Publicado em: Living Marxism, Vol. IV (1938), No 5 (Novembro). Fonte: https://www.aaap.be/Pages/Pannekoek-en-1938-General-Remarks-On-The-Question-Of-Organisation.html.
A organização é o princípio fundamental do combate da classe operária em luta por sua emancipação. Disso resulta, do ponto de vista do movimento prático, que o problema mais importante é o das formas desta organização. Evidentemente, estas estão determinadas tanto pelas condições sociais como pelos objetivos da luta. Longe de ser o resultado do capricho da teoria, não podem ser criadas senão pela classe operária, atuando espontaneamente em função de suas necessidades imediatas.
Os operários constituíram os sindicatos na época em que o capitalismo começava sua expansão. O operário isolado se via então reduzido à impotência; por isso devia unir-se aos seus camaradas a fim de lutar e poder discutir com o capitalista a duração de sua jornada e o preço de sua força de trabalho. No interior da produção capitalista, patrões e operários possuem interesses antagônicos; sua luta de classes tem por objeto a repartição do produto social global. Em épocas comuns, os operários recebem o valor de sua força de trabalho, isto é, a soma necessária para manter viva sua capacidade de trabalho. O resto da produção forma o mais-valor, isto é, a parte que fica para a classe capitalista. Para aumentar seu lucro, os capitalistas tentam diminuir os salários e aumentar a duração da jornada de trabalho. Desta forma, na época em que os operários eram incapazes de defenderem-se, os salários decresciam ficando abaixo do mínimo necessário, as jornadas se alongavam, e a saúde física e mental dos trabalhadores se deteriorava até o ponto de colocar em perigo o futuro da sociedade. A formação dos sindicatos e a criação de leis fixando as condições de trabalho foram realizações derivadas de uma dura luta dos operários pelas condições de existência, e eram indispensáveis para o estabelecimento de condições de trabalho normais, no seio do sistema capitalista. A própria classe exploradora acabou por admitir que os sindicatos são necessários para canalizar as revoltas operárias a fim de prevenir todo risco de explosões repentinas e brutais.
Também ocorreu o desenvolvimento de organizações políticas, sob formas frequentemente diferentes. Diferença que ocorreu, sem dúvida, por variar as condições políticas de um país para outro. Na América, onde toda uma população de camponeses, artesãos e comerciantes, ignorando a sujeição feudal, podia expandir-se livremente, explorando os recursos naturais de um continente com possibilidades infinitas, os operários não tinham absolutamente o sentimento de formar uma classe particular. Como todo mundo, eles estavam envolvidos pelo espírito pequeno burguês da luta individual e coletiva para o bem estar pessoal e podiam esperar ver estas aspirações serem satisfeitas, pelo menos até certo ponto. Salvo em alguns raros momentos, ou bem entre grupos de emigrados recentes, nunca se sentiu necessidade de um partido específico da classe trabalhadora.
Por outro lado, na Europa, os operários foram arrastados para a luta da burguesia ascendente contra a ordem feudal. Muito rapidamente tiveram que criar partidos de classe, e aliados a uma fração das classes médias, combater para adquirir os direitos políticos, o direito sindical, liberdade de imprensa e reunião, sufrágio universal, instituições democráticas. Para efetivar sua propaganda, um partido tem necessidade de princípios gerais; para rivalizar com os outros precisa de uma teoria que contenha ideias rígidas a respeito do futuro. A classe operária, na qual os ideais comunistas já haviam germinado, descobriu sua teoria na obra de Marx e Engels, que expõe a forma pelo qual se dará a passagem do capitalismo para o socialismo, através da luta de classes. Esta teoria está presente na maioria dos partidos socialdemocratas da Europa; na Inglaterra, o partido trabalhista, criado pelos sindicatos, professava pontos de vista análogos, ainda que mais vagos: o objetivo da luta de classes era, para eles, uma espécie de comunidade socialista.
Os programas e a propaganda de todos estes partidos apresentavam a revolução proletária como o resultado último da luta de classes; a vitória dos operários sobre seus opressores significaria igualmente a criação de um sistema de produção comunista ou socialista. Contudo, enquanto o capitalismo durar, a luta prática não chegaria a sair dos marcos das necessidades imediatas e da defesa de certo nível de vida. Em um regime democrático, o parlamento serve de campo fechado onde se enfrentam os interesses de diversas classes sociais; grandes e pequenos capitalistas, proprietários rurais, camponeses, artesãos, comerciantes, industriais, operários, todos possuem interesses específicos que seus deputados defendem no Parlamento, todos participam da luta pelo poder e por parte do produto social que lhes pertence. Os operários devem, pois, assumir uma posição e a missão dos partidos socialistas consiste em lutar no plano político de maneira que seus interesses imediatos sejam satisfeitos. Por este motivo, estes partidos obtêm os votos dos operários, aumentando sua influência.
O desenvolvimento do capitalismo mudou tudo isto. As pequenas oficinas de ontem foram substituídas por fábricas e empresas gigantes que empregam milhares e dezenas de milhares de pessoas. O crescimento do capitalismo e da classe operária deu lugar ao fenômeno das organizações correspondentes. Os sindicatos, grupos locais em sua origem, se metamorfosearam em grandes confederações nacionais de centenas de milhões de membros. Devem reunir somas consideráveis para sustentar greves gigantescas e ainda mais dinheiro para alimentar os fundos de ajuda mútua. Desenvolveu-se toda uma burocracia dirigente – um estado maior superabundante de administradores, presidentes, secretários gerais, diretores de periódicos. Acostumados a negociar e a tratar com os patrões, estes homens chegaram a ser especialistas nas discussões sobre temas sociais. Definitivamente decidem tudo, tanto o emprego dos fundos financeiros como o conteúdo da imprensa; diante desses novos senhores, os sindicatos de base perderam quase toda autoridade. Essa metamorfose das organizações operárias em instrumentos de poder sobre seus próprios membros não deixa de ter antecedentes na história, pois quando as organizações crescem em excesso, as massas já não podem fazer-se ouvir.
O mesmo fenômeno se produziu no seio das organizações políticas: pequenos grupos de propagandistas no princípio se transformaram em grandes partidos. Seus verdadeiros dirigentes não são outros que seus eleitos para o Parlamento. Efetivamente, cabe a eles prosseguir a luta real no interior dos órgãos representativos nos quais fazem carreira. Eles dirigem os editoriais, orientam a propaganda, dirigem pequenos quadros; exercem uma influência preponderante sobre a política do partido, determinam sua linha política. Sem dúvida, os simples militantes possuem o direito de voto, agem combativamente na propaganda, pagam cotizações e enviam delegados para ocupar uma sede em seu nome nos congressos do partido. Porém se trata de poderes formais, ilusórios. Por isso a organização fica petrificada de tal modo que se parece com os demais partidos, isto é, os grupos políticos de carreira que tentam conseguir votos através de slogans e exercer eles mesmo o poder. Quando um partido socialista dispõe de um grande número de deputados se alia com outros partidos contra os grupos reacionários para formar uma maioria parlamentar. A partir deste momento já não há somente uma massa de prefeitos e vereadores municipais, mas que alguns dentre eles chegam a serem ministros ou ascendem aos mais altos cargos do Estado. Uma vez instalados nestes postos já não sabem atuar na qualidade de representantes da classe operária, governando para os trabalhadores contra os capitalistas. Assim, pois, o verdadeiro poder político e inclusive a maioria parlamentar seguem nas mãos da classe exploradora. Os ministros socialistas devem inclinar-se ante os interesses da sociedade global, isto é, os do capital. Sem dúvida, vemo-los proporem medidas para satisfazer a reivindicações imediatas dos operários, insistindo diante dos outros partidos para a atendê-las. Chegam a ser intermediários – mediadores – e quando depois de longas negociações chegam a obter pequenas reformas, se dirigem aos operários para persuadi-los de que se trata de reformas importantíssimas. Servindo de instrumento a estes dirigentes, o partido socialista tem desde este momento a tarefa de defender as reformas em questão e levar os trabalhadores a apoiá-las, ao invés de chamá-los para lutar por seus interesses, fazendo tudo que for necessário para adormecê-los e desviá-los da luta de classes.
No que diz respeito aos trabalhadores, as condições de luta se deterioraram. A classe capitalista cresceu enormemente, assim como suas riquezas. Em outras palavras, a concentração de capital nas mãos de alguns poucos capitães das finanças e da indústria, a coalizão dos mesmos patrões, situam os sindicatos ante um poder, a partir disso, muito mais forte, e frequentemente quase inexpugnável. Por outro lado, a competição feroz que os capitalistas de todos os países realizam para conquistar mercados, as fontes de matérias primas e o poder mundial, exige que partes crescentes do mais-valor sejam investidas na fabricação de armamentos e para a guerra. A diminuição da taxa de lucro constrange os capitalistas a aumentar a taxa de exploração, isto é, diminuir os salários reais. Assim, pois, os sindicatos chocam com uma resistência elevada, os antigos métodos passam a ser cada vez menos utilizáveis. Quando os dirigentes sindicais negociam com os patrões, já não estão em condições de arrancar grande coisa deles. Não ignorando o crescimento dos capitalistas e pouco interessados em combatê-los – já que lutas deste tipo trazem o risco de arruinar financeiramente as organizações e comprometer sua própria existência –, estão obrigados a aceitar as propostas patronais. A sua principal atividade consiste em acalmar o descontentamento dos operários e apresentar as ofertas dos empregadores sob os mais aspectos mais favoráveis. Igualmente, neste nível, os dirigentes servem de mediadores entre as classes antagônicas. E se os trabalhadores recusam estas ofertas e declaram greve, os chefes devem ou se opor a eles, ou então tolerar a luta na aparência, com intenção de fazê-la acabar o mais rápido possível.
Contudo, é impossível parar ou limitar a luta: efetivamente, os antagonismos de classe e a capacidade do capitalismo de reduzir o nível de vida operário crescem constantemente, do mesmo modo que a luta de classes deve seguir seu curso: os trabalhadores são constrangidos a lutar. De vez em quando, de uma maneira espontânea, rompem suas cadeias sem preocupar-se com os sindicatos e frequentemente desprezando compromissos realizados em seu nome. Às vezes, os líderes sindicais chegam a tomar a direção do movimento. Neste caso, se observa uma extinção gradual da luta, depois de qualquer pacto firmado pelos capitalistas e os chefes sindicalistas. O que não quer dizer de modo algum que uma greve selvagem, prolongada, tenha que ter esse destino, já que é demasiadamente limitada aos grupos diretamente interessados. De forma bastante indireta, o temor de ver repetir-se semelhantes explosões, obriga os patrões a mostrar-se prudentes. Contudo, essas greves demonstram que a grande batalha entre o capital e trabalho não pode cessar e que, se as formas de ação antigas se manifestam impraticáveis, os trabalhadores se lançam a fundo e criam espontaneamente novas. Sua rebelião contra o capital chega a ser igualmente uma rebelião contra as formas de organização tradicionais.
O objetivo e a tarefa da classe operária é a abolição do capitalismo. O capitalismo, chegando ao seu maior grau de desenvolvimento, provoca crises econômicas cada vez mais agudas, e, com seu imperialismo, seus armamentos e suas guerras mundiais, ameaçam os trabalhadores com a miséria e a destruição. A luta da classe proletária, sua rebelião e resistência, devem continuar até a derrocada da dominação capitalista e o capitalismo ser destruído.
No sistema capitalista, os possuidores dos meios de produção se apropriam do produto social, embolsa o mais-valor e exploram a classe operária. A exploração só cessa o dia em que os trabalhadores se apoderam dos meios de produção. Somente então podem dirigir, eles mesmos, suas vidas. A partir desse momento, efetivamente, a produção de todos os artigos necessários para a existência se tornará a tarefa da comunidade de operários, a comunidade humana. Esta produção forma um processo coletivo. Cada fábrica, cada empresa, reúne trabalhadores que associam seus esforços de maneira organizada. Porém, por outra parte, a produção mundial em seu conjunto representa também um processo coletivo. Todas as fábricas distintas devem, pois, quando se juntam, se associar. Consequentemente, quando a classe operária toma posse dos meios de produção, necessitará, ao mesmo tempo, organizar a produção.
São muitos os que persistem em conceber a revolução proletária a partir da perspectiva das antigas revoluções das classes médias, isto é, como uma série de fase que se engendram umas às outras: primeiro a conquista do poder político e restabelecimento de um novo governo; logo, a expropriação por decreto da classe capitalista; e, por fim, uma reorganização do processo de produção. Porém, neste caso, só se pode terminar em um capitalismo de Estado. Para que o proletariado torne dono de seu destino, é necessário criar, simultaneamente, sua própria organização e as formas da nova ordem econômica. Estes dois elementos são inseparáveis e constituem o processo da revolução social. Quando a classe operária consegue organizar-se em um coletivo capaz de ações de massas unificadas, a hora da revolução chegou, pois o capitalismo só pode dominar indivíduos desorganizados. E quando essas massas organizadas se lançam à ação revolucionária, enquanto os poderes existentes são paralisados e começam a desagregarem-se, as funções de direção do antigo governo voltam outra vez para as organizações operárias. A partir desse momento a tarefa é prosseguir a produção, assegurar a perpetuação desse processo indispensável à vida social. A luta revolucionária de classes do proletariado contra a burguesia e seus órgãos é inseparável da apropriação do aparato de produção por parte dos trabalhadores e sua extensão ao produto social. A forma de organização de uma classe em sua luta constitui simultaneamente a forma de organização do novo processo de produção.
Neste contexto, a forma de organização em sindicato e em partido, originária do período do capitalismo ascendente, já não apresenta a menor utilidade. Essas formas se metamorfosearam para servir aos chefes, que não podem nem sequer comprometer-se com o combate revolucionário. A luta não depende dos dirigentes: os líderes trabalhistas detestam a revolução proletária. A classe operária, para realizar este combate deve, pois, necessariamente, criar novas formas de organização que conservam o processo de decisão em suas próprias mãos. Seria em vão querer construir ou imaginar estas novas formas. Efetivamente, elas só podem surgir a partir da luta efetiva dos próprios operários. Porém, basta observar a prática para descobri-las, em estado embrionário, em todos os casos em que os trabalhadores se rebelam contra os velhos poderes.
Durante uma greve selvagem, os operários decidem tudo por eles mesmos no curso das assembleias gerais. Elegem comitês de greve cujos membros são substituíveis a qualquer momento. Se o movimento se propaga em grande número de empresas, a unidade de ação se realiza através dos comitês ampliados que agrupam os delegados de todas as fábricas em greve. Estes delegados não decidem fora da base nem para impor-lhes sua vontade. Simplesmente servem de mensageiros, expressam as opiniões e os desejos dos grupos que representam e, vice-versa, levam para as assembleias gerais a opinião e a decisão. Revogáveis a qualquer momento, não podem representar o papel de dirigentes. Os operários devem escolher seu próprio caminho, decidir o rumo a dar para sua ação. O poder de decidir e de arcar com seus riscos e suas possibilidades lhes pertence propriamente. E quando a greve finaliza, os comitês desaparecem.
Existe só um exemplo de classe operária da indústria moderna trabalhando como força motriz de uma revolução política: as revoluções russas de 1905 e de 1917. Então, em cada fábrica, os operários escolheram seus delegados, cuja assembleia geral constituiu o “soviete” central, o conselho onde era discutida a situação e as medidas a tomar. Lá, as diversas fábricas emitiam suas opiniões e aplainavam as divergências e se formulavam as decisões. Porém, os conselhos, ainda tendo uma influência diretiva sobre a educação revolucionária pela ação, não constituíam órgãos de comando. Às vezes, todos os membros de um conselho eram afastados e novos delegados os substituíam; às vezes, também, quando a greve geral paralisava as autoridades, os conselhos exerciam todos os poderes em escala local e os delegados de profissões liberais se uniam a eles com o fim de representar seus respectivos setores de atividade. Em certas ocasiões nos encontramos diante da organização dos trabalhadores em curso de ação revolucionária, uma organização certamente muito imperfeita, tateando, ensaiando novos métodos e por isso é necessário que se cumpra uma condição: que os operários se empenhem todos juntos e com todas as suas forças na ação em um momento em que sua existência mesma está em jogo, que tomem parte efetiva nas decisões e se consagrem inteiramente à luta.
Esta organização de conselhos desapareceu depois da revolução. Durante este tempo, os centros proletários não representavam mais que ilhotas de grande indústria perdidas no oceano de uma sociedade agrícola onde o desenvolvimento capitalista não estava ainda iniciado. A missão de desenvolver as bases do capitalismo passou para o partido comunista. Este tomou o poder político em suas mãos enquanto que os sovietes desciam à categoria de órgãos sem importância, com poderes unicamente nominais.
As velhas formas de organização, sindicatos e partidos políticos e a nova forma expressa nos conselhos (sovietes) pertencem a duas fases diferentes da evolução social e possuem funções diferentes. Os primeiros tinham como objetivo fortalecer a situação da classe operária no interior do capitalismo e estão ligados ao seu período de expansão. A segunda tem por fim criar um poder operário, abolir o capitalismo e a divisão da sociedade em classes; está ligada ao período do capitalismo decadente. No seio do sistema ascendente e próspero, a organização dos conselhos é impossível, os operários se associam unicamente para melhorar suas condições de existência, o que permite a ação sindical e política. No capitalismo decadente, preso às crises, este último tipo de ação é nulo e agarrar-se a isso não pode mais que frear o desenvolvimento da luta autônoma das massas, de sua autoatividade. Em épocas de tensão e de forte rebelião, quando movimentos de greve explodem em países inteiros e golpeiam na base o poder capitalista, ou bem quando o dia seguinte de uma guerra ou de uma catástrofe política, a autoridade do governo se desvanece e as massas passam à ação, as velhas formas de organização cedem o terreno às formas novas de autoatividade das massas.
Os portavozes dos partidos socialistas ou comunistas admitem frequentemente que durante a revolução os órgãos de ação autônoma das massas servem de forma útil para deixar abaixo o antigo regime, porém, eles se apressam a acrescentar que estes órgãos deverão deixar a democracia parlamentar ao cuidado de organizar a nova sociedade. Comparemos um pouco os princípios fundamentais destas duas formas de organização política da sociedade.
No início, a democracia se exercia nas pequenas cidades ou nos cantões, pela assembleia geral dos cidadãos. Nas cidades e países modernos, isso é impossível devido ao tamanho enorme da população. Os cidadãos só podem expressar sua vontade escolhendo delegados para alguma instituição central que se supõe que representa a todos. Estes deputados são livres para fazer, decidir, votar, governar, como bem entenderem, em sua “alma e consciência”, tal como se disse alguma vez com solenidade.
Os delegados dos conselhos estão ligados por seu mandato: possuem como única missão repassar a opinião dos grupos de operários que lhes escolheram para representá-los. Sendo revogáveis a qualquer instante, os trabalhadores, que os nomearam, conservam todos os poderes.
Por sua vez, os membros do Parlamento são eleitos por um número definido de anos; os cidadãos não são os soberanos mais que no momento das eleições. Passado este momento, seu poder desaparecerá e os deputados possuem toda a liberdade de comportar-se, durante alguns anos, segundo sua “consciência”, com a única restrição de que sabem que um dia deverão retornar ao corpo eleitoral. Porém, esperam captar votos através de uma campanha realizada com grande eficácia, com um amplo e contínuo uso de slogans e fórmulas demagógicas. Assim, pois, os verdadeiros soberanos, os que decidem, não são em absoluto os cidadãos, mas os parlamentares; e os eleitores nem sequer possuem a possibilidade de designar outra pessoa de seu gosto para concorrer ao pleito, pois os candidatos são indicados pelos partidos políticos. Desta forma, supondo que possam eleger candidatos de sua conveniência e escolhe-los, estes não formariam nunca um Governo, já que em uma democracia parlamentar há separação entre executivo e legislativo. O Governo real, o que domina o povo, é constituído por uma burocracia de altos funcionários e os resultados das lutais eleitorais ameaça tão pouco de atingi-lo que goza de uma independência quase absoluta. Veja como o poder capitalista pode existir graças ao sufrágio universal e à democracia. Também porque, nos países em que a maioria da população pertence à classe operária, esta democracia não pode nunca conduzir à conquista do poder político. Para a classe operária, a democracia parlamentar constitui uma democracia falsificada, enquanto que a democracia por meio dos conselhos é a democracia real: a gestão direta dos seus assuntos pelos trabalhadores.
A democracia parlamentar não é mais que a forma política pela qual grandes grupos de interesses capitalistas pressionam o Governo. Os deputados representam certas classes: os agricultores, comerciantes, industriais, operários, porém não representam a vontade comum dos seus eleitores. De fato, os eleitores de uma circunscrição não possuem nenhuma vontade comum; formam uma coleção de indivíduos, capitalistas, trabalhadores, lojistas, que vivem, por casualidade, no mesmo bairro.
Os delegados dos conselhos são escolhidos por um grupo socialmente homogêneo a fim de expressar a vontade de todos, ou, ainda, os conselhos não são compostos simplesmente de operários que possuem interesses de classe comuns; constituem um grupo natural de pessoas que trabalham juntas todo dia em uma fábrica ou em uma grande empresa e lutam contra o mesmo adversário. Estes homens decidirão ações que deverão levar a cabo imediatamente, de forma fraterna e unitária. Podem pronunciar-se não só sobre questões de greve e combate, mas também sobre os problemas concernentes à nova organização da produção. A representação por meio de conselhos não está fundada sobre a reagrupação absurda de comunas ou de bairros limítrofes, pois repousa sobre a reagrupação natural dos trabalhadores no processo de produção, única base real da vida social.
Contudo, não se deve confundir os conselhos operários com o tipo de representação chamado corporativo, próprio dos regimes fascistas. Neste último caso, trata-se, com efeito, de um sistema de representação por ramos profissionais (que une patrões e operários), considerado como o elemento de base da sociedade. Esta forma remete à Idade Média, a suas corporações fixas, a sua ordem imutável, e se distingue por uma tendência a proibir toda evolução aos grupos de interesses; neste sentido, é pior ainda que o sistema parlamentar clássico no qual os grupos e os interesses novos, cujo impulso anda junto com o desenvolvimento do capitalismo, não tardam em expressar-se no Parlamento e no Governo.
Com os conselhos operários nos encontramos diante de uma forma de representação totalmente diferente: a de uma classe revolucionária em luta. Só os interesses proletários são representados, excluindo desta forma a participação de delegados capitalistas. Contestando à classe capitalista todo direito de existência, tende a eliminá-la como tal, desapropriando-a dos meios de produção. Além disso, esta mesma organização de conselhos é um instrumento que permite aos trabalhadores assumir, à medida em que a revolução avança, a função que consiste em organizar a produção. Em outros termos, os conselhos operários são os órgãos da ditadura do proletariado. Esta não é absolutamente um sistema eleitoral sabiamente concebido com o fim de retirar artificialmente o direito de voto aos capitalistas e aos membros das classes médias. Trata-se de fato do exercício do poder pelos órgãos naturais dos trabalhadores, servindo futuramente como base do aparato produtivo da nova sociedade. Estes órgãos, que reúnem os delegados operários de vários ramos da produção, não podem, pois, por definição, acolher aos bandidos e exploradores que não efetuam nenhum trabalho produtivo. Assim, a ditadura da classe operária corresponde exatamente à democracia mais perfeita, a verdadeira democracia proletária que exclui a classe dos exploradores em via de extinção.
Os partidos exaltam, entre as formas antigas de organização, a democracia como única forma política justa e conforme o direito, sendo a ditadura para eles uma forma injusta. Para o marxismo não existe nem justiça nem direito abstrato: as formas políticas pressupostas para permitir aos homens expressar suas convicções, são o produto direto das estruturas econômicas da sociedade. Por outro lado, a teoria marxista põe igualmente em evidência o que distingue fundamentalmente a democracia parlamentar da organização dos conselhos. Sob as formas respectivas de democracia burguesa e democracia proletária refletem, efetivamente, o caráter diferente destas duas classes e de seus sistemas econômicos.
A democracia burguesa, democracia das classes médias, tem como base uma sociedade composta por pequenos produtores independentes. Estes últimos querem um Governo que seja consagrado aos seus interesses comuns: a ordem e a segurança pública; a proteção do comércio; um sistema de pesos e medidas unificado – e inclusive para a moeda; serviços habilitados a dizer a verdade e a fazer justiça. Tudo isto é necessário para que cada um esteja em condições de dirigir seus próprios assuntos tal como entender. A atenção se dirige, em primeiro lugar, sobre os assuntos privados. Os fatores políticos, que ninguém nega a sua necessidade, seguem secundários; ocupam-se disso, mas, definitivamente, muito pouco. O elemento essencial da vida social, a base da existência humana, encontra-se fragmentada em assuntos privados que dizem respeito aos cidadãos de forma individual; é, pois, natural que estes ocupem quase todo o tempo daqueles. Como a política não serve mais que para corrigir problemas menores, este assunto coletivo de todos os cidadãos é relegado a segundo plano. Não se saí para as ruas além das fases da revolução burguesa. Porém, em tempos ordinários, a política é abandonada a um pequeno grupo de especialistas, os políticos de carreira, ou cuja atividade consiste precisamente em ocupar-se destas condições gerais, políticas, de assuntos próprios das classes médias.
O mesmo acontece com os trabalhadores, ainda que em menor medida, posto que não possuem em vista mais que seus interesses imediatos. No regime capitalista, os trabalhadores efetuam longas jornadas de trabalho nas quais são absorvidas suas energias pelo sistema de exploração, lhes sobrando muito pouca força para se dedicar às atividades mentais. Ganhar a vida é, para os operários, a necessidade mais imperiosa de sua existência. Para eles, a política é a vontade comum a todos de defender a condição de assalariados, a qual tem, certamente, um interesse, porém bem mais contingente. Por isso eles também deixam aos especialistas – os políticos de partido e dirigentes sindicais – o cuidado de tratar dessas questões. Votam na qualidade de cidadãos ou na de militantes de base, tal como outras categorias de eleitores por relação com seus deputados. Desta maneira, podem, sem dúvida, dar algumas diretivas bastantes vagas aos que lhes representam, porém trata-se de uma influência muito limitada, posto que se veem obrigados a consagrar ao trabalho o melhor de sua atenção.
Em regime comunista, a democracia proletária tem bases econômicas opostas. A democracia está fundada, efetivamente, sobre uma produção já não privada, mas coletiva. Também os assuntos coletivos – ao que se convencionou chamar de política – ao perder o seu caráter acessório, passam a ser para cada um o fim principal do pensamento e da ação. O domínio da política reservado até então aos especialistas não serve para salvaguardar tal ou qual fator indispensável para a produção, pois, nesse regime, se identifica com o próprio processo de produção. Nesse momento, está encerrado a separação dos assuntos coletivos. Já não há necessidade de um grupo ou uma classe de homens de ofício para se ocupar dos assuntos de todos. Os produtores, por meio de seus delegados que lhes permitem organizar sua ação, dirigem eles mesmos suas atividades produtivas.
A diferença entre estas duas formas de organização não se deve ao fato de que uma se apóie sobre uma base tradicional, ideológica e a outra sobre a base material, produtiva, da sociedade. Efetivamente, ambas possuem como fundamento o sistema de produção. Uma, o sistema decadente herdado do passado; a outra, um sistema em gestação, o do futuro. Atualmente vivemos um período de transição: a era do grande capital e os começos da revolução proletária. O grande capital extirpou totalmente desde já o antigo sistema de produção: a classe numerosa de produtores independentes desapareceu. Essencialmente, a produção é a obra coletiva de grupos muito amplos de operários, porém o poder de gestão e a propriedade ficam nas mãos de um pequeno grupo de pessoas privadas. Os capitalistas mantêm esta situação contraditória por meio dos elementos de força de que dispõem, em particular, o poder do estado submisso ao governo. A tarefa da revolução proletária consiste em destruir este poder estatal. O seu conteúdo real é a apropriação dos meios de produção pelos operários. Deste modo, o tipo de sistema organizativo do passado cede gradualmente o terreno ao sistema de organização do futuro.
Não estamos mais que no começo dessa revolução. O século de combates revolucionários que se encontra atrás de nós nem sequer pôde ser considerado como um primeiro passo efetivo desse processo, mas somente como seu preâmbulo. Estas lutas permitiram acumular conhecimentos teóricos de um valor inestimável; colocaram em questão, com a ajuda de conceitos audazes, a pretensão do capitalismo de representar o último tipo de sistema social; permitiu aos operários dar-se conta de que tinham a possibilidade de por fim a sua miséria. Porém, estes combates não saíram nunca dos quadros do capitalismo; tratavam-se de ações decididas e dirigidas por chefes, e unicamente concebidas para substituir maus patrões por outros menos ruins. Só bruscas centelhas de revolta, tais como greves políticas ou greves de massas desencadeadas contra a vontade dos políticos, deixavam entrever de vez em quando um futuro de ação de massas dirigidas pelos próprios interessados.
Toda greve selvagem que não vai buscar os seus dirigentes e slogans na sede dos partidos e sindicatos, constitui a este respeito um símbolo inequívoco ao mesmo tempo em que um pequeno passo neste sentido. Todos os poderes que existem no seio do movimento operário, os partidos socialistas e comunistas, os sindicatos, todos os dirigentes cuja atividade está ligada à democracia burguesa herdada do passado, denunciam estas ações de massa como rebeliões anarquistas. Não podendo ultrapassar em seu campo de visão o quadro de suas velhas organizações, são incapazes de descobrir nas ações espontâneas dos trabalhadores germens de formas superiores de organização. Nos países fascistas, onde a velha democracia burguesa foi negada, estas ações espontâneas de massas, desde então, constituem a única forma de rebelião possível. Elas terão por tendência não restaurar a antiga democracia parlamentar, mas evoluir em direção à democracia proletária, isto é, à ditadura da classe operária.
Publicado originalmente em: Anton Pannekoek: Partidos, Sindicatos e Conselhos Operários. Traduzido por Nildo Viana.