Originalmente publicado em Red & Black Notes #8, primavera de 1999.
“Suponhamos que a direção central seja capaz de distribuir tudo que foi produzido, de maneira correta. Mesmo então, permanece o fato de que os produtores não têm à sua disposição o maquinário de produção. Este maquinário, além de não lhes pertencer, funciona para dispor deles. A conseqüência inevitável é que aqueles grupos que se opõem à direção existente serão oprimidos com uso da força. O poder econômico central está nas mãos daqueles que, ao mesmo tempo, exercem o poder político. Qualquer oposição que pense de modo diferente sobre os problemas econômicos e políticos será oprimida o máximo possível. Isto significa que, no lugar de uma associação de produtores livres e iguais, como a definida por Marx, há um presídio como nunca se viu.”
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Essa citação, livremente traduzida de um texto de setenta anos de idade, explica que as relações de produção que foram desenvolvidas na Rússia depois de 1917 nada têm a ver com o que Marx e Engels entendiam por comunismo. Na época em que o supracitado panfleto foi publicado, o terror dos anos 30 ainda estava por vir. Parecia apenas uma profecia. Não havia qualquer evento político que provocasse essa crítica da sociedade soviética; essa crítica surgiu de uma análise econômica. Com base nesta, o surgimento do stalinismo foi entendido como expressão de um sistema econômico que consiste numa exploração capitalista de Estado, e isto caracterizando não apenas o stalinismo.
O texto que citamos foi obra de um grupo cujos autores pertenciam a uma corrente que surgiu nos anos seguintes à primeira guerra mundial, e continua válido. Esta corrente se caracterizou por uma clara crítica da social-democracia e do bolchevismo. Analisou cuidadosamente a experiência cotidiana da classe operária e chegou assim a novas ideias sobre a luta de classes. A corrente via a social-democracia e o bolchevismo como o “velho movimento operário”; o oposto disso seria “um novo movimento dos trabalhadores”.
Os mais antigos membros dessa corrente foram marxistas alemães e holandeses que sempre atuaram na ala esquerda da social-democracia. Nos anos de luta contra o reformismo, eles se tornaram cada vez mais críticos da social-democracia. Os mais conhecidos dessa corrente foram dois holandeses, Anton Pannekoek (1872-1960) e Herman Gorter (1864-1927), e também dois alemães, Karl Schroder (1884-1950) e Otto Rühle (1874-1943). Mais tarde, o então jovem Paul Mattick (1904-1980) seria um de seus teóricos mais importantes.
As ideias de Pannekoek chamaram a atenção, logo depois da virada do século, para algumas reflexões marxistas sobre filosofia. De 1906 até a eclosão da primeira guerra mundial, ele trabalhou na Alemanha. Primeiro, por um ano, como professor na escola do SPD, e depois, quando foi ameaçado de expulsão da Alemanha, trabalhou em Bremen e escreveu artigos para diversas publicações de esquerda. Em Bremen, Pannekoek testemunhou uma greve selvagem dos estivadores. Esta experiência influenciou suas idéias sobre a luta de classes, e também sua interpretação do marxismo. Em conseqüência, muito cedo ele recusou as teorias bolcheviques sobre organização, estratégia e política.
Otto Rühle nunca se identificou com uma corrente no movimento operário alemão. Mas ele nunca negligenciou os interesses gerais da classe operária. Como Pannekoek, recusou o bolchevismo na década de 1920 e foi um dos primeiros a argumentar que a revolução proletária é algo completamente diferente de uma revolução burguesa e consequentemente requer formas de organização completamente diferentes. Por esta razão, ele recusou a falácia de que a revolução proletária seria tarefa de um partido. “A revolução”, dizia, “não é uma tarefa de partido; política e economicamente é uma tarefa de toda a classe operária”.
Tais idéias, que seriam mais detalhadas, caracterizam a corrente que ficou conhecida como comunismo de conselhos. O comunismo de conselhos, do início da década de 1920, baseou-se nas experiências das revoluções russa e alemã, defendia a democracia dos conselhos e recusava o poder do partido. Procurou se distinguir do bolchevismo e dos bolcheviques, e daqueles que se autodenominavam comunistas. Contudo, nas suas origens, ele estava muito distante das opiniões que desenvolveria mais tarde.
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No começo, o comunismo de conselhos pouco se diferenciava do leninismo. Rühle, todavia, não considerava comunistas os partidos da terceira internacional. Alguns anos depois, os comunistas de conselhos iriam se distinguir com muito mais clareza do bolchevismo. A chamada revolução de outubro acabou com o czarismo e pôs um fim às relações feudais, limpando o campo para capitalismo.
Os comunistas de conselhos foram ainda mais longe. Eles apontaram o fato de que uma economia como a russa, baseada no trabalho assalariado, ou seja, uma economia em que a força de trabalho é uma mercadoria, tem como finalidade a produção de mais-valor mediante a exploração dos trabalhadores. A questão não é se o mais-valor vai para o capitalista privado ou para o Estado, enquanto proprietário dos meios de produção. Os comunistas de conselhos lembravam que Marx tinha dito que a nacionalização dos meios de produção não tem nada a ver com socialismo. Eles também assinalaram que, na Rússia, a produção obedecia as mesmas leis que existem no capitalismo privado clássico. A exploração só pode chegar a um fim – dizia Marx – quando o trabalho assalariado não mais existir. Os comunistas de conselhos explicavam, referindo-se a Moscou, que não havia comunismo. A diferença entre comunismo de conselhos e bolchevismo torna-se, assim, mais clara e mais completa.
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O que dissemos não deve ser entendido como significando que o comunismo de conselhos é uma crítica do stalinismo, especificamente. É uma crítica do bolchevismo, em geral. Os comunistas de conselhos não veem o stalinismo como um tipo de “contrarrevolução” que privou a revolução de outubro de seus frutos. Mais precisamente, eles viam o stalinismo apenas como um fruto dessa revolução, da revolução que abriu as portas ao capitalismo na Rússia. Stálin foi o herdeiro do bolchevismo e da revolução bolchevique. O desenvolvimento dessa teoria foi lento, acompanhando o desenvolvimento social. Com o tempo, os comunistas de conselho mudariam sua opinião e sua prática. Inicialmente, na Alemanha e na Holanda, partidos comunistas de conselhos foram fundados. Isto contradizia a opinião de alguns que, como Rühle, afirmavam que partidos nada tinham a ver com a classe operária. Rühle, no entanto, via essas organizações como partidos “de um tipo completamente diferente” – “um partido que já não era mais um partido.”
Quatro anos depois, em 1924, Rühle falava uma linguagem diferente. “Um partido com caráter revolucionário na acepção proletária do termo”, ele disse, “é um absurdo. Seu caráter revolucionário só pode existir como expressão burguesa e somente quando a questão é a passagem do feudalismo ao capitalismo”. Ele estava inteiramente certo e por esta razão os “absurdos” desapareceriam do teatro proletário dentro de dez anos. Havia poucas exceções e, após a segunda guerra mundial, a expressão foi abandonada.
Ao mesmo tempo, os comunistas de conselhos amadureceram. Eles entenderam que a revolução russa era uma revolução burguesa e que a economia russa nada mais era do que capitalismo de Estado. Eles enxergaram mais claro e novas pesquisas amadureceram.
A análise mais importante foi completada por Pannekoek em 1938. Ele publicou um panfleto sobre a filosofia de Lênin e produziu uma análise mais aprofundada do bolchevismo. Pannekoek apontou o fato de que o marxismo de Lênin era uma lenda e contradizia o marxismo real. Ao mesmo tempo, ele explicou a causa: “Na Rússia, a luta contra o czarismo assemelhava-se em muitos aspectos à luta contra o feudalismo na Europa, muito tempo antes. A religião e a igreja apoiavam o poder existente. Por esta razão, uma luta contra a religião era uma necessidade social”. Portanto, aquilo que Lênin considerava como materialismo histórico pouco se diferenciava do materialismo burguês, do século XVIII francês, um materialismo que, naqueles tempos, foi usado como arma espiritual contra a igreja e a religião. Ou seja, apontando as similaridades entre as relações sociais na Rússia antes da revolução e aquelas da França pré-revolucionária, os comunistas de conselhos registravam que Lênin e os membros de seu partido haviam reivindicado o nome de jacobinos para si mesmos. Eles pensavam que seu partido na revolução burguesa russa teve a mesma função dos jacobinos franceses.
O poder bolchevique – que, em março de 1918, poucos meses depois de outubro de 1917, esmagou o já reduzido poder dos sovietes – foi, como os comunistas de conselhos diziam, uma conseqüência lógica da revolução de outubro. Os sovietes não se adaptaram a um sistema que consistia na superestrutura política das relações de produção capitalistas de Estado.
O que o movimento comunista de conselhos entendia por comunismo era algo completamente diferente daquele sistema. A ditadura do partido não corresponde às relações sociais baseadas na abolição do trabalho assalariado e no fim da exploração dos trabalhadores. Uma sociedade em que os produtores são livres e iguais não pode ser diferente da democracia dos produtores.
Cajo Brendel
O presente texto foi retirado do seguinte site: http://www.oocities.org/autonomiabvr/critbolch.html.