas algo que lhes é estranho, que não é por eles controlada e sim que lhes é exterior e situada como uma força acima deles e contra a qual podem se rebelar ainda que tenha surgido deles – mais uma vez como o próprio Estado -. Quando a revolta se apaga, a velha ordem de coisas se reestabelece. Apesar do ódio e da amargura impotente das massas, tal ordem acaba se afirmando fundada na indiferença das massas, na sua falta de visão clara, de vontade unitária e persistente, e na necessidade interna do sindicato como único meio de encontrar força numérica contra o capital.

Na medida em que lutava contra o capital, combatendo suas tendências geradoras de miséria absoluta, colocando limites a esta última e possibilitando assim a existência do proletariado nos marcos de sua função no capitalismo, o movimento sindical cumpriu sua função e se tornou, por tal motivo, integrante da sociedade capitalista. Quando chega a revolução e o proletariado passa de integrante a destruidor da sociedade capitalista, o sindicato entra em conflito com o proletariado.

O sindicato se torna legalista, partidário do Estado e reconhecido por ele, apresenta a palavra de ordem da “expansão da economia antes da revolução”, ou seja, a manutenção do capitalismo. Hoje, na Alemanha, milhões de proletários, até agora intimidados pelo terrorismo da classe dominante, chegam aos sindicatos com um misto de veneração timorata e desejo de luta. Neste momento a semelhança entre as organizações sindicais, que abrangem a quase totalidade do proletariado, e o Estado ficou ainda maior. Os funcionários sindicais colaboram com a burocracia estatal não apenas usando seu poder para submeter o proletariado em nome do capital, mas também pelo fato de que sua “política” tende cada vez a enganar as massas por meios demagógicos e assim garantir seu consentimento para os acordos que realizam com os capitalistas. Além disso, os métodos empregados variam de acordo com as condições: grosseiro e brutal na Alemanha, onde os dirigentes sindicais impuseram pela força aos trabalhadores o trabalho por peça e o aumento da jornada de trabalho; astuto e refinado na Inglaterra onde a burocracia sindical – do mesmo modo que o governo – aparenta se deixar levar sorridentemente pelos operários, enquanto na verdade sabota suas reivindicações.

Marx e Lênin precisaram insistentemente que o Estado, em que pese suas formas democráticas, não se presta como instrumento para a revolução proletária. Tal verdade deve valer também para as organizações sindicais. A força contrarrevolucionária dos sindicatos não pode ser destruída pela substituição de dirigentes sindicais reacionários por dirigentes radicais ou “revolucionários”. É a própria forma dessa organização que torna as massas quase impotentes e as impede de fazer dela uma instituição de sua vontade. Para triunfar, a revolução precisa destruir essa organização. Isto significa revolucionar completamente sua estrutura organizativa a ponto de torná-la algo inteiramente diferente: o sistema de conselhos. Sua instauração está em condições de extirpar e eliminar tanto a burocracia sindical quanto a burocracia estatal. Formará tanto as novas instituições políticas para substituir o parlamento quanto as bases de novos sindicatos. A ideia de que uma forma organizativa particular pode ser revolucionária foi ridicularizada nas disputas de partidos na Alemanha, sob o argumento de que o que vale é a mentalidade revolucionária de quem as integra. Mas se o elemento mais importante da revolução consiste em as massas tomarem em suas próprias mãos os assuntos que lhe dizem respeito – a direção da sociedade e da produção – então qualquer forma de organização que impeça o controle e a direção pelas próprias massas é contrarrevolucionária e prejudicial e deve ser substituída por outra forma que é revolucionária por possibilitar aos próprios proletários decidir ativamente sobre qualquer assunto. Isto não significa que tais instituições devem ser criadas e aperfeiçoadas em conjunturas de passividade da classe proletária, para que futuramente os operários possam nelas atuar, para atender a um desejo revolucionário. Tais formas somente podem ser criadas no processo da revolução, por meio da atuação revolucionária dos proletários. Mas reconhecer a significação da forma organizativa atual determina a atitude que os comunistas devem tomar em relação aos esforços que estão sendo feitos neste momento para debilitá-la ou suprimi-la.

O esforço em restringir o aparato burocrático ao máximo possível e buscar todas as forças na efetiva atividade das massas tem sido marcantes no movimento sindicalista[10] e ainda mais no movimento das uniões “industriais”. Por essa razão muitos comunistas se posicionaram pelo apoio a estas organizações contra as confederações centrais. Mas enquanto o capitalismo permanecer hegemônico, estas novas instituições não podem alcançar grande importância. A importância do IWW estadunidense deriva de circunstâncias particulares: existência de um proletariado numeroso, inexperiente, de origem estrangeira em sua maioria e alheio às velhas confederações. O movimento dos comitês e delegados de fábrica (shopcommitteese shop stewards) na Inglaterra está mais próximo do Sistema de Sovietes por serem órgãos de massas formados em oposição à burocracia no curso da luta. As Uniões na Alemanha estão deliberadamente estruturadas em ainda maior conformidade com a ideia dos sovietes, mas o estancamento da revolução as debilitou. Cada nova instituição desse tipo, que debilita as confederações centrais e sua coesão interna, remove um obstáculo para a revolução e enfraquece o poder contrarrevolucionário da burocracia sindical. Seria uma ideia sedutora fazer entrar nessas confederações todas as forças de oposição e revolucionárias com o objetivo de conquistar a maioria dentro delas e assim poder transformá-las. Mas, em primeiro lugar, seria uma ilusão tão fantasiosa quanto a ideia de conquistar o partido socialdemocrata, pois a burocracia sabe como tratar com uma oposição antes que chegue a ser perigosa. Em segundo lugar, a revolução não se desenvolve de acordo com um programa uniforme e sim por meio de explosões fundamentais de grupos que atuam apaixonadamente e que cumprem a função de impulsioná-la para frente. Se os comunistas forem defender as confederações centrais contra tais iniciativas, por considerações oportunistas visando ganhos imediatos, reforçariam os obstáculos que se colocariam mais tarde diante deles com maior energia.

A criação dos sovietes pelos trabalhadores – seus próprios órgãos de poder e ação – significa a desintegração e dissolução do Estado. Por ser mais jovem enquanto forma de organização, de criação mais recente, moderna e criada pelo próprio proletariado, o sindicato sobreviverá por mais tempo porque possui suas raízes em uma tradição de relações que se criaram e se desenvolveram de modo autônomo, e, por isso, conserva um lugar no mundo subjetivo do proletariado mesmo depois que ele tenha superado as ilusões democráticas e estatais. Porém, mesmo que o sindicato tenha sido obra da própria atividade criativa do proletariado, também será neste campo onde veremos novas instituições como seguidas tentativas de se adaptar às novas condições. No curso da revolução serão criadas novas formas de luta e organização baseadas no modelo dos sovietes em um processo de contínua transformação e desenvolvimento.

VI

A concepção de que a revolução proletária na Europa Ocidental assumirá a forma de um assédio organizado à fortaleza do capital, que o proletariado – organizado pelo partido comunista em um exército disciplinado e usando armas provadas no tempo – assaltará com ataques repetidos até que o inimigo se renda, ao mesmo tempo em que conquista gradualmente o controle da indústria, é uma concepção neorreformista que não corresponde às condições da luta nos velhos países capitalistas. Aqui e acolá podem ocorrer revoluções e conquistas do poder que rapidamente se transformam em derrota. A burguesia poderá reafirmar sua dominação que resultará em maior desordem da economia. Formas políticas de transição podem aparecer, mas destinadas a prolongar o caos por sua inadequação. Em qualquer sociedade certas condições devem existir para que o processo social de produção e de existência coletiva seja possível, e tais relações – por uma longa prática histórica – adquirem solidez e persistência por meio de hábitos espontâneos e normas morais (sentimentos de dever, diligência e disciplina). O processo revolucionário consiste, em primeira instância, na dissolução destas velhas relações que deve acontecer concomitante com as novas relações comunistas que reorganizam o trabalho e a sociedade, cujo desenvolvimento se observa na Rússia, embora ainda não tenham se tornado fortes o suficiente. Por isso é inevitável um período transitório de caos social e político. Onde o proletariado for capaz de tomar e conservar o poder rapidamente, como na Rússia, o período de transição pode ser breve e acabar depressa por meio do trabalho de construção positiva. Mas na Europa Ocidental o processo de destruição será muito mais lento. Na Alemanha vemos a divisão do proletariado em grupos por causa da evolução deste processo que o torna incapaz de se unificar na luta. Os sintomas de movimentos revolucionários recentes indicam que toda a nação alemã, e em geral toda a Europa Central, está em dissolução e as massas populares se fragmentam em categorias e regiões, cada qual atuando por sua conta: aqui se armando e conquistando parcialmente o poder político; ali paralisam o poder da burguesia por meio de greves; acolá se fechando em si mesmas como se fosse uma república camponesa; além apoiando os guardas brancos ou abatendo os restos de feudalismo por meio de primitivas revoltas agrárias. Evidentemente que a destruição das forças do mundo antigo deve ser total antes que se possa pensar na construção efetiva do comunismo. O partido comunista não pode ter por tarefa atuar como professor, ensinando esta revolução aos proletários ou em fazer tentativas vãs para enquadrá-lo na camisa de força das formas tradicionais. Pelo contrário, sua tarefa consiste em apoiar o movimento proletário em todas as partes, articular as ações espontâneas, para proporcionar-lhes a consciência de sua conexão com o amplo espectro da revolução a fim de preparar a unificação das ações isoladas e desse modo se colocar a frente do movimento em seu conjunto.

A primeira fase da dissolução do capitalismo será vista nos países da Entente, onde sua hegemonia ainda não foi abalada, por meio da queda irresistível na produção e no valor de suas moedas, pelo aumento na ocorrência de greves e por uma forte aversão ao trabalho pelo proletariado. A segunda fase, o período da contrarrevolução, isto é, a dominação política da burguesia em plena época revolucionária, significa a derrocada econômica completa. Isto pode ser melhor estudado na Alemanha e no restante da Europa Central. Se imediatamente após a revolução política houvesse surgido um sistema comunista, teria sido possível iniciar a reconstrução organizada apesar dos tratados de paz de Versalhes e Saint Germain, do esgotamento e da miséria. Mas o regime de Ebert-Noske pensou a reconstrução como fizeram os Renner-Bauer[11]: deixaram a burguesia de mãos livres e consideraram que sua tarefa era reprimir o proletariado. A burguesia atuou, ou melhor, cada capitalista atuou de acordo com sua natureza de burguês: pensando apenas em obter o máximo de ganhos possível e em salvar para seu uso pessoal qualquer coisa que pudesse ser resgatada do desastre. Obviamente que nos jornais e manifestos se falava na necessidade de reconstrução da vida econômica por meio de esforços organizados, mas isto era apenas para consumo dos proletários, frases bonitas para ocultar o fato de que, apesar de seu esgotamento, estavam rigorosamente compelidos a trabalhar submetidos a um regime de trabalho de máxima intensidade possível. Na verdade, nenhum burguês se preocupou com a reconstrução enquanto interesse geral da população, mas do ponto de vista dos ganhos pessoais. Inicialmente, como nos velhos tempos, o comércio se tornou o principal meio de enriquecimento privado, a depreciação da moeda proporcionou a oportunidade para exportar tudo que fosse necessário para a reconstrução econômica, inclusive para a simples existência física das massas – matérias primas, comida, produtos elaborados, meios de produção, e depois disso, as próprias fábricas e sua propriedade. A extorsão reinou em todas as camadas burguesas, favorecida pela corrupção desenfreada da burocracia oficial. Desse modo, toda a riqueza anterior que não foi entregue como indenização de guerra, foi despachada para o estrangeiro pelos “dirigentes da produção”. O mesmo aconteceu no âmbito da produção, onde a meta perseguida do lucro privado interveio para arruinar a vida econômica por sua indiferença total para com o bem estar comum. Para forçar o proletariado ao trabalho por peça e ao aumento da jornada de trabalho ou para se livrar de proletários rebeldes, fecharam as portas e paralisaram as fábricas (lockout), sem levar em consideração a paralisia que tal atitude causava no restante da indústria. Some a tudo isso a incompetência da direção burocrática das empresas estatais que entrou em absoluta degeneração quando faltou a mão poderosa do governo. A restrição da produção – meio mais primitivo para elevar os preços, e impossível de se realizar quando em capitalismo florescente – se tornou atual novamente. Nos registros do mercado de ações o capitalismo parece voltar a florescer, mas os altos dividendos consomem o que restava do patrimônio anterior e mesmo eles estão a ser desperdiçados em gastos de luxo. O que se observa na Alemanha nos últimos anos nada tem de excepcional, mas sim o funcionamento do caráter de classe geral da burguesia. Seu único objetivo é e sempre foi o lucro pessoal, que no capitalismo normal impulsiona a produção, mas que acarreta a destruição total da economia quando o capitalismo degenera. O mesmo ocorrerá em outros países se a produção se decompor além de certo ponto, se a moeda se debilitar fortemente, e se permitir livre curso para que a burguesia prossiga seu objetivo de lucro privado – e este é o sentido da dominação política da burguesia sob a máscara de qualquer partido não comunista – o resultado será igualmente a ruína total da economia.

As dificuldades de reconstrução que o proletariado europeu ocidental deve enfrentar nessas circunstâncias são muito maiores que na Rússia: a devastação posterior de forças produtivas industriais por Kolchak e Denikin é uma pálida sombra se comparada a isso. A reconstrução não pode esperar por uma nova ordem política para ser colocada em prática, deve começar durante o processo revolucionário por meio da apropriação da organização da produção e da supressão do poder de decisão da burguesia sobre elementos materiais da vida onde quer que o proletariado conquiste o poder. Os conselhos de fábrica podem servir para supervisionar o uso dos bens nos locais de trabalho, mas evidentemente que por si só não pode prevenir toda a chantagem antissocial da burguesia. Para tanto se torna necessária a utilização do poder político armado com severidade. Onde os agiotas e exploradores, sem qualquer preocupação pelo bem estar comum, saqueiam os bens da população, onde a reação armada assassina e destrói cegamente, o proletariado deve intervir e lutar sem contemplações para defender o bem comum e a vida da população.

As dificuldades da reorganização de uma sociedade completamente destruída são tão grandes que parecem insuperáveis em princípio, o que torna impossível estabelecer de antemão um programa de reconstrução. Mas tais dificuldades devem ser superadas e o proletariado as superará por meio de seu infinito sacrifício e abnegação, do poder ilimitado da subjetividade e das tremendas energias morais e psíquicas que a revolução é capaz de despertar em seu corpo débil e martirizado.

Chegados a esse ponto, há que examinar brevemente duas questões. A questão dos empregados técnicos na indústria será um problema momentâneo. Embora tenham uma mentalidade nitidamente burguesa e sejam profundamente hostis à dominação proletária, terão de se submeter ao final. O funcionamento da distribuição e da indústria será acima de tudo uma questão de abastecimento de matérias primas, questão que coincide com os meios de subsistência. O problema dos víveres é a questão central para a evolução na Europa Ocidental pois a população altamente industrializada não pode viver sob o capitalismo sem importar do estrangeiro. Mas, para a revolução, a questão do fornecimento de víveres está intimamente ligada ao conjunto da questão agrária e os princípios de regulação comunista da agricultura devem influir na tomada de medidas destinadas a enfrentar a fome. Os bens dos latifundiários (Junkers) e a grande propriedade da terra estão prontos para a expropriação e o cultivo coletivo. Os pequenos camponeses serão libertados da opressão capitalista e serão orientados a adotar métodos de cultivo intensivo por meio de todas as formas de apoio do Estado e dos acordos cooperativos. Os camponeses médios – que na Alemanha Ocidental e Meridional possuem metade das terras – que possuem forte mentalidade individualista, e portanto, anticomunista, mas ocupam uma posição econômica que não pode ser atacada, logo não são passíveis de expropriação, terão de ser integrados na esfera geral de produção via intercambio de produtos e crescimento da produtividade, dado que apenas o comunismo pode desenvolver a produtividade máxima da agricultura e eliminar a empresa individual introduzida pelo capitalismo. Disso resulta que o proletariado deve considerar os grandes proprietários de terras uma classe inimiga, os pequenos camponeses uma classe aliada da revolução, e não tem motivos para se tornarem inimigos dos camponeses médios por mais hostilidade que apresentem a priori. Isto significa que no período inicial de caos que antecede ao estabelecimento de um intercâmbio regular de produtos não poderão ser feitas requisições entre estes extratos camponeses, salvo em caso de necessidade urgente para equilibrar a fome entre o meio urbano e o rural. A luta contra a fome deve ser travada principalmente por meio de importações. A Rússia dos Sovietes, com suas ricas fontes de produtos alimentícios e matérias primas, salvará e alimentará a revolução na Europa Ocidental. Por isso o proletariado europeu ocidental tem grande e particular interesse em defender e apoiar a Rússia Soviética. Mesmo que o problema da reconstrução seja extremamente difícil, não é o problema principal para o partido comunista. Tal problema será resolvido pelas próprias massas quando desenvolverem seu potencial intelectual e moral na plenitude. A primeira tarefa do partido comunista é fomentar e colocar em movimento este potencial. Deve erradicar todas as ideias tradicionais que deixam o proletariado vacilante e inseguro de si, se posicionar contra tudo que engendra ilusões entre os proletários sobre caminhos mais fáceis e os distancia de medidas mais radicais, combater energicamente todas as tendências que o fazem se deter a meio caminho via acordos e compromissos. E existem muitas tendências desse tipo.

VII

A transição do capitalismo ao comunismo não se dará de acordo com o esquema: conquista do poder político, introdução do sistema de conselhos e supressão da economia privada, mesmo que tal esquema represente a linha de sua evolução. Isto somente seria possível caso se possa construir uniformemente em terreno livre. Mas as formas de organização e trabalho capitalistas possuem raízes sólidas na consciência das massas e apenas podem ser eliminadas em um processo de revolução política e econômica. Entre as formas de trabalho, mencionamos as formas agrárias que seguirão uma evolução específica. Entre as formas de organização nascidas sob o capitalismo e com particularidades que variam de um país para outro há aquelas que representam uma força poderosa – que não podem ser imediatamente abolidas – e por isso cumprirão importante papel no processo revolucionário.

Isto se aplica principalmente aos partidos políticos. O papel da social-democracia na crise atual do capitalismo é bastante conhecido, mas acabará em breve na Europa Central. Até suas frações mais radicais (como o USPD na Alemanha) exercem uma função nociva, não somente dividindo o proletariado, mas sobretudo confundindo e afastando as massas da ação devido às suas concepções socialdemocratas de preponderância dos dirigentes políticos – que dirigem a história da população por seus atos e relações. E se um partido comunista se constitui em partido parlamentar que pretende estabelecer uma ditadura de partido – dos dirigentes partidários – no lugar da ditadura da classe, então também pode se tornar um obstáculo para o desenvolvimento do processo. A atitude do Partido Comunista da Alemanha durante o movimento revolucionário de março, ao anunciar que o proletariado ainda não estava maduro para a ditadura e, por causa disso, se comportaria como “oposição leal” caso fosse constituído um “governo puramente socialista”, em outras palavras, que desviaria o proletariado de se empenhar ferozmente na luta revolucionária contra esse tipo de governo, foi criticada de diferentes lados[12].

No processo da revolução pode surgir um governo de dirigentes de partidos socialistas como forma de transição e expressão de um equilíbrio temporário entre forças revolucionárias e burguesas. Sua tendência será a de congelar e perpetuar o equilíbrio momentâneo entre a destruição do velho e o desenvolvimento do novo. Algo como uma versão mais radical do governo Ebert-Haase-Dittmann[13]. O que se pode esperar de tal governo resulta de suas bases de apoio: equilíbrio aparente entre classes inimigas mas com predomínio da burguesia, mistura de democracia parlamentar com um tipo de sistema de conselhos para os proletários, socialização limitada ao veto do imperialismo da Entente e com manutenção da lucratividade do capital, tentativas inúteis de impedir que os conflitos de classe se tornem mais agudos. Em tais circunstâncias, os proletários sempre são os que recebem os golpes e são enganados. Um governo desse tipo é incapaz de fazer algo pela reconstrução, nem pode tentar, porque sua finalidade única consiste em deter revolução a meio caminho. Pelo fato de se esforçar em impedir tanto a desintegração do capitalismo quanto o desenvolvimento pleno do poder político do proletariado, seus efeitos e atuação são diretamente contrarrevolucionários. Os comunistas não tem outra opção que não seja combater tais governos sem a menor transigência.

Enquanto na Alemanha a social-democracia era a organização dirigente do proletariado, na Inglaterra era o movimento sindical que possui raízes muito profundas na classe proletária graças a uma história quase centenária. Há muito tempo que, ali, o ideal dos jovens dirigentes sindicalistas – a exemplo de Robert Smillie – consiste em que o proletariado governe a sociedade por meio das organizações sindicais. Até mesmo os sindicalistas revolucionários e os dirigentes do IWW estadunidense, mesmo tendo aderido à III Internacional, imaginam a dominação futura do proletariado principalmente sob esta forma. Os sindicalistas radicais não concebem o sistema de sovietes como a forma mais pura da ditadura proletária, mas como um regime de políticos e intelectuais construído sobre as bases das organizações da classe operária. Por outro lado, enxergam o movimento sindical como a organização natural do proletariado e por ele criada, que se autogoverna em seu interior e que persistirá para governar a totalidade do processo de trabalho. Se o velho ideal da “democracia operária” se realiza, e o sindicato se torna dono da fábrica, seu órgão coletivo, o congresso dos sindicatos, assume a função de dirigir e administrar toda a economia. Será então o verdadeiro “parlamento do trabalho” e assumirá o lugar do antigo parlamento burguês. Nestes ambientes se manifesta com frequência repugnância a uma ditadura de classe unilateral e injusta, pois é considerada um atentado à democracia, dado que o trabalho deve dominar, mas os outros não deverão ser privados de direitos. Portanto, ao lado do parlamento do trabalho, que governa o trabalho – base de toda vida-, deve coexistir uma segunda instituição eleita pelo sufrágio universal para representar todo o povo e exercer sua influência nos assuntos públicos, culturais e de política em geral.

Esta concepção de um governo pelos sindicatos não deve ser confundida com o “trabalhismo”, política do “Partido Trabalhista” que agora dirige os sindicatos. Esta política consiste em defender que os sindicalistas devem ingressar no parlamento burguês formando um “partido de trabalhadores” com os mesmos fundamentos dos outros partidos, objetivando se tornarem um partido de governo. Este partido é completamente burguês e não existe a menor diferença entre Henderson e Ebert. Fornecerá à burguesia inglesa a oportunidade de continuar suas velhas políticas com uma base social mais ampla assim que a pressão ameaçadora vinda debaixo a torne necessária, e, por isso, debilita e confunde os proletários quando seus dirigentes chegam ao governo. Um governo trabalhista – que parecia próximo há um ano quando as massas estavam com seu ânimo revolucionário, mas que foi afastado pelos próprios dirigentes para um futuro distante por sua oposição à corrente radical – não passaria de um governo em proveito da burguesia, como o governo de Ebert na Alemanha. Mas ainda veremos se a astuta e perspicaz burguesia inglesa confia mais em si mesma ou nessa burocracia operária para melhor realizar o trabalho de conter e confundir as massas.

Pela concepção radical, um autêntico governo dos sindicatos, é tão diferente da política desse partido trabalhista, desse “trabalhismo”, como a revolução é diferente da reforma. Somente poderia ser introduzido por meio de uma revolução real nas relações políticas – violenta ou pelos velhos modelos ingleses – e, aos olhos das amplas massas, seria a conquista do poder pelo proletariado. Apesar de tudo isso, trata-se de algo totalmente diferente da finalidade do comunismo. Esta concepção está baseada na limitada ideologia que se desenvolve nas lutas sindicais, onde não se confronta com o capitalismo mundial considerado em seu conjunto com todas as suas formas entrelaçadas – capital financeiro, bancário, agrário, colonial – mas tão somente com o capital na sua forma industrial. Esta concepção se apoia na economia marxista (neste momento seriamente estudada pelo mundo do trabalho inglês) que demonstra que há na produção um mecanismo de exploração, mas sem a teoria social marxista mais profunda, o materialismo histórico. Reconhece que o trabalho constitui a base do mundo e, por isso, pretende que o trabalho governe o mundo mas não enxerga que todas as esferas abstratas da vida política e intelectual estão condicionadas pelo modo de produção, e assim apresenta a tendência de deixar tais domínios nas mãos da intelectualidade burguesa desde que ela se disponha a reconhecer a primazia do trabalho. Na verdade um regime dessa natureza seria um governo da burocracia sindical ajudado pela fração radical da velha burocracia estatal, que deixaria as áreas da cultura, da política, dentre outras a cargo de especialistas sob o argumento de serem competentes no trato de tais assuntos. Obviamente que o programa econômico desse governo não coincidirá com a expropriação comunista, pois se limitará a expropriar o grande capital enquanto manterá intacto o lucro “honesto” dos pequenos empresários, até agora despojados e dominados pelo grande capital. Chega a ser duvidoso se tal governo assumirá a liberdade completa para a Índia, ponto integrante do programa comunista na questão colonial e nervo vital da classe dominante inglesa.

Não se pode prever de que maneira, grau e pureza uma forma política desse tipo será realizada. Apenas se pode prever as forças motrizes, tendências e tipos abstratos, mas não as formas concretas – sempre diferentes – nem as combinações em que se realizam. A burguesia inglesa sempre dominou a arte de usar as concessões parciais, no momento certo, para conter os objetivos revolucionários do movimento. Por quanto tempo será capaz de continuar essa tática no futuro dependerá primeiramente da amplitude da crise econômica. Se a disciplina sindical for quebrada pela base, via revoltas industriais desordenadas, sindicalistas reformistas e radicais entrarão em acordo numa posição intermediária. Se a luta se acirra contra a velha política reformista dos dirigentes, sindicalistas radicais e comunistas caminharão juntos.

Estas tendências não se limitam à Inglaterra. Em todos os países os sindicatos são as organizações proletárias mais poderosas. Bastará que um choque político abata o antigo poder estatal, para que passem natural e inevitavelmente para as mãos de quem estiver melhor organizado e possuir maior influência. Na Alemanha em novembro de 1918, os dirigentes sindicais foram a guarda contrarrevolucionária por trás de Ebert, e na recente crise de março, entraram na cena pública da política objetivando conquistar influência direta na composição do governo. A única finalidade em apoiar o governo de Ebert era enganar o proletariado do modo mais sutil, pela fraude do “governo sob controle das organizações operárias”. Assim se comprova que aparece a mesma tendência que na Inglaterra. Mesmo quando os Legien e os Bauer[14] estivessem atolados na contrarrevolução, novos sindicalistas radicais da tendência do USPD tomarão seus lugares como ocorreu ano passado com os independentes de Dittmann que ganharam a direção da grande Federação dos Metalúrgicos. Caso um movimento revolucionário derroque o governo de Ebert, sem dúvidas essa imensa força organizada de sete milhões de membros tentaria tomar o poder político, com o PC ou contra ele.

Um “governo da classe operária” nestes moldes e por meio dos sindicatos não pode ser estável. Mesmo que fosse capaz de se manter por muito tempo devido a um lento processo de decomposição econômica. Em uma crise revolucionária aguda somente sobreviveria como um vacilante fenômeno de transição. Seu programa, tal como esboçamos anteriormente, não pode ser radical. Uma corrente que aprove tais medidas – não como forma de transição temporária, como faz o comunismo, para serem utilizadas deliberadamente com o propósito de construir uma organização comunista – como um programa definitivo, necessariamente entrará em conflito e contradição antagônica com as massas. Em primeiro lugar porque não reduz os burgueses à impotência, e sim concede a eles certa posição de força na burocracia e talvez no parlamento, onde podem continuar levando adiante a luta de classes. A burguesia fará o possível para consolidar tais posições de força, enquanto o proletariado, por não poder aniquilar a classe inimiga nestas condições, deve tentar estabelecer um sistema de autênticos sovietes como órgão de sua ditadura. Nesta batalha entre poderosos oponentes, a reconstrução econômica será impossível[15]. Em segundo lugar, porque um governo de dirigentes sindicais desse tipo não pode resolver os problemas colocados pela sociedade. Estes apenas podem ser resolvidos por meio da autoiniciativa e autoatividade das massas proletárias, impulsionadas pela abnegação e entusiasmo ilimitado que somente o comunismo, por sua perspectiva de liberdade total e extrema promoção intelectual e moral, pode proporcionar. Uma corrente que visa abolir a pobreza material e a exploração, mas se confina deliberadamente a este objetivo, que deixa a superestrutura burguesa intacta e, simultaneamente, se omite em revolucionar a perspectiva mental e a ideologia do proletariado não pode liberar essas grandes energias nas massas, e, portanto, será incapaz de resolver o problema material da reconstrução econômica e a eliminação do caos.

Da mesma maneira que um governo “puramente socialista” o governo dos sindicatos tentará consolidar e estabilizar o resultado momentâneo do processo revolucionário, embora em um estágio muito mais avançado, pois a burguesia terá sua hegemonia destruída dando lugar a algum equilíbrio de forças entre as classes sob a predominância do proletariado. Nesta fase, a integralidade do lucro capitalista não pode ser mantida e mantém-se apenas sob as repelentes formas do pequeno capital; cessa a tendência à expansão burguesa e cresce a tendência à construção socialista mesmo com recursos insuficientes. Assim, este governo constitui a última posição da classe burguesa, quando a burguesia não pode mais se defender do assalto das massas mantendo-se na linha dos Scheidemann-Henderson-Renaudel e recua para sua última linha defensiva dos Smillie-Dissman-Merrheim[16]. Quando perde a capacidade de enganar o proletariado por meio de “trabalhadores” em governos burgueses ou socialistas, resta o caminho de tentar desviar o proletariado de suas metas finais radicais com a forma do “governo das organizações operárias” e com isso assegurar parte de sua posição privilegiada. A natureza de tal governo é contrarrevolucionária, pois tenta manter no meio do caminho o necessário desenvolvimento da revolução no sentido da destruição completa do mundo burguês e impedir a instauração do comunismo integral. Atualmente a luta dos comunistas pode parecer com frequência que é paralela à luta dos sindicalistas radicais, mas seria uma tática nefasta deixar de colocar em destaque as diferenças de princípios e objetivos. Tais considerações são importantes também para fundamentar a atitude dos comunistas diante das organizações sindicais de hoje: tudo que contribui para consolidar sua força e unidade consolida esta potência que um dia se colocará no caminho do avanço da revolução.

Ao conduzir uma enérgica luta de princípios contra estas formas políticas de transição, o comunismo representa as tendências revolucionárias vivas no proletariado. A própria ação revolucionária do proletariado,quando esmaga o aparato burguês de poder, ao mesmo tempo em que abre caminho para a dominação de uma burocracia sindical, impulsiona imediatamente as massas a instituírem seus próprios órgãos, os conselhos, que abalam as bases do mecanismo burocrático dos sindicatos. A instituição do sistema de sovietes é, simultaneamente, a luta do proletariado para substituir a forma incompleta de sua ditadura pela forma completa. Deve se levar em conta que o trabalho intenso que exigem os esforços permanentes para “reorganizar” a economia fazem com que burocracias dirigentes consigam manter fatias consideráveis de poder por longo tempo, enquanto a capacidade das massas de se libertar disso crescerá lentamente. E mais, tais formas e fases variadas não acontecem em sucessão lógica e abstratamente regular como graus de um processo de maturação como aqui expusemos. Acontecerão todas ao mesmo tempo, emaranhadas e coexistindo em um caos de tendências que se complementam, combatem, dissolvem e neutralizam. Esta luta contém todo o desenvolvimento da revolução, como exposto pelo próprio Marx: “Revoluções proletárias criticam constantemente a si próprias, interrompem-se continuamente no curso de seu próprio desenvolvimento, retornam ao que aparentemente já foi completado para reiniciá-lo novamente, tratam as deficiências de suas próprias primeiras tentativas com desprezo cruelmente radical, parecem derrubar seus adversários apenas para permitir a eles que extraiam da terra novas forças e se levantem para enfrentá-las novamente ainda mais gigantescos.”

Os poderes que surgem do proletariado como expressão de sua debilidade devem ser superados para que possa desenvolver sua força plena. Trata-se de um processo que se desenvolve por meio de conflitos, crises e é impulsionado pela luta. No princípio era a ação, mas foi apenas o princípio. Para derrocar a classe dominante basta um instante de forte unidade de propósitos, mas manter tal unidade permanentemente – possível somente com clareza de visão – é a condição para que a vitória se mantenha. Caso contrário, se retrocede. Não aos velhos dominadores, mas como um novo poder, sob novas formas e com novas pessoas e novas ilusões. Cada nova fase da revolução faz aparecer novas camadas de dirigentes ainda não utilizados, como representantes de formas específicas de organização. Sua derrocada significa uma fase superior da autoemancipação proletária. A força do proletariado não é somente o poder bruto do ato violento que derruba o inimigo, mas também a fortaleza da mente que rompe a velha dependência subjetiva e, assim, sabe manter o que conquistou no momento do assalto. O crescimento desta força no fluxo e refluxo da revolução é o crescimento da liberdade proletária.

VIII

Enquanto na Europa Ocidental o capitalismo se decompõe progressivamente, na Rússia, apesar das terríveis dificuldades, a produção se organiza sob uma nova ordem. A hegemonia do comunismo não significa que toda a produção se realize de modo comunista (algo possível somente após um longo processo evolutivo), mas que o proletariado dirige a produção para o comunismo conscientemente[17]. Em nenhum momento este processo ultrapassa o permitido pelo nível técnico e social existente, por isso, apresenta formas de transição em que aparecem vestígios do antigo mundo burguês. Pelo que sabemos da situação russa na Europa Ocidental, tais vestígios existem de fato ali.

A Rússia é um gigantesco país de camponeses no qual a indústria não se desenvolveua ponto de se tornar uma “oficina” do mundo e fazer da exportação e da expansão uma questão vital, como na Europa Ocidental. O desenvolvimento industrial na Rússia foi o suficiente para possibilitar a formação de um proletariado capaz de assumir o governo da sociedade como classe desenvolvida. A agricultura é a ocupação das massas populares e as grandes unidades modernas que exploram em larga escala constituem uma minoria, algo de grande importância para o comunismo. A maioria é constituída de pequenas unidades – não pequenas empresas miseráveis e exploradas – empresas capazes de assegurar o bem estar dos camponeses e que o governo dos sovietes procura integrar cada vez mais ao conjunto por meio do fornecimento de ajuda material na forma de equipamentos e ferramentas auxiliares e também de educação intensiva cultural e especializada e técnica. Dito isto, compreende-se que esta forma de exploração gere certa subjetividade individualista estranha ao comunismo, a qual, entre os camponeses ricos, se converta em uma estrutura mental hostil e resolutamente anticomunista. Sem dúvida que a Entente especulou com essa circunstância em seus projetos de comércio com as cooperativas, com a intenção de iniciar um movimento burguês de oposição atraindo tais elementos para o círculo da avidez burguesa do lucro. Mas o medo à reação feudal, que os liga ao governo atual com o maior interesse, faz com que tais tentativas sejam destinadas ao fracasso e tal perigo desaparecerá completamente quando o imperialismo europeu ocidental for derrubado.

A indústria é predominantemente um sistema de produção organizado de modo centralizado e livre de exploração. É o coração da nova ordem e a direção do Estado se baseia no proletariado industrial. Mas mesmo este sistema de produção está em fase de transição. Os quadros técnicos e administrativos nas fábricas e no aparato estatal exercem uma autoridade incompatível com um comunismo em desenvolvimento. A necessidade de aumentar a produção e, ainda mais, a necessidade de criar um exército eficiente para se proteger dos ataques da reação, tornou indispensável tal medida em tempo acelerado ao máximo para suprir a carência de dirigentes confiáveis nestas funções. As ameaças da fome e dos ataques do inimigo impediram que todos os recursos fossem dirigidos para elevar de forma mais gradual o nível geral das capacidades e do desenvolvimento como base de um sistema comunista coletivo. Assim, inevitavelmente, surgiu uma nova burocracia dos novos dirigentes e funcionários, absorvendo em seu interior os restos da antiga, cuja existência por vezes é considerada, com preocupação, um perigo para a nova ordem que somente pode ser afastado por um profundo desenvolvimento das massas. Porém, mesmo que se esteja empreendendo com suprema energia tal desenvolvimento, apenas a abundância comunista lhe serve de fundamento duradouro, pois com ela o ser humano deixa de ser escravo de seu trabalho. Somente a abundância cria condições materiais para a igualdade e a liberdade, e enquanto a luta contra a natureza e as forças do capital for intensa, será necessário um grau desproporcional de especialização.

Pela nossa análise o desenvolvimento na Europa Ocidental tomará um caminho diferente do da Rússia (limitada ao que podemos prever do rumo dos progressos da revolução), contudo, ambos manifestam a mesma estrutura político-econômica: indústria organizada de modo comunista na qual os conselhos operários formam o elemento da administração autônoma, sob direção técnica e dominação política de uma burocracia operária, enquanto a agricultura conserva um caráter individualista e pequeno-burguês nas numerosas unidades pequenas e médias. Mas tal coincidência não é tão estranha pelo fato de uma estrutura social desse tipo não estar determinada pela história política passada, mas sim pelas condições técnico-econômicas básicas similares em ambos os casos (grau de desenvolvimento alcançado pela tecnologia industrial e agrícola; formação cultural das massas proletárias)[18]. Ao lado desta coincidência existe uma grande diferença de significado e finalidade. Na Europa Ocidental tal estrutura político-econômica forma uma fase de transição na qual a burguesia tenta, em última instância, deter sua ruína enquanto na Rússia se procura conscientemente prosseguir a evolução para o comunismo. Na Europa Ocidental tal estrutura forma uma fase da luta de classes entre proletariado e burguesia enquanto na Rússia constitui uma fase da nova organização econômica. Sob formas externas idênticas, Europa Ocidental se encontra no caminho decadente de uma civilização moribunda e Rússia no movimento ascendente de uma civilização nova.

Quando a Revolução Russa ainda era jovem e débil e esperava sua salvação por um rápido eclodir da revolução europeia, predominava outra concepção sobre sua importância. Rússia, como se dizia, não passa de um posto avançado da revolução onde as circunstâncias favoráveis permitiram que o proletariado tomasse o poder tão rapidamente, mas este proletariado é débil, inculto e quase desaparece na massa infinita de camponeses. O proletariado da Rússia economicamente atrasada somente poderá realizar avanços temporários, mas quando as enormes massas do maduro proletariado europeu ocidental tenham se levantado – com seus conhecimentos, preparação cultural, instrução técnica e organizativa – e tomado o poder em países industriais mais desenvolvidos, de civilização antiga e rica, então assistiremos ao florescimento do comunismo em tal extensão que a meritória contribuição russa, em comparação, terá parecido frágil e pobre. O núcleo e a força do novo mundo comunista se situará então onde o capitalismo atingiu o ápice de seu poder: Inglaterra, Alemanha, América, serão as bases para o novo modo de produção.

Esta concepção desconsidera as dificuldades da revolução na Europa Ocidental, onde o proletariado conquista lentamente uma dominação sólida e a burguesia sabe reconquistar o seu poder, total ou parcialmente, e não se chega à reconstrução econômica. A expansão capitalista é impossível, pois cada vez que a burguesia tem as mãos livres cria novo caos e destrói os fundamentos que serviriam para construir a produção comunista. Pela reação sanguinária e pela devastação continua a impedir a consolidação da nova ordem proletária. O mesmo ocorreu na Rússia: destruição de instalações industriais e minas nos Urais e no vale do Donetz por Kolchak e Denikin, bem como a necessidade de se utilizar na luta conta eles dos melhores operários e da maior parte das forças produtivas, aplicando um sério golpe na economia, prejudicando e retardando a edificação comunista e, mesmo que a retomada das relações comerciais com a América e o Ocidente possa favorecer um novo e forte desenvolvimento, serão necessários os maiores esforços e abnegação das massas proletárias da Rússia para reparar completamente os estragos. Contudo – e aí está a diferença – na Rússia a república dos sovietes permanece firme e sólida como um centro organizado de poder comunista que adquiriu impressionante estabilidade interna. Na Europa Ocidental haverá morte e destruição, e também aqui as melhores forças do proletariado serão aniquiladas na luta. Mas aqui carecemos de um Estado soviético organizado solidamente que serviria de fonte de força. Na devastadora guerra civil as classes estão se desgastando reciprocamente e, enquanto a reconstrução não puder ser realizada, o caos e a miséria governarão. Assim ocorrerá nos países onde o proletariado não reconheça sua tarefa imediatamente de forma clara e vontade unitária, isto é, onde as tradições burguesas debilitam e dividem os proletários, embaçam seus olhos e submetem seus corações. Décadas serão necessárias para superar a influência contagiosa e paralisante da cultura burguesa sobre o proletariado nos países de capitalismo antigo. Entretanto, a produção continuará em ruínas e o país se converterá em um deserto econômico.

Ao mesmo tempo em que Europa Ocidental se estanca economicamente e sai penosamente de seu passado burguês, no Oriente, na Rússia, a economia floresce sob uma ordem comunista. O que distinguia os países capitalistas desenvolvidos do Leste atrasado era a tremenda sofisticação de seus meios de produção materiais e mentais: uma densa rede de ferrovias, fábricas, barcos e uma população densa e instruída tecnicamente. Mas durante a derrubada do capitalismo, ao longo da guerra civil, no período de estagnação em que se produz pouco, esta herança se dissipa, consumida ou destruída. As forças produtivas indestrutíveis (ciência, capacidades técnicas), não estão ligadas a estes países. Seus portadores encontrarão uma nova pátria na Rússia, onde pelo comércio também se proverá uma parte da riqueza material e técnica da Europa. O acordo comercial da Rússia dos sovietes com a Europa Ocidental e América, caso se realize e seja colocado em prática séria e poderosamente, tenderá a acentuar esta contradição, pois promove a reconstrução econômica da Rússia enquanto minimiza a catástrofe no ocidente europeu, dando ao capitalismo uma pausa para respirar e paralisando o potencial revolucionário das massas – por quanto tempo e até que ponto, ver-se-á. Politicamente, isto se expressará em uma aparente estabilidade que poderá assumir a forma de um governo burguês ou uma das outras formas já discutidas anteriormente, e, ao mesmo tempo, pelo domínio do oportunismo no interior do movimento comunista com os PC’s da Europa Ocidental se legalizando, reconhecendo os velhos métodos de luta, se comprometendo com a atividade parlamentar e com a oposição leal dentro dos velhos sindicatos, como fez a social-democracia antes deles. Frente a tudo isso, a corrente radical e revolucionária será reduzida a uma minoria. No entanto, é muito improvável que haja um autêntico ressurgir do capitalismo. Os interesses privados dos capitalistas que comercializam com a Rússia não diferirão da economia em geral e, em busca de lucro, enviarão para Rússia elementos fundamentais de produção, e o proletariado já não poderá ser submetido novamente. Desse modo a crise se prolongará. O progresso duradouro torna-se impossível e detido permanentemente. O processo da revolução e da guerra civil será retardado e dilatado. A dominação completa do comunismo e o começo de um novo desenvolvimento ficam postergados para um futuro distante. Durante este tempo, no Oriente, a economia desenvolverá sem travas e novos caminhos serão descobertos baseados nas ciências da natureza mais avançadas – que o Ocidente é incapaz de aproveitar – unidas à nova ciência social, pela recente conquista da humanidade sobre suas próprias forças sociais. Tais forças, centuplicadas pelas novas energias surgidas da liberdade e da igualdade, farão da Rússia o centro da nova ordem comunista mundial.

Não será a primeira vez na história mundial que o centro do mundo civilizado se desloca na transição a uma nova forma de produção ou a uma de suas fases. Na Antiguidade se deslocou do Oriente Médio para o sul da Europa; na Idade Média, do sul da Europa para a Europa Ocidental; com o advento do capitalismo colonial e mercantil, Espanha se tornou o país dirigente, depois Holanda e Inglaterra, e com a chegada da indústria, Inglaterra. As causas destes deslocamentos devem ser compreendidas por um princípio histórico geral: onde as formas econômicas anteriores atingiram seu desenvolvimento mais elevado, as forças materiais e mentais, as instituições jurídico-políticas que asseguraram sua existência e eram necessárias ao seu desenvolvimento pleno, foram tão fortemente construídas que ofereceram uma resistência quase insuperável ao desenvolvimento de formas novas. Assim, no final da Antiguidade, a instituição da escravidão foi um obstáculo para o desenvolvimento da forma feudal; Assim, as leis das corporações aplicadas nas ricas e opulentas cidades medievais significaram um entrave para a manufatura capitalista de surgimento posterior a ponto de esta ter que se desenvolver em outros centros até então insignificantes; Assim, no final do sec. XVIII, a organização política do absolutismo francês que até então impulsionava, sob Colbert, a indústria, obstruiu a introdução da nova grande indústria que tornou a Inglaterra um país industrializado. Na natureza orgânica há também uma lei equivalente que, em oposição à “sobrevivência” darwiniana do “mais apto”, poderia ser chamada de survival of the unfitted (sobrevivência do não apto). Quando um tipo de animal – os sáurios da era secundária, por exemplo – se especializou e diferenciou em uma riqueza de formas plenamente adaptadas às condições de vida da época, então se tornou incapaz de evoluir para um tipo novo: todas as aptidões e possibilidades de evolução se perdem e não voltam a ser encontradas. A formação de um novo tipo vem de formas primitivas originais que, sendo indiferenciada, mantiveram todas as possibilidades de evolução e desaparece a incapacidade de adaptação do tipo antigo. O fenômeno segundo o qual a ciência burguesa se livra imaginando um “esgotamento da força vital ” de uma nação ou raça, deve ser considerado como um caso particular desta lei orgânica que ocorre continuamente ao longo da história da humanidade, a direção do desenvolvimento econômico, político, cultural, de um povo ou país para outro.

Agora podemos vislumbrar que as razões para o predomínio da Europa Ocidental e da América – que a burguesia atribui com gosto a uma superioridade intelectual e moral de sua raça – são efêmeras, e para que lugares seu deslocamento se torna previsível. Novos países onde as massas não estão intoxicadas pela fumaça da concepção burguesa do mundo, nos quais um começo de desenvolvimento industrial retirou as mentalidades da antiga inércia e despertou na coletividade um sentimento comunista; onde existem matérias-primas às quais podem ser acopladas a técnica mais elevada, herdada do capitalismo, para uma renovação das formas tradicionais de produção; nos quais a pressão exercida de cima é forte o suficiente para empurrar a luta e a formação de virtudes combativas, mas onde uma burguesia dominante já não possa impedir esta renovação. Esses países serão os centros do novo mundo comunista. Rússia, que, com a Sibéria, forma por si só uma parte do mundo, está na primeira linha. Mas as mesmas condições também existem mais ou menos em outros países do Oriente: Índia, China. Embora neles existam outras causas de imaturidade, esses países não podem ser esquecidos quando se considera a revolução comunista mundial

A revolução mundial não pode ser percebida em toda a sua importância universal se for considerada apenas do ponto de vista da Europa Ocidental. Rússia não é apenas a parte oriental da Europa, mas também e em maior medida, a parte ocidental da Ásia, tanto em termos geográficos como em termos econômicos. A velha Rússia tinha pouco em comum com a Europa. Era a porção mais próxima do Ocidente dentre as formações político-econômicas que Marx descreveu como “despotismo oriental” às quais pertencem todos os gigantescos impérios asiáticos antigos e novos. Dentro destes países, com base na comunidade rural, e sobre um campesinato, por assim dizer, uniforme em todos os lugares, foi erguido um poder ilimitado da nobreza e dos príncipes, apoiado por um tráfego comercial relativamente restrito, embora importante, e com um pequeno artesanato. O capital europeu penetrou em cada parte desse sistema de produção que se reproduzia sempre da mesma maneira ao longo dos séculos, apesar de mudanças de poder na superfície, e o tem dissolvido, subjugado, explorado, empobrecido, através do comércio, escravidão e pilhagem direta, explorando suas riquezas naturais, construindo ferrovias e fábricas, concedendo empréstimos estatais aos príncipes, exportando produtos alimentares e matérias-primas, ou seja, por meio do que se entende pelo nome de política colonial. Enquanto a Índia, com suas imensas riquezas, foi desde cedo conquistada, saqueada, proletarizada e industrializada, os outros países apenas mais tarde caíram nas redes do capital financeiro pela política colonial moderna. Da mesma forma, a Rússia, embora desde 1700 tenha aparecido exteriormente como uma potência europeia, tornou-se uma colônia do capital europeu. Graças às suas relações bélicas imediatas com a Europa, tomou primeiro e mais rápido o caminho que mais tarde tomaram Pérsia e China. Antes da última guerra, 70% da indústria siderúrgica, 90% da produção de platina, 75% da indústria do petróleo, estavam nas mãos dos capitalistas europeus que, além disso, pela via das enormes dívidas do Estado tzarista, exploravam os camponeses russos até o limite da fome. Enquanto o proletariado russo trabalhava em condições parecidas com as do proletariado europeu – o que permitiu uma comunhão de ideias revolucionárias marxistas – Rússia era, pela sua complexa situação econômica, o mais ocidental dos impérios asiáticos.

A Revolução Russa é o início da grande revolta da Ásia contra o capital europeu ocidental concentrado na Inglaterra. Aqui normalmente se considera sua influência sobre a Europa Ocidental, onde os revolucionários russos tornaram-se, por sua alta formação teórica, os mestres do proletariado em rebelião para conquistar o comunismo. Mas sua ação sobre o Oriente é igualmente importante. De fato, as questões asiáticas quase predominam mais sobre a política da república dos sovietes que as questões europeias. De Moscou, onde chegam delegações de povos asiáticos uma atrás da outra, é lançado em toda a Ásia[19], o grito de liberdade e autodeterminação de todos os povos e o chamamento à luta contra o capital europeu. Da República Soviética Turania se estabelecem os laços entre a Índia e os países muçulmanos; no sul da China, revolucionários tentam imitar a formação de sovietes; o movimento pan-islâmico sob a liderança turca, e que cresce no Oriente Médio, tenta se apoiar na Rússia. Aqui está a essência da luta global entre Rússia e Inglaterra, protagonistas de dois sistemas de sociedade. Esta luta não pode, apesar de pausas temporárias, acabar em uma paz real, porque o processo de fermentação se expande cada vez mais na Ásia. Políticos ingleses que enxergam um pouco mais que o pequeno burguês demagogo Lloyd George[20], percebem muito bem o perigo que ameaça a dominação mundial da Inglaterra e, por aí, de todo o capitalismo. Eles dizem, com razão, que a Rússia é mais perigosa do que a Alemanha jamais foi. Mas eles não podem afirmar isso veementemente, pois o movimento revolucionário que começa a agitar o proletariado britânico não permite sequer outro governo como o da demagogia pequeno-burguesa.

Os assuntos da Ásia são os assuntos da própria humanidade. Na Rússia, China, Índia, na planície russo-siberiana, nos vales férteis do Ganges e do Yangtzé Kiang, vivem 800 milhões de pessoas, mais da metade da população da Terra, quase três vezes mais que nos países capitalistas da Europa. Excetuando a Rússia, se apresentam sobretudo como sementes de revoltas: por um lado poderosos movimentos grevistas suscetíveis de se inflamar onde proletários industriais estão estabelecidos como Bombaim e Hangkeu, por exemplo; por outro lado movimentos nacionais que dificilmente alcançam uma compreensão nacional. Na medida em que as escassas notícias da imprensa inglesa, razoavelmente silenciosa, permitem afirmá-lo, a guerra mundial fortaleceu os movimentos nacionais, reprimidos violentamente em seguida, enquanto a indústria está em um boom tão poderoso que o ouro flui em massa da América para o Extremo Oriente. Quando a onda de crise atingir esses países – Japão parece ter sido tocado – terá de haver uma nova batalha. Há que colocar a questão do apoio a movimentos puramente nacionalistas que tentam chegar a um governo nacional capitalista, considerando que se comportam como inimigos perante o movimento de libertação propriamente proletário. Mas é provável que o desenvolvimento não tome esse caminho. É verdade que a crescente compreensão da burguesia indígena se volta para o nacionalismo europeu e propaga a ideia de um governo nacional burguês baseado no modelo europeu ocidental. Mas com a ruína da Europa, este ideal empalidece e sem dúvida passará a sofrer forte influência subjetiva do bolchevismo russo. Dessa forma, se encontra o meio de fundi-lo no movimento grevista e no movimento insurrecional do proletariado. Assim, talvez o movimento de libertação nacional na Ásia aceite mais rapidamente do que se poderia esperar até agora, de acordo com as aparências, o sólido terreno material de uma luta de classe de proletários e camponeses contra a bárbara opressão do capital mundial, a ideia de um pensamento mundial e de um programa comunista.

Como na Rússia, não é obstáculo que esses povos sejam camponeses em sua maioria. As coletividades (Gemeinwesen) comunistas não consistem em uma compacta multidão de cidades industriais. Nelas a agricultura ocupará um grande lugar pois deixa de existir a separação capitalista entre regiões industriais e agrícolas. Em primeiro lugar, o predomínio do caráter agrícola torna a revolução mais difícil porque mais difícil é a disposição subjetiva neste caso. Definitivamente será necessário um longo período de subversão mental e política nesses países. Neles, as dificuldades são muito diferentes do que na Europa: mais passivas e menos ativas. Se situam menos na força que se deverá opor do que na lentidão do despertar para a atividade, menos em superar o caos interno do que em constituir uma força homogênea para expulsar o explorador estrangeiro. Aqui não levaremos em conta as diferenças específicas dessas dificuldades: dispersão religiosa e nacional na Índia, caráter pequeno-burguês na China. Independentemente do modo como as formas políticas e econômicas se desenvolvem, o principal problema a ser resolvido em primeiro lugar é a destruição da dominação do capital euro-estadunidense.

A difícil luta para a destruição do capitalismo é a tarefa comum que o proletariado na Europa Ocidental e nos EUA tem a realizar, mas lado a lado com milhões de asiáticos. Se a revolução alemã toma um rumo decisivo e se une à Rússia, se as massas revolucionárias combatentes irrompem na Inglaterra e nos Estados Unidos, se a revolução se põe em movimento na Índia, se o comunismo amplia suas fronteiras do Reno ao Oceano Índico, a revolução mundial entrará em sua fase mais próxima e poderosa. Com seus vassalos da Liga das Nações e seus aliados japoneses e estadunidenses, a dominação global da burguesia – atacada por dentro e por fora, com seu poder ameaçado pela guerra de libertação nacional, paralisada no interior por greves e guerras civis – será forçada a colocar em ação exércitos mercenários contra seus dois inimigos. Se a classe operária inglesa, apoiada pelo proletariado europeu, ataca sua burguesia, luta pelo comunismo de duas maneiras: abrindo caminho para ele na Inglaterra e ajudando a Ásia a se libertar. Por outro lado, poderá contar com o apoio da principal potência comunista quando os mercenários armados da burguesia tentarem afogar sua luta em sangue. Pois a Europa Continental e a ilha acima dela são pouco mais da metade do território que é extensão do complexo territorial russo-asiático.

A luta comum contra o capital unifica as massas proletárias em todo o mundo. E quando o proletariado europeu, profundamente exausto, finalmente se encontrar ao término do duro combate, na clara luz matinal da liberdade, saudará aos povos libertados da Ásia e se darão as mãos em Moscou, a capital da nova humanidade.

POSFÁCIO

As teses acima foram escritas em abril e logo enviadas à Rússia a fim de estarem disponíveis para serem consideradas pelo Comitê Executivo e pelo Congresso quando da elaboração de suas decisões táticas. Porém, a situação se alterou, pois o Comitê Executivo em Moscou e os camaradas dirigentes na Rússia penderam completamente para o lado do oportunismo, resultando que essa tendência prevaleceu no II Congresso da Internacional Comunista. Esta política em questão fez sua primeira aparição na Alemanha, quando Radek, com toda a influência ideológica e material que ele e a direção do KPD poderia reunir, tentaram impor sua tática parlamentarista e apoiar as confederações centrais ao invés dos comunistas alemães, dividindo e enfraquecendo assim ao movimento comunista. Desde que Radek se tornou secretário do Comitê Executivo, tal política tornou-se a do Comitê Executivo inteiro. Esforços redobrados, antes infrutíferos, foram feitos para garantir a adesão dos independentes alemães a Moscou, enquanto os comunistas antiparlamentares do KAPD – que dificilmente alguém pode negar pertencerem por direito à IC – foram tratados com frieza. Foi mantida a posição de que haviam se contraposto à III Internacional em todos os assuntos importantes e somente poderiam ser admitidos em condições especiais. O Birô Auxiliar de Amsterdam, que os havia aceito e tratado como iguais, foi fechado. Lênin disse aos comunistas ingleses não apenas para participar em eleições parlamentares, mas até mesmo para se unirem ao Partido Trabalhista, uma organização política composta em sua maioria por dirigentes sindicais reacionários e membros da II Internacional. Todas estas posições expressam o desejo dos camaradas dirigentes russos de estabelecer contato com as grandes organizações de trabalhadores da Europa Ocidental que ainda têm de se tornar comunistas. Enquanto os comunistas radicais procuram promover o desenvolvimento revolucionário das massas proletárias por meio de uma luta rigorosa e de princípios contra todas as tendências burguesas, social-patrióticas, vacilantes e seus representantes, a direção da Internacional está tentando arrebanhar massivamente a adesão destas a Moscou, sem que antes tenham abandonado suas velhas concepções.

O que se destaca do escrito de Lênin que acaba de aparecer “Esquerdismo, doença infantil do comunismo” é exatamente o contrário do que os bolcheviques russos, outrora mestres da tática de esquerda por suas ações, aconselharam aos comunistas de esquerda da Europa Ocidental. Sua importância não está em seu conteúdo, mas na pessoa de seu autor, pois em termos de argumentos nada propõem de novo e foram utilizados na sua maioria por outros. O que chama a atenção é que agora são utilizados por Lênin. Portanto, não se trata de combatê-los – seu principal defeito está em igualar as condições, partidos, organizações e a prática parlamentar da Europa Ocidental com as da Rússia – nem de lhes contrapor outros argumentos, mas compreender que aparecem nesta conjuntura como produto de uma política determinada.

Pode-se identificar facilmente o fundamento dessas políticas nas necessidades da República dos Sovietes. Enquanto os esforços para a guerra impediam um desenvolvimento acentuado da produção, os levantamentos reacionários de Kolchak e Denikin destruíram as bases da siderurgia russa. Para sua reconstrução econômica, Rússia precisa urgentemente de máquinas, locomotivas e ferramentas que somente a indústria ilesa dos países capitalistas pode fornecer. Precisa, portanto, de relações comerciais pacíficas com o restante do mundo, especialmente com os países da Entente, os quais, por sua vez, precisam de matérias-primas e alimentos da Rússia para evitar o colapso do capitalismo. O ritmo lento do desenvolvimento revolucionário na Europa Ocidental obriga a república soviética russa a procurar uma convivência, um modus vivendi, com o mundo capitalista, ceder parcela de suas riquezas naturais para poder comprar e renunciar ao apoio direto à revolução em outros países. Em si mesmo, não pode haver objeção a tal acordo, ambas as partes o reconhecem como necessário, mas não seria surpreendente se este sentimento de necessidade e o início de uma política de compromissos com o mundo burguês fossem fomentando uma predisposição mental para a moderação nas maneiras de ver. A III Internacional, como associação dos partidos comunistas que prepara a revolução proletária em todos os países, deveria permanecer formalmente fora das políticas do governo russo e realizar suas tarefas de modo totalmente independente deste último. Na prática, contudo, esta diferença não existe e o PC é a espinha dorsal da República Soviética, o Comitê Executivo está intimamente ligado aos órgãos dirigentes da república soviética, por meio de seus membros, formando-se assim um instrumento pelo qual estes órgãos dirigentes intervêm na política da Europa Ocidental. Podemos ver agora por que as táticas da Terceira Internacional, aprovadas pelo congresso para serem aplicadas uniformemente em todos os países capitalistas e dirigidas a partir do centro, não estão determinadas apenas pelas necessidades da agitação comunista nesses países, mas também pelas necessidades políticas da Rússia dos Sovietes.

É verdade que agora Inglaterra e Rússia, potências mundiais hostis que respectivamente representam o capital e o trabalho, necessitam ambas do comércio pacífico para levantar suas economias. Porém, não são apenas necessidades econômicas imediatas que determinam suas políticas, mas também o antagonismo econômico profundo entre burguesia e proletariado, a questão do futuro, expressa no fato de que poderosos grupos capitalistas estão tentando evitar qualquer compromisso, como uma questão de princípio. O governo soviético sabe que não pode contar com a compreensão de Lloyd George e a necessidade de paz da Inglaterra, pois estas são consequências inevitáveis da força invencível do exército vermelho por um lado, e da pressão que proletários e soldados ingleses exercem sobre seu governo, por outro. O governo soviético sabe que a ameaça do proletariado da Entente é uma de suas armas mais importantes para paralisar os governos imperialistas e obrigá-los a negociar. Deve, portanto, fazer dessa arma tão poderosa quanto possível. Para tanto, o que se requer não é de um partido comunista radical que prepare uma revolução de cima abaixo para o futuro, mas de uma grande força proletária organizada que se posicione a favor da Rússia e force seu próprio governo a levá-la em consideração. O governo soviético precisa das massas agora, mesmo que elas não sejam totalmente comunistas. Se pode ganhá-las para si, sua adesão a Moscou seria um sinal para o capital mundial de que a guerra de aniquilação contra a Rússia não é mais possível, e que não há alternativa à paz e às relações comerciais.

Por tal motivo Moscou deve defender táticas comunistas para a Europa Ocidental que não entrem em contradição aguda com as concepções e os métodos tradicionais das grandes organizações operárias, cuja influência é decisiva. Do mesmo modo, fizeram esforços para substituir o governo de Ebert na Alemanha, que se deixou utilizar como um instrumento da Entente contra a Rússia, por outro orientado para o Leste. E somente pelo PC ser muito fraco que os Independentes podiam servir a este propósito. Uma revolução na Alemanha fortaleceria imensamente a posição da Rússia diante da Entente. Contudo, essa mesma revolução, em seu desenvolvimento mais amplo, poderia se tornar um incômodo para a política de paz e de acordo com a Entente, pois uma revolução proletária radical equivaleria a romper o tratado de Versalhes e renovaria a guerra – os comunistas de Hamburgo tencionavam fazer atividades preparatórias prévias para esta guerra. Rússia seria então arrastada a esta guerra e, mesmo que se fortalecesse externamente no processo, sua reconstrução econômica e a eliminação da miséria seriam adiadas para um futuro mais distante. Tais consequências podem ser evitadas se a revolução alemã ficar contida dentro de certos limites, de modo a aumentar fortemente o poder dos governos aliados contra o capital da Entente, sem que isso os colocasse em posição de ter que travar uma guerra imediata. Para realizar isto não se exigem as táticas radicais do KAPD, e sim um governo dos Independentes, KPD e sindicatos sob a forma de uma organização de conselhos de acordo com o modelo russo.

Esta política tem perspectivas mais amplas do que simplesmente obter uma posição mais favorável em negociações imediatas com a Entente: sua meta é a revolução mundial. Mas é evidente que o caráter particular desta política deve corresponder também a uma concepção particular da revolução mundial. A revolução que no momento avança pelo mundo, e que em breve chegará à Europa Central e depois à Europa Ocidental, é impulsionada pela derrocada econômica do capitalismo, e, se o capital não consegue provocar um crescimento da produção, as massas deverão recorrer à revolução se não quiserem perecer sem fazer nada. Porém, mesmo que compelidas a fazer a revolução, as grandes massas ainda se encontram em um estágio de dependência mental das velhas concepções, organizações e velhos dirigentes, e serão estes quem obterão o poder em primeira instância. Portanto, deve-se distinguir entre a revolução aparente que destrói o poder da burguesia e torna o capitalismo impossível, da revolução comunista, um processo mais longo que revoluciona as massas internamente, no qual o proletariado, emancipando-se de todas as suas amarras, toma firmemente em suas próprias mãos a construção do comunismo. É tarefa do comunismo desmascarar as forças e tendências que seguram a revolução na metade do caminho, indicar às massas o caminho do avanço e, travando a luta mais encaniçada pelos objetivos distantes e pelo poder total contra essas tendências, despertar a capacidade do proletariado para impulsionar a revolução mais longe. Mesmo agora isso só pode ser feito lutando contra as tendências dirigistas inibidoras e contra o poder de seus líderes. O oportunismo busca se aliar com eles e participar do novo poder, e se comprometerá com eles na crença que pode conduzi-los pelo caminho do comunismo. Ao declarar que esta é a tática comunista oficial, a III Internacional põe o rótulo de “revolução comunista” na tomada do poder pelas velhas organizações e seus dirigentes, consolida a hegemonia desses dirigentes e obstrui a continuidade da revolução.

Do ponto de vista da salvaguarda da Rússia Soviética, não há objeções a essa concepção do objetivo da revolução mundial. Se existir um sistema político similar ao da Rússia em outros países europeus – poder de uma burocracia operária apoiado na base de um sistema de conselhos – o poder do imperialismo mundial seria vencido e derrocado, pelo menos na Europa. A construção econômica para o comunismo poderia prosseguir sem medo de guerras de agressão reacionárias, em uma Rússia rodeada por amistosas repúblicas proletárias. Compreende-se, portanto, que o que nós consideramos como uma forma de transição, temporária e insuficiente, que deve ser combatida com todas as nossas forças, seja para Moscou a realização da revolução proletária, o objetivo da política comunista.

Isso nos leva a considerações críticas que devem ser levantadas contra essa política do ponto de vista do comunismo. Referem-se em primeiro lugar ao efeito subjetivo recíproco sobre a própria Rússia. Se a camada dominante na Rússia se confraterniza e adota as atitudes da burocracia operária da Europa Ocidental – corrompida por sua situação, sua oposição às massas e sua adaptação ao mundo burguês – o impulso capaz de levar adiante a Rússia no caminho do comunismo pode se perder. Se se apoia no campesinato proprietário de terras contra os proletários, não se pode excluir a ocorrência de um desvio para formas agrárias burguesas, algo que levaria à estagnação da revolução mundial. Deve-se considerar também que este mesmo sistema político que surgiu na Rússia como uma forma conveniente de transição prática para a realização do comunismo – e que somente poderia se cristalizar em burocracia sob certas condições – significa desde o princípio um obstáculo reacionário para a revolução na Europa Ocidental. Já destacamos que um “governo operário” deste tipo não seria capaz de desencadear as forças da construção do comunismo, pois, após essa revolução, as massas burguesas e pequeno-burguesas (incluídos os camponeses), ainda representam uma força imensa – diferentemente do caso da Rússia após a Revolução de Outubro. O fracasso da reconstrução devolveria facilmente o poder para a reação e as massas proletárias teriam que fazer novos esforços para se livrarem desse sistema.

Inclusive chega a ser duvidoso que essa política de revolução mundial moderada pode alcançar seu objetivo, ao invés de reforçar a burguesia como toda política oportunista. Na verdade, a revolução jamais avança quando a oposição mais radical, em vez de impulsionar a revolução por meio de uma luta intransigente, se alia de antemão com a oposição mais moderada objetivando partilhar o poder. Isto debilita a força ofensiva global das massas a tal ponto que a derrocada do sistema estabelecido se retarda e torna-se mais dura e difícil.

As forças reais da revolução não estão nas táticas dos partidos nem dos governos, mas em outro lugar. Apesar de todas as negociações, não pode haver paz real entre os mundos imperialista e comunista: enquanto Krasin[21] negociava em Londres, os exércitos vermelhos esmagavam o exército polaco e chegavam às fronteiras da Alemanha e Hungria. Isto trouxe a guerra para a Europa Central. Os antagonismos de classe que aqui atingiram um nível intolerável e o colapso econômico interno completo, que tornam a revolução inevitável, a miséria das massas, a fúria da reação armada – tudo isso fará que a guerra civil se inflame nesses países. Mas quando as massas se colocarem em movimento aqui, sua revolução não se deixará canalizar dentro dos limites prescritos pela política oportunista de dirigentes experientes; será mais radical e profunda que na Rússia, porque a resistência a ser superada é muito maior. As decisões do congresso de Moscou são de menor importância que as forças elementais, caóticas, selvagens, que brotarão das profundezas de três povos arruinados e darão novo ímpeto à revolução mundial.

Publicado originalmente em: http://resistindo.org/caderno-1-conselhismo-x-bolchevismo/.
Nota da Tradução
Texto originalmente publicado em De Nieuwe Tijd em 1920; em Kommunismus (órgão teórico da Internacional Comunista para o sudeste da Europa); em Petrogrado, sob o título Die Entwicklung der Weltrevolution and die Taktik des Communismus (O Desenvolvimento da Revolução mundial e a tática do comunismo), e, como folheto, incluindo o “posfácio”, pela Verlag der Arbeiterbuchhandlung (Editora Livraria Operária) a Editora do Partido Comunista da Áustria. Esta tradução para o português resulta do cotejamento de duas traduções do espanhol: uma por Roi Ferreiro (maio de 2005), com base na versão inglesa traduzida por D. A. Smart e publicada em Pannekoek and Gorter’s Marxism (Pluto Press, London, 1978). Outra por Emílio Madrid Expósito (abril de 2005), com base na tradução da versão francesa publicada na revista (Dis)Continuité, n. 7, juillet, 1999. Em função disso, as notas de rodapé estão assim identificadas: NA para notas do autor (Pannekoek), NEI para notas da edição inglesa de 1978, NEF para notas da edição francesa de 1999, NK para nota de Kommunismus e NT para notas desta tradução ao português.


[1] Este artigo, escrito há algum tempo, é sem dúvida uma contribuição valiosa para a análise e a crítica da tática comunista, em que pese estar em contradição com as diretrizes do Comitê Executivo de Moscou. De acordo com a tarefa que nossa revista se colocou – servir de ponto de encontro para discutir os problemas da Internacional Comunista – nós o publicamos por ocasião do II Congresso da Internacional. Além disso, informamos que em breve esse artigo será publicado em folheto separado. (NK)

[2] O tribunista S. J. Rutgers participou do I Congresso da Internacional Comunista e retornou a Amsterdam no final de 1919 para ali instalar o Birô Auxiliar da III Internacional para a Europa Ocidental. Possivelmente tenha sido dele a autoria do artigo de orientação de esquerda sobre as táticas parlamentares e sindicais no único número do boletim do Birô, que teve seus recursos abruptamente congelados por Moscou. (NEI)

[3] Pannekoek mistura aqui os títulos de dois escritos de Radek redigidos durante seu período na prisão: “Desenvolvimento da Revolução Alemã e as tarefas do Partido Comunista”, escrito antes do Congresso de Heidelberg, e “Desenvolvimento da revolução mundial e as táticas dos partidos comunistas na luta pela ditadura do proletariado”, escrito posteriormente. Este último é o mencionado. (NEI)

[4] O parágrafo seguinte é o que Gorter se refere ao “comunismo de aldeia” em sua Carta Aberta ao Camarada Lênin. (NEI)

[5] Conferência convocada para estruturar o Birô Auxiliar. (NEI)

[6] As primeiras organizações sindicais na região do Ruhr foram obra de sacerdotes católicos em fins da década de 1860. No entanto, no final da década de 1870, Bismarck abandonou sua campanha contra o catolicismo e seu representante político, o Zentrum (precursor do atual CDU), para fazer uma frente única contra o partido socialdemocrata. (NEI)

[7] Expressão usada para justificar a colaboração com os socialistas na Comuna de Hungria. Foi utilizada pelos dirigentes anteriores do Partido Comunista Húngaro, que controlavam Kommunismus, como motivo para culpar pela sua derrocada em agosto de 1919. No livro “Esquerdismo…”, Lênin orienta aos comunistas britânicos fazerem campanha pelo Partido Trabalhista onde não tiverem candidato próprio: “Assim, apoiarão Henderson como a corda apoia o enforcado, e o estabelecimento iminente de um governo dos Henderson acelerará a morte política deste último”. (Edição de Pekín, p.90-91.) (NEI)

[8] O restante desse parágrafo e os dois seguintes são citados por Gorter na Carta Aberta. (NEI)

[9] Recentemente se argumentou na Alemanha que os comunistas devem entrar no parlamento para convencer os proletários que a luta parlamentar é inútil. Mas não se toma um caminho errado para mostrar a outras pessoas que é equivocado, e sim se vai pelo caminho certo desde o princípio! (NA)

[10] Pannekoek se refere aqui às correntes do sindicalismo revolucionário/anarcossindicalismo. (NT)

[11] Expoentes teóricos e políticos da corrente denominada “austro-marxismo” da II Internacional. Karl Renner era o líder da ala revisionista do Partido Social-Democrata Austríaco; Otto Bauer foi Secretário de Relações Exteriores da Áustria de novembro de 1918 a julho de 1919. (NT)

[12] Veja, por exemplo, a crítica aguda do camarada Koloszvary na revista semanal vienense Kommunismus. (NA)

[13] Ebert, Haase e Dittmann eram membros do Conselho de Comissários do Povo, ao qual foi dada a autoridade suprema pela revolução de novembro. (NEI)

[14] Karl Legien foi presidente da Comissão Geral dos Sindicatos desde 1890 e de sua sucessora, a ADGB (Allgemeiner Deutscher Gewerkschaftsbund), desde sua formação, em 1919. Gustav Bauer, outro líder sindical, tornou-se Ministro do Trabalho em 1919, e, posteriormente, foi a chanceler. (NEI)

[15] A ausência de manifestação visível de violência por parte da burguesia na Inglaterra também inspira a ilusão pacifista de que a revolução violenta não é necessária lá, e que a construção pacífica a partir debaixo, como no movimento sindical e nos comitês de fábrica, cuidará de tudo. É certamente verdade que a arma mais poderosa da burguesia inglesa até agora tem sido o engano sutil ao invés da força armada, mas se for necessário, esta classe mundialmente dominante não falhará em empregar meios terríveis para reforçar sua dominação. (NA)

[16] Respectivamente dirigentes socialistas e sindicalistas. (NEI)

[17] A concepção da derrocada gradual do modo de produção que objetiva eliminar gradualmente, por meio de lentas reformas, o capitalismo e a exploração, está em forte oposição com a concepção social-democrata. A supressão imediata de todos os ganhos do capital e de qualquer exploração pelo proletariado vitorioso é a condição principal para que o modo de produção tome o caminho do comunismo. (NA)

[18] Encontra-se exemplo semelhante e conhecido de desenvolvimento convergente na estrutura social no final da Antiguidade e início da Idade Média (consultar o cap. VIII da obra de Engels “A origem da família…”). (NA)

[19] Aqui está o fundamento da posição de Lenin em 1916, em Zimmerwald, contrário a Radek que defendeu o ponto de vista dos comunistas da Europa Ocidental. Estes últimos insistiam que a solução do direito dos povos à autodeterminação – sustentado pelos social-democratas, tal como Wilson – não passava de um engano para o povo, pois tal direito, sob o imperialismo, é apenas uma aparência, uma mentira, e por isso se devia lutar contra esta solução. Lenin viu nessa posição dos socialistas da Europa Ocidental a tendência deles em evitar a guerra de libertação nacional dos povos da Ásia, meio pelo qual eles poderiam escapar da luta radical contra a política colonial de seus governos. (NA)

[20] Referência a David Lloyd George, 1º Conde Lloyd-George de Dwyfor (1863-1945). Primeiro-ministro do Reino Unido entre7.12.1916 a 22.10.1922. Pertencia ao Partido Liberal e foi substituto de Asquith como primeiro-ministro de um governo de coalizão em tempo de guerra entre liberais e conservadores.

[21] Referência a Leonid Borísovich Krasin (1870-1926), engenheiro, diplomata e dirigente bolchevique russo (NT).