Kronstadt 1921 – Paul Avrich (Parte 3)

Traduzido por Fecaloma – Punk Rock, a partir da versão disponível em: Paul Avrich – Kronstadt – The 1921 Uprizing of Sailors in the Context of the Political Development of the New Soviet State (1970).

Para uma análise do Crítica Desapiedada do evento de Kronstadt, conferir: O Conflito em torno dos sovietes entre o Partido Bolchevique e os trabalhadores da Revolta de Kronstadt (1921) – Aline Ferreira

Parte 1

Parte 2

Anexos

7. Conclusão

Kronstadt capitulou. Os insurgentes lutaram com determinação e coragem, mas as chances reais de vitória sempre foram muito difusas. Os próprios líderes do movimento reconheceram que o levante foi organizado às pressas e mal preparado. Os marinheiros não detinham de um aparato militar consistente para encampar uma invasão armada fora da ilha, estando entregues a si mesmos e desamparados de qualquer ajuda do exterior. Em contrapartida, os bolcheviques, ao vencerem a guerra civil, encontravam-se desimpedidos para concentrar todo o seu poderio militar contra o foco rebelde. O governo contava ainda a seu favor com as condições climáticas do golfo da Finlândia, que ainda estava congelado, o que proporcionava emplacar um ataque de infantaria em grande escala. Na verdade, confrontada aos movimentos antissoviéticos da guerra civil, Kronstadt era um problema de modestas proporções. Se os bolcheviques conseguiram derrotar Denikin, Kolchak, Yudenich e expulsar as legiões de Pilsudski, então a cidadela não seria uma ameaça importante.

O que realmente causava preocupação era a possibilidade do motim desencadear uma revolta generalizada pelo continente ou servir de abre-alas para uma nova intervenção contrarrevolucionária. Além disso, o país atravessava um estado de tensão social e estava à beira de uma rebelião de massas. Até então, os bolcheviques foram bem-sucedidos em neutralizar seus oponentes, mas Kronstadt, mesmo sendo considerada uma ocorrência de menor dimensão em comparação com as revoltas camponesas da Sibéria e do Tambov, era uma fortaleza equipada com militares bem treinados. Outro fato agravante, a que se atentava o governo, era a localização da fortaleza no Báltico, que, diferentemente das zonas remotas do interior, podia servir de trampolim para uma invasão estrangeira.

Diante do exposto, seria difícil imaginar uma vitória dos rebeldes de Kronstadt. Apesar de todo o ressentimento com a situação, o povo russo estava desesperançado e cansado da guerra. As queixas dirigidas ao governo e o ódio aos comunistas não eram maiores que o medo de uma restauração branca. Ademais, o movimento grevista de Petrogrado, que tanto acendeu a chama da esperança nos marinheiros, perdera a força do início. Uma providencial ajuda do exterior também esbarrava na mudança de disposição das potências ocidentais, que abandonavam sua política de intervenção e sinalizavam para um entendimento com os bolcheviques. Para o alívio dos comunistas e frustração dos brancos, a rebelião não conseguiu emperrar o acordo comercial anglo-soviético. O pacto foi assinado em Londres, no dia 16 de março, horas antes do assalto final à fortaleza. No mesmo dia, a propósito, foi celebrado em Moscou um tratado de amizade com a Turquia. A rebelião de Kronstadt também não foi capaz de travar as negociações de paz com os polacos, que não desejavam retomar a guerra com seu arquirrival vizinho. O tratado do Riga foi assinado em 18 de março enquanto as tropas comunistas eliminavam os últimos núcleos de resistência rebelde. A Finlândia também deu as costas aos insurgentes quando proibiu em seu território o livre trânsito que poderia viabilizar algum socorro vindo do exterior. Finalmente, os emigrados russos permaneceram divididos e incapazes de articular qualquer plano de ação em apoio ao movimento insurrecional de Kronstadt. Seriam necessários meses até que o general Wrangel conseguisse reunir todas as suas tropas, desmobilizadas e moralmente combalidas, e transportá-las pelo mar mediterrâneo até o Báltico, já que uma frente alternativa pelo sul se reverteria em um desastre completo.

Para os rebeldes, somente uma ofensiva imediata poderia render alguma chance de vitória. Se tivessem seguido as orientações dos “especialistas militares” e estabelecido uma cabeça de ponte em Oranienbaum, não seria difícil reunirem em torno de sua causa as unidades do Exército Vermelho e, talvez, a população civil. Uma rebelião contra o Estado, observou Alexander Berkman, deve tomar a iniciativa e entabular um ataque fulminante contra o governo, de maneira que este não encontre tempo para reunir todas as suas forças numa contraofensiva decisiva. Caso contrário, o isolamento ou a espera por uma conjuntura favorável acarretará a derrota inevitável do movimento rebelde. A este respeito, notou Berkman, Kronstadt repetiu o erro fatal da Comuna de Paris, ao não surpreender o governo de Thiers desprevenido com um ataque rápido a Versalhes; do mesmo modo, Kronstadt perdeu o momento propício de marchar sobre Petrogrado, antes que as autoridades dispusessem de tempo para organizar suas defesas[1]. Em março de 1908, em um artigo comemorativo à Comuna, Lênin elaborou um argumento semelhante ao criticar a “excessiva magnanimidade do proletariado; em vez de aniquilar seus inimigos, procurou exercer sobre eles uma influência moral, subestimando a importância da atividade puramente militar na guerra civil e, em vez de coroar uma vitória em Paris, com uma decidida ofensiva sobre Versalhes, demorou tempo demais, o suficiente para o governo de Versalhes reunir suas forças tenebrosas e preparar a sangrenta semana de maio”[2]. Eis um epitáfio oportuno para a Comuna de Kronstadt de 1921.

Portanto, é difícil escapar da conclusão de que a opção pela não invasão do continente condicionou a derrota dos rebeldes a uma questão de tempo. Mesmo se conseguissem resistir até o degelo da primavera e recebessem ajuda do estrangeiro, todas as probabilidades pesavam contra eles. De fato, a proteção natural fornecida pelo mar aberto ou o reabastecimento de alimentos, remédios e munições poderiam preserva-los por mais algumas poucas semanas e cobrado, tão somente, um alto custo com vidas bolcheviques. Cedo ou tarde, no entanto, estavam fadados a sucumbir ante a pressão do inimigo. Se a derrota não viesse pelo poder militar, viria pela mesma combinação de forças e concessões econômicas que selaram o destino do movimento grevista de Petrogrado e das insurreições camponesas em todo o país. Em todos os lugares, a Nova Política Econômica aplacava o descontentamento popular e Kronstadt não seria exceção.

Não se trata aqui de sugerir que de alguma maneira Kronstadt motivou a implementação da NEP – se tanto, apenas acelerou o processo. Em março de 1921, Lênin não precisava mais de justificativas para abandonar o programa do comunismo de guerra. Ele e seus companheiros vinham reavaliando as políticas econômicas desde o fim da guerra civil. As linhas fundamentais da NEP, inclusive, já estavam traçadas algumas semanas antes da rebelião dos marinheiros. Ainda em dezembro de 1920, quando os socialistas revolucionários (SR) e os delegados mencheviques demandaram ao VIII Congresso dos Sovietes o fim das requisições de alimento em troca de um novo imposto em espécie, Lênin ficou de estudar a proposta. Várias semanas se passaram sem que nenhuma medida concreta fosse aplicada. Mas a crescente maré de insatisfação popular persuadiu Lênin de que o que estava em jogo era a própria sobrevivência do regime bolchevique. Em uma reunião do Politiburo, realizada no dia 8 de fevereiro, durante a qual toda a política agrária foi cuidadosamente revisada, Lênin esboçou um plano para substituir as requisições forçadas por um imposto em espécie. Concedia o direito ao camponês de usufruir de seus excedentes desde que suas obrigações para com o Estado estivessem em dia. Durante as semanas seguintes, o projeto foi amplamente discutido pela imprensa soviética. A 24 de fevereiro, cinco dias antes do início da revolta de Kronstadt, foi apresentado ao Comitê Central um projeto detalhado, baseado nas anotações de Lênin, para ser incluído na agenda do X Congresso do Partido[3].

O significado da rebelião não passou despercebido ao congresso quando, a 8 de março, se reuniu em Moscou. A revolta expressava um intenso sentimento popular de rejeição ao regime político. Tal constatação incutiu um senso de urgência aos trabalhos e todas as dúvidas acerca da necessidade de uma reforma imediata foram dirimidas. O partido encarava a rebelião como um sinal de mau presságio. Houve até quem especulou quanto à possibilidade do levante não ter se sucedido caso a NEP fosse implementada cerca de um mês antes[4]. Seja como for, formou-se consenso sobre a celeridade de se levar adiante as reformas. De outro modo, os bolcheviques corriam o sério risco de perderem o poder arrastados por um maremoto de ira popular. Daí o sentido da declaração de Lênin ao comparar Kronstadt a um raio que “iluminou a realidade melhor que qualquer coisa”. O líder bolchevique compreendera bem a natureza do motim, que não era um fato isolado, mas a reprodução de um padrão de insatisfação popular recorrente nas revoltas do campo, nas greves operárias e nos casos de insubordinação dentro das forças armadas. A crise econômica do comunismo de guerra, observou Lênin, transformou-se “na crise política chamada Kronstadt”, colocando o futuro do bolchevismo na corda bamba[5].

O X Congresso do Partido passou para história do bolchevismo como um dos mais dramáticos e por ter introduzido uma guinada fundamental na política soviética. Anos antes, Lênin pressupunha duas condições para a vitória do socialismo na Rússia: apoiar o proletário revolucionário no Ocidente e tecer uma aliança entre o operariado e o campesinato russos[6]. Em 1921, nenhum desses pré-requisitos havia se cumprido. Como resultado, Lênin forçosamente abandonou suas convicções a respeito da transição para o socialismo, que seria impossível sem o advento da revolução em toda a Europa. Eis aqui, em essência, a semente do “socialismo em um só país”; doutrina desenvolvida por Stalin poucos anos depois, a qual reduzia todo o processo revolucionário para se acomodar aos interesses das potências capitalistas estrangeiras e aos anseios do camponês local. Antes de tudo, urgia a necessidade geral, para a qual dependia tudo o mais, de evitar a rebelião no campo que estava prestes a eclodir. Como explicou Lênin, ao X Congresso, “somente um pacto com o camponês poderá salvar o socialismo na Rússia, até que a revolução se espalhe para outros países do mundo”[7]. Três anos antes, em março de 1918, Lênin já havia recuado de maneira semelhante no âmbito da política internacional quando rejeitou uma “guerra revolucionária” contra a Alemanha e assinou o tratado de Brest-Litovsk. Agora, para manter o “alívio momentâneo”, tão duramente negado aos bolcheviques em 1918, Lênin arquivou em definitivo o comunismo de guerra para inaugurar um programa mais moderado e conciliador. “Devemos satisfazer os desejos econômicos do camponês médio e introduzir o livre comércio – declarou -, pois de outro modo será impossível conservar o poder do proletariado na Rússia, tendo em vista a morosidade da revolução mundial”[8].

No dia 15 de março, o X Congresso do Partido adotou uma medida, denominada por um dos delegados, o estudioso marxista D. B. Riazanov, de “Brest-camponês”[9], que constituiria a pedra angular da Nova Política Econômica. Enfim, o governo determinava a substituição do confisco compulsório de alimentos por um imposto em espécie e reconhecia o direito do camponês comercializar seus excedentes no mercado. Foi o primeiro passo de uma série de providências que levaram o comunismo de guerra a uma economia mista. Entre elas, descartou-se a proposta de Valerian Osinsky, apresentada ao VIII Congresso dos Sovietes, referente ao plantio efetuado sob uma direção centralizada; em todos os lugares, os bloqueios de estradas foram removidos das rodovias e linhas férreas; o comércio entre a cidade e as aldeias renasceu; os soldados de Trotsky, que ocupavam postos de trabalho, receberam licença e desocuparam as fábricas; e os sindicatos obtiveram um grau de autonomia que incluía o direito de eleger seus próprios funcionários e submeter ao debate questões que afetavam diretamente os interesses dos trabalhadores. Decretos subsequentes restabeleceram a iniciativa privada no comércio a varejo e na produção de bens de consumo. Ao Estado reservou-se os “escalões dominantes” da economia: indústria pesada, comércio exterior, transporte e comunicação. Cada medida surtiu o efeito de um prego no caixão da oposição popular. Uma nova vida despontava nas cidades e aldeias russas. Durante vários meses, porém, a agitação camponesa permaneceu latente no Tambov, na Sibéria e na bacia do Volga. Mas não tardou ao governo enviar para essas localidades numerosas tropas da Tcheca e dos kursanty – o mesmo tipo de unidades utilizadas em Kronstadt. No outono de 1921, já não havia mais focos de resistência na Rússia Soviética.

A NEP não era para Lênin uma simples medida paliativa, até que a ordem e autoridade bolchevique fossem restabelecidas. “Enquanto não remodelarmos o campesinato – disse ao X Congresso -, enquanto não reestruturamos a produção agrícola em grande escala, nós devemos garantir ao camponês a liberdade de gerir seus próprios negócios sem nenhuma amarra. Teremos de encontrar formas de coexistência com o pequeno agricultor”. Lênin confessava que as coletivizações em massa geravam antipatia nos camponeses individuais. Teremos de lidar com eles durante anos, disse o líder bolchevique, “de modo que a recomposição da pequena propriedade rural, a remodelação de toda a psicologia e hábitos camponeses, é uma tarefa que poderá demandar muitas gerações”[10]. Ao admitir isso, Lênin aceitava tacitamente o argumento de seus críticos mencheviques, que, em 1917, o advertiram do contrassenso de transformar radicalmente os atrasados setores rurais ao socialismo através de experiências sociais prematuras. Segundo insistiam, os verdadeiros marxistas sabiam que as condições objetivas da Rússia não estavam amadurecidas para o triunfo de uma revolução socialista, com sua incipiente classe proletária e numerosa população camponesa. Também Engels já havia escrito sobre o quanto prejudicial seria uma revolução extemporânea e a tomada do poder pelo partido socialista num estágio anterior ao desenvolvimento da indústria e da democracia. Todavia, os bolcheviques levaram em frente o que a teoria do materialismo histórico declarava impossível: realizar uma revolução antes de terem-se cumprido os pressupostos históricos necessários para o desenvolvimento de uma sociedade socialista. A Nova Política Econômica não era senão uma tentativa de pular etapas. Para Lênin, a NEP compreendia um longo período de progresso econômico, para o qual se supunha a reconciliação entre o campo e a cidade e a criação das bases materiais de uma sociedade socialista.

Em boa medida, a NEP trouxe um alívio das tensões na sociedade russa. Todavia, não foi capaz de satisfazer as demandas de Kronstadt e seus simpatizantes. Sem dúvida, foram abolidas as políticas de confisco de grãos e bloqueio de estrada; dispensados os militares que trabalhavam nas fábricas; concedido certo grau de independência aos sindicatos. No entanto, as granjas estatais permaneceram intocadas e o capitalismo foi parcialmente restaurado no setor industrial. Além disso, contrariando os princípios da democracia proletária, os antigos diretores e técnicos permaneceram no comando das grandes fábricas. Excluídos de qualquer participação na direção fabril, os operários continuaram vítimas da “escravidão assalariada”.

Presumivelmente, tampouco houve uma redemocratização na vida militar. O direito de eleger comitês de embarcação e comissários políticos seguiu sendo um problema sem solução. Depois de Kronstadt já não se discutia mais a descentralização da autoridade ou o relaxamento da disciplina militar no interior da frota marítima. Ao contrário, Lênin propôs a Trotsky extinguir a Frota do Báltico, já que não confiava nos marinheiros e fazia pouco caso do valor militar da esquadra. Mas Trotsky persuadiu Lênin da desnecessidade de uma medida tão drástica. Afinal, com a reorganização da armada soviética, os elementos dissidentes sofreram expurgos e, para garantir a fidelidade da frota no futuro, as vagas nas escolas de cadetes navais passaram a ser preenchidas somente por membros da Juventude Comunista. Ao mesmo tempo, a disciplina do Exército Vermelho tornou-se mais rigorosa e os planos para a criação de milícias populares recrutadas entre voluntários camponeses e operários não foram retomados[11].

O fundamental é que não só se ignoraram todas as demandas políticas rebeldes como, aliás, houve um recrudescimento do poder ditatorial. No limite, as concessões da NEP serviram apenas para fortalecer ainda mais o monopólio bolchevique de poder. O rascunho do discurso de Lênin para o X Congresso lista os seguintes tópicos: “A lição de Kronstadt: em política – adotar seleção criteriosa nas fileiras do partido (e estabelecer uma disciplina rigorosa); combater vigorosamente os mencheviques e os socialistas revolucionários (SR); na economia – satisfazer, na medida do possível, o camponês mediano”[12]. Por conseguinte, não se levou em conta a autonomia popular e os sovietes livres não passaram de um sonho frustrado. Ademais, o Estado não restabeleceu a liberdade de expressão, de imprensa e de reunião, conforme reivindicava a resolução do Petropavlovsk. Também não se concedeu liberdade aos socialistas e anarquistas acusados de crimes políticos. E, longe de formar um governo de coalizão, através dos sovietes reeleitos, os bolcheviques acabaram com todos os partidos de esquerda. Na noite de 17 de março, enquanto o Comitê Revolucionário de Kronstadt fugia para a Finlândia, por uma destas tristes coincidências, os membros do último governo menchevique da Rússia Soviética, ora deposto na Georgia, embarcavam no porto de Batum, no Mar Negro, rumo ao exílio na Europa ocidental[13]. Durante a guerra civil, por estarem encurralados por todas as partes pelos brancos, os bolcheviques permitiram aos partidos de esquerda pró-sovéticos uma subsistência precária e cerceada por coações e vigilância continua. Mas depois de Kronstadt nada mais foi tolerado. Em maio de 1921, Lênin punha fim à pretensa oposição legal quando declarou que seus rivais socialistas deviam estar atrás das grades ou fazendo companhia aos guardas brancos no exílio[14]. Acusados pelas autoridades de cumplicidade com a rebelião de Kronstadt, uma nova onda de repressão tragou mencheviques, socialistas revolucionários (SR) e anarquistas. Os mais afortunados puderam emigrar, mas nem todos conseguiram deixar o país. Milhares foram interceptados pelas redes de agentes da Tcheca e banidos para regiões longínquas do extremo norte, da Sibéria e da Ásia Central. No final do ano, o regime unipartidário estava plenamente consolidado e os últimos militantes da oposição política silenciados ou levados à clandestinidade. Assim, como todas as revoltas fracassadas contra regimes autoritários, Kronstadt desencadeou uma reação contrária ao que se objetivava no início: ao invés de consagrar uma nova era dedicada à autogestão popular, revigorou ainda mais a ditadura comunista por todo o país.

Nem mesmo as subdivisões do partido escaparam ao endurecimento do regime. Em nome da sobrevivência política, em meio à crise, Lênin revogou o princípio de “democracia partidária”, encerrando assim as divergências que existiam entre os bolcheviques. “Há chegado o momento – disse Lênin, ao X Congresso – de eliminar a oposição partidária, de acabar com ela; já temos oposição demais”[15]. Ao insinuar que as críticas internas às políticas do partido estimularam os marinheiros a levantarem-se contra o governo, Lênin fez de Kronstadt um estratagema para golpear opositores e forçá-los à total obediência[16]. Tais subterfúgios repercutiam favoravelmente no auditório do congresso. Temores acerca de uma revolta de massas que pudesse derrubar os bolcheviques do poder não era um sentimento exclusivo de Lênin. “Atualmente – discursou um dos oradores – existem três tendências no partido. Devemos decidir se continuaremos tolerando esta situação por mais tempo ou não. Em minha opinião, nós não podemos enfrentar o general Kozlovski divididos como estamos. O congresso deve acolher o meu entendimento”[17]. Rapidamente formou-se um consenso quanto à necessidade de mudanças. Os delegados aprovaram uma resolução cujos termos, bastante incisivos, condenavam o programa da Oposição Operária como um “desvio sindicalista e anarquista” da tradição marxista. Uma segunda resolução, “sobre a unidade partidária”, postulava a extinção de todas as correntes partidárias, com base no argumento que fazia de Kronstadt um exemplo de como as disputas internas podiam ser exploradas pela contrarrevolução. A última cláusula, mantida em segredo por quase três anos, conferia poderes extraordinários ao Comitê Central, inclusive, o de expulsar eventuais dissidentes[18]. Ato contínuo, Lênin ordenou uma purga “de cima a baixo” no partido, a fim de eliminar elementos não confiáveis. No final do verão, aproximadamente um quarto do total de militantes acabaram expulsos.

Para os libertários perspicazes, como Alexander Berkman, Kronstadt aparecia como uma experiência cuja gravidade induzia a um exame crítico da teoria e práxis bolchevique. Naquela época, porém, o levante não impressionou a todos. A princípio, não foi entendido como um fato decisivo, apesar de seu desenrolar dramático e trágico. Portanto, não desempenhou fator importante na condução das políticas do governo de Lênin. As mudanças para um relaxamento na política externa e nacional já estavam em andamento desde o final da guerra civil e, por isso, a importância de Kronstadt resumia-se a um símbolo da crise social – a transição do comunismo de guerra para a NEP -; a mais grave crise da história soviética, segundo afirmou Lênin em seu discurso ao IV Congresso do Komintern[19]. Mas, com a passagem do tempo e o advento da era stalinista, a revolta adquiriu novo significado. “Na verdade – escreveu Emma Goldman, em 1938, auge do Grande Expurgo -, as vozes sufocadas em Kronstadt gritam cada vez mais alto ao longo desses últimos 17 anos”. “Que pena – acrescentava -, às vezes, o silêncio dos mortos é mais eloquente que o palavrório dos vivos”[20]. Partindo-se da perspectiva dos julgamentos de Moscou e do reino do terror stalinista, muitos viram na rebelião uma encruzilhada fatal na história da Revolução Russa. Marcava a derrota do socialismo descentralizado e libertário e o início apoteótico da burocracia e do totalitarismo.

Não se quer dizer aqui, todavia, que o totalitarismo soviético teve início com a repressão de Kronstadt ou que já naquela época seu aparecimento seria inevitável. “Muito se tem dito – comentou Victor Serge – que ‘desde o começo a semente do stalinismo já estava latente no cerne do bolchevismo’. Pois bem, nada tenho a objetar quanto a isso; apenas recordar que muitas outras sementes – milhares delas – vicejam no solo bolchevique. Quem viveu o entusiasmo dos primeiros anos da revolução vitoriosa sabe do que estou falando e jamais se esquecerá de todas as suas potencialidades inerentes. É muito cômodo julgar um homem pela doença que a autópsia revela – e que pode tê-lo acometido desde o nascimento -, mas seria um procedimento sensato?[21] Noutras palavras, no início da década de 1920, a sociedade soviética deparou-se diante de inúmeros caminhos que se abriam para as mais variadas direções. Todavia, como enfatizou Serge, uma profunda veia autoritária sempre esteve presente na teoria e práxis bolchevique. O elitismo congênito de Lênin, focado na insistente defesa de uma pequena vanguarda revolucionária e estrita disciplina partidária, bem como a repressão das liberdades civis e a validação da política do terror, imprimiram uma profunda marca no futuro desenvolvimento do Partido Comunista e do Estado soviético. Durante a guerra civil, Lênin justificou tais práticas como expedientes temporários requeridos pela situação de emergência. Acontece que, enquanto a situação de emergência se estendia a perder de vista, os alicerces totalitários do futuro regime eram solidamente edificados. Com a derrota de Kronstadt e a supressão da oposição de esquerda, a última reivindicação por uma democracia de trabalhadores era engavetada nos anais da história. De fato, se o totalitarismo não era de todo inevitável, depois da repressão aos marinheiros, ao menos surgiu como uma eventualidade bastante provável.

Após a morte de Lênin, em 1924, os bolcheviques mergulharam numa luta atroz pelo poder. A disputa atingiu seu clímax três anos depois, quando, para expulsar Trotsky e mandá-lo para o exílio, o Comitê Central recorreu à cláusula secreta da resolução aprovada pelo X Congresso, que tratava da unidade partidária. Ironicamente, quando Trotsky se opôs à tirania e ao burocratismo de Stalin, o fantasma de Kronstadt foi invocado pelos socialistas libertários que recordaram o papel do chefe do Exército Vermelho na repressão da rebelião. Em resposta, Trotsky alegou que não esteve diretamente envolvido na operação. “O fato concreto – escreveu em 1938 – é que eu não tive a menor participação na pacificação do levante de Kronstadt ou na repressão que se seguiu depois”[22]. Trotsky insistiu que na ocasião não saiu de Moscou, enquanto Zinoviev acertava as coisas em Petrogrado e que a repressão, na verdade, foi obra da Tcheca, conduzida por Dzerzhinsky, que não permitiu interferência de nenhum outro setor.

Em todo o caso, insistiu Trotsky, a rebelião precisava ser sufocada. Os idealistas sempre têm denunciado os “excessos” da revolução, que, na verdade, “emergem da natureza mesma das revoluções, em si mesmas, ‘excessos’ da história”. Kronstadt constituía “uma reação armada da pequena burguesia contra os rigores da revolução social e a severidade na ditadura do proletariado”. Se os bolcheviques não agissem com rapidez, a revolta podia tê-los apeado do poder e aberto as portas da contrarrevolução. Por acaso os críticos do governo negavam-lhe o direito de autodefesa ou de disciplinar efetivos militares insubordinados? Qual o governo toleraria um motim em suas forças armadas? Tínhamos de abrir mão de nosso poder sem resistir? O que os bolcheviques fizeram em Kronstadt, concluía Trotsky, foi uma “necessidade trágica”[23].

Mas os críticos de Trotsky não estavam totalmente convencidos. Em que pese todas as suas afirmações contrárias, o Comissário de Guerra e presidente do Conselho Revolucionário de Guerra assumiu toda a responsabilidade pela repressão de Kronstadt.  Trotsky esteve realmente em Petrogrado, de onde emitiu o ultimato de 5 de março. Além do mais, visitou Oranienbaum e Krasnaya Gorka e não foi pequena a sua participação na supervisão dos preparativos militares, senão, tão crucial quanto, foi a atuação de Zinoviev e Tukhachevsky. Aliás, como assinalou Dwight MacDonald, Trotsky nunca contestou as acusações de que os bolcheviques trataram a revolta com desnecessária intransigência e brutalidade. Assim sendo, cabe-se perguntar, em que medida houve um empenho efetivo da parte do governo para se chegar a uma resolução pacífica? É bem verdade que os brancos poderiam aproveitar as divisões internas do partido, mas não seria ainda mais perigoso a cristalização de uma ditadura impermeável à interferência das massas populares? Teria sido possível à facção stalinista ter usurpado tão facilmente o controle do partido se houvesse abertura para uma maior participação do povo nos assuntos do partido ou espaço para opositores das diversas tendências de esquerda?[24] De igual modo, Anton Ciliga desafiou os bolcheviques a provar que as forças reacionárias teriam se desprendido se Kronstadt não fosse subjugada. Seria uma hipótese possível, admitia Ciliga, mas o fato é que, independente de qualquer coisa, a revolução sucumbiu no ano de 1921[25].

No final, os mesmos que derrotaram Kronstadt caíram vítimas do sistema que haviam ajudado a criar. Trotsky e Zinoviev foram condenados como “inimigos do povo”, por colaborarem deliberadamente com a contrarrevolução. “O Judas Trotsky”, declarava um panfleto soviético de 1939, fez uma cortina de fumaça com a questão dos sindicatos enquanto apoiava Kronstadt e seus capangas, incluindo, os criminosos da guarda branca. Outro texto stalinista atribuía a responsabilidade pela revolta ao “mancebo de Trotsky, o Comandante do Sétimo Exército, Tukhachevsky,” [No original, protégé; segundo o dicionário virtual Collins, o termo de origem francesa possui uma conotação feminina e é empregado para denominar uma situação em que uma pessoa mais jovem é ajudada por alguém mais experiente. Optei por traduzir por “mancebo” – N.T.] e ao “velho trotskista Raskolnikov”, o chefe da frota do Báltico. Para aniquilar aos traidores, continuava o texto, o partido enviou Kliment Voroshilov, “verdadeiro leninista” e camarada de armas de Stalin (na realidade, desempenhou um papel menor como comissário no front de Kronstadt)[26].

Enfim, a revolução devorou, um por um, todos os seus protagonistas. Zinoviev, Tukhachevsky e Dybenko foram fuzilados quando do Grande Expurgo; Trotsky, assassinado no México por um agente da polícia Secreta Soviética; Raskolnikov e Lasevich cometeram suicídio. Muitos delegados do partido que estiveram em Kronstadt, incluindo Piatakov, Zatonsky e Bubnov, desapareceram nas prisões stalinistas. Kalinin foi um dos únicos que faleceu de morte natural, em 1946. Já os mártires de Kronstadt sobreviveram, eternizados na memória do povo, como os filhos inocentes da revolução[27].

Posfácio

Dos rincões interioranos, do recôndito das fábricas, carregando, nestas torrentes de homens e mulheres, a foice e a tocha, o martelo e o fuzil; vestido com trajes do camponês e o macacão do operário; com fome no estômago e febre no coração, a perseguir continuamente a Ideia, acerca-se o Átila da invasão moderna; com o nome genérico de proletariado, inundando com suas massas sequiosas os centros luminosos da Cidade utópica (…). Desta vez, não são trevas o que estes bárbaros oferecem ao mundo, é a luz.
(Joseph Déjacque, A Humanisfera – Utopia Anárquica)

Revolta da Chibata

Em todas as civilizações, o tempo glorificou reis e chefes, que em memória de seus feitos ergueram monumentos para eternizar o seu nome, forjado pelo saque e a violência da guerra, com o sangue de milhares de vítimas anônimas, para depois condená-los à ruína do passado. Das invasões dos bandos armados originaram-se os grandes Estados conquistares, ainda mais sanguinários que seus ancestrais primitivos. “No fundo, a conquista não é somente a origem, é também o objetivo supremo de todos os Estados, grandes ou pequenos, poderosos ou fracos, despóticos ou liberais, monárquicos, aristocráticos, democráticos, e até mesmo socialistas, supondo que o ideal dos socialistas alemães, o de um grande estado comunista, realize-se algum dia. (…) O que é o Estado senão a organização da força?” (Mikhail Bakunin, O Princípio do Estado).

Para além do encantamento das fantasias teóricas, resta a lei selvagem do mais forte, impondo-se com toda a sua verdade instintiva. Toda verborragia inútil, em torno de conceitos como divisão dos três poderes, Estado de direito, distinção entre Estado e governo, e tantas outras alegorias abstratas que povoam apenas as páginas dos livros e o discurso de pilantras mal-intencionados, dissimula na realidade a natureza una e essencialmente violenta do poder, que governa soberano, como um deus Janus, com suas duas faces invertidas: político e econômico.

Ao longo dos séculos, a luta pelo poder mobilizou os povos uns contra os outros para depois escravizá-los. No inconstante teatro de sombras da história, o único fato permanente é a relação social senhor e escravo, que atravessa as eras, imutável. Grandes multidões são dominadas pela força e submetidas à vontade de um grupo minoritário de usurpadores fortemente armados – assim como manadas inteiras de búfalos são subjugadas por uma pequena alcateia de lobos famintos. As massas escravizadas ainda hoje são obrigadas a renunciar à própria vida e proporcionar aos senhores que tudo possuem uma sobrevivência opulenta e luxuosa.

Dentre todos os sistemas escravistas, aparentemente o capitalismo não é o mais cruel. Certamente, é o mais injusto e perverso. Depois de consumada uma das escravidões mais degradantes e letais de todos os tempos, com a sujeição genocida dos povos ameríndios e africanos durante a fase do capitalismo comercial, a indústria inaugurou a infame escravidão infantil, que, como nunca antes, nem mesmo nos tempos do Faraó do Egito ou do rei Herodes, ofereceu diariamente em sacrifício milhares de crianças, a fim de saciar a fome de lucro das fábricas de Londres, Manchester e Liverpool. Em seguida, ao universalizar a chantagem do salário e, ao mesmo tempo, cultivar a miséria absoluta, o capital transformou escravos em mendigos a esmolar ao senhor o açoite benfeitor. Então, livrou-se de todos os intermediários e “libertou” os escravos para se venderem a si mesmo como coisas no mercado de trabalho. Enjaulado num profundo calabouço, o escravo esmurra o peito e grita orgulhoso: eu posso escolher minha prisão; agora, eu sou livre!  

Escravo: marcas de chicote

Em pleno século XXI, as cidades são a imagem e semelhança de um frenético formigueiro, onde o egoísmo é a única forma de socialização entre incansáveis formigas operárias. Pelas ruas e avenidas, galerias subterrâneas e vias aéreas, circulam todos os dias milhares e milhares de escravos desalmados, marchando como soldados autômatos e obedientes à cadeia de comando, talvez, esperando redenção, por saberem dizer apenas “sim, senhor”, à maneira do diligente soldado nazista que enviava sem pestanejar mulheres, crianças e homens para as câmaras de gás: eu só cumpria ordens. Mas nem sempre foi assim; um dia eles sonharam. Imagine-se no continente europeu do século XIX, o ano é 48, a revolução está na ordem do dia, na roda de conversa, nas fábricas, nas tavernas, nas praças, na rua, nas barricadas; agora, estamos em 64, e a fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores provoca calafrios nos industriais vestidos de fraque e cartola, que, reunidos nos salões, brindam temerosos taças de uísque; avancemos um pouco mais, para os anos de 71, quando a Comuna de Paris ousou lançar um assalto aos céus; agora, viremos o século, para aportarmos no Brasil de 1917, onde os trabalhadores entoam a Internacional na primeira Greve Geral no país dos latifundiários. Pela primeira vez, desde Spartacus, os escravos atreveram-se a romper as correntes. Tudo isso acabou. Espírito de época, história das mentalidades?

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Detentora do poder econômico, mas não do poder político, a burguesia pavimentou suas ambições com a criação de uma visão de mundo que suprimia a antiga cosmovisão feudal, enquanto preparava o terreno para sua dominação iminente. O Iluminismo foi a expressão máxima desse movimento. Sob o pressuposto da razão, o programa iluminista exprimia “o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber” (Theodor W. Adorno & Max Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento). Saber significava poder e poder, dominação da natureza. A promessa do pensamento iluminista consistia em livrar a humanidade do medo do desconhecido e confiá-la a condução de seu próprio destino, por meio da ciência e da verdade. O que, do ponto de vista político, equivalia a um heliocentrismo social, na medida em que deslocava para o centro do poder o princípio da laicização do Estado com a introdução do regime republicano. O direito divino dos reis e o privilégio de nascimento da nobreza dão lugar a ideia de soberania popular, na qual todo o cidadão é representado e igualmente súdito perante as leis. Os eventos que culminaram na Queda da Bastilha, em 1789, coroaram o Século das Luzes, ao decretar o fim do arbítrio e legar para a posteridade um amanhã auspicioso.

Queda da Bastilha

No fundo, a burguesia apenas lustrou a escravocracia com verniz novo e não houve mudança de fato na estrutura das relações sociais. Ao converter interesses particulares em universais, a legislação burguesa excluiu tudo o que não era burguês de seu sistema de privilégios, desnudando o império das leis de sua quimera de igualdade e exibindo sua verdadeira natureza: uma tirania de proprietários capitalistas. A vitória da revolução, todavia, contaminou as castas subalternas, que participaram ativamente do movimento revolucionário que derrubou o Antigo Regime. A lição que foi extraída daí era a de que era possível colocar a baixo a ordem social, que parecia imutável, e construir um novo tempo sobre alicerces realmente democráticos. A Revolução Francesa forneceu o modelo: para os utópicos, o planejamento racional da sociedade; para Proudhon, a forma jurídica e o contrato social; para Marx, a luta de classes; para Bakunin, a revolução social. Assim, das entranhas da revolução burguesa, surgia a sua negação dialética: o socialismo moderno.

O movimento socialista almejou então derrubar a ordem burguesa sem, contudo, abolir suas premissas ideológicas: o Iluminismo. Influenciados pelo cientificismo do século XIX, os socialistas depositaram uma fé cega na razão e, por conseguinte, na missão civilizatória inerente à ideia de progresso e evolução. Marx foi ainda mais longe. Ao inverter o idealismo de Hegel e descobrir o eixo racional da história na luta de classes, arrogou-se fundador do socialismo científico (algo que, num livro de juventude, A sagrada família, atribuiu a Proudhon). Ainda que Marx alegasse mais tarde que a expressão foi usada apenas em oposição ao socialismo utópico, suas implicações não podem ser negligenciadas – mesmo porque negá-la seria admiti-la retórica. Fato é que a vantagem do marxismo em relação aos outros socialismos sempre foi atribuída à sua superioridade científica. As consequências disso não podem ser menosprezadas. Toda ciência busca não apenas desvendar a essência dos fenômenos mas alterar seu curso natural em direção a uma finalidade previsível e controlada (por exemplo, graças ao conhecimento da aerodinâmica, foi possível inventar o avião). Tal é, em última análise, a pretensão da ciência da história de Marx; em tese, o materialismo dialético é o método que deve orientar a práxis revolucionária em direção à emancipação humana – a história deixa de seguir um movimento espontâneo para torna-se objeto dos sujeitos históricos. Em outras palavras, conhecendo-se a lógica interna do desenvolvimento histórico, não seria preciso esperar o despertar do vagaroso tempo natural ou uma conjuntura favorável para que os indivíduos organizados em classes sociais pudessem interferir diretamente no processo histórico, a depender do estágio das condições materiais de produção existentes, e liberar as potencialidades latentes de uma nova organização social prevista em teoria. Segundo Marx, na contemporaneidade, as forças produtivas do capitalismo engendraram uma capacidade inédita de produção de riqueza ilimitada; base econômica pela qual a igualdade de fato, não de direito, seria estabelecida pelos socialistas.

Karl Marx

A ciência da história, na perspectiva materialista, parte das análises corretas de Marx sobre o capitalismo na sua crítica à economia política (ainda hoje sempre atuais). Grosso modo, o trabalhador é destituído de seus meios de produção (leia-se, instrumentos de trabalho, propriedade) e obrigado a vender sua força de trabalho (leia-se, seu corpo) ao dono dos meios de produção, o burguês capitalista. Ao ser expropriado da riqueza social produzida pelo seu trabalho, no processo de extração de mais-valia, o operariado consciente da exploração de que é vítima cumpre o papel que outrora pertenceu à burguesia, erigindo-se à condição de classe revolucionária. Depois de conquistar o poder, em sua luta contra a burguesia, a classe operária institui a ditadura do proletariado, que deverá desaparecer tão logo a socialização dos meios de produção seja concluída. Enfim, no último estágio do desenvolvimento histórico, o comunismo, tanto o Estado como as classes sociais deixam de existir para dar lugar a administração das coisas (leia-se, máquinas, automação, computadores, robôs, inteligência artificial etc.). (O fim da história, tanto o Estado em Hegel quanto o comunismo em Marx, é, portanto, o ápice da razão iluminista).

Ressalva-se, de passagem, que o camponês não entra nessa conta, por mais miserável que seja, pois, enquanto não for convertido em assalariado, não é conceitualmente um proletário, já que ainda está ligado a seus meios de produção (terra, ferramentas etc.), sendo, portanto, politicamente conservador. A observação não é fortuita, uma vez que, como se verá mais abaixo, a questão camponesa esteve no centro dos acontecimentos da rebelião de Kronstadt. Nota-se também que, além do papel do Estado na revolução, a concepção estrita do agente revolucionário, que exclui não só o camponês, mas também o lumpesinato, aparecerá como mais um fator de divergência entre marxistas e anarquistas.

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Na luta pela hegemonia do movimento operário, assim como os irmãos gêmeos, Esaú e Jacó, rivalizavam pela primogenitura, a concepção estatista de socialismo colocou Marx em oposição direta às convicções de seu ex-amigo Bakunin. “Na Suíça, onde está refugiado, Bakunin atua nas sombras, exalando ódio e fúria. Vive quase em absoluto estado de inspiração prometeica, faustiana, titânica, demoníaca. Tal como Blanqui, mas sempre na clandestinidade, invisível, ele conspira sem parar. Quer desencadear paixões. Quer destruir o Estado, o Império, a República, a Sociedade. Tudo que esmaga o indivíduo e o aliena. Tudo, agora mesmo, imediatamente. A revolução que está preparando por decreto é o apocalipse, o fim dos tempos e da história. Sonho grandioso e pueril” (Henri Lefebvre, La proclamation de la Commune).

Mikhail Bakunin

Fazendo eco à crítica proudhoniana do Estado do povo, que se transformaria numa ditadura de cientistas, Bakunin jamais acreditou que, uma vez no poder, o proletário organizado em classe dominante pereceria pura e simplesmente; ao contrário, dizia, tenderia a perpetuar-se como uma nova casta de parasitas sobre um novo proletariado. Assim, a I Internacional foi palco do primeiro grande cisma do socialismo, dividindo em lados opostos anarquistas e marxistas, tendo os primeiros obtido maior influência nos países latinos de economia predominante agrária, e os segundos, nos países em vias de modernização, notadamente, de cultura germânica.

Curiosamente, Marx e Engels sempre apostaram suas fichas no potencial revolucionário da Inglaterra, país com sólido desenvolvimento industrial e operariado amadurecido – embora politicamente liberal. Mas, por uma destas ironias da história, a revolução marxista alçou voo e foi pousar na agrária e semifeudal Rússia! Desiludido com o fiasco da revolução no Ocidente e a repressão que se seguiu à Comuna de Paris, Marx voltou sua atenção para o último bastião da feudalidade e manteve intensa correspondência com os revolucionários russos, a despeito dos protestos de Engels. Se é verdade que Deus escreve certo por linhas tortas, não é menos verdade que Marx decifrou nas entrelinhas o sentido cabalístico e sinuoso da história quando vaticinou que a revolução proletária teria início na improvável Rússia czarista. Mas, se à Rússia faltavam as condições objetivas, ao menos toda a estrutura de um Estado autocrático onipresente estava montada. Em fevereiro de 1917, uma série de crises internas aliada ao flagelo da I Grande Guerra Mundial levou o czar Nicolau II a abdicar do trono, num episódio conhecido como Revolução Branca. O governo provisório de caráter republicano que assumiu o poder não atendeu a principal reivindicação da população russa de retirar o país da guerra. Pouco depois, Lênin regressa do exílio e lança suas famosas Teses de Abril, sob os slogans “Paz, Pão e Terra” e “Todo o poder aos sovietes”. Em outubro, os bolcheviques, seguidos de amplo apoio dos sovietes e da notável participação dos marinheiros de Kronstadt, tomam o poder durante a chamada Revolução Vermelha.

Era algo extraordinário, o mundo testemunhava a olhos vistos a marcha inexorável da razão na história descoberta pelo gênio humano! Mas o primeiro sinal de que algo não estava funcionando muito bem na engrenagem da dialética marxista-leninista apareceu com a repressão aos marinheiros de Kronstadt, “o orgulho e glória da revolução”. Até então, o maior foco de resistência, à esquerda, a Makhnovtchina, um movimento anarquista declaradamente antibolchevique, justificava ao governo, em virtude da razão de Estado, a necessidade de lançar mão de violência para garantir o status quo. Mas não era o caso dos marinheiros, que lutaram lado a lado com os bolcheviques e reverenciavam Lênin tal e qual a figura paterna de um czar. O único pecado de Kronstadt, no entanto, foi o de prestar apoio incondicional à greve dos operários de Petrogrado! Porém, tudo que não tocava o diapasão do bolchevismo era caluniado e taxado de “contrarrevolução”. Diante de um regime que tratava indiscriminadamente seus opositores como inimigo, os marinheiros atreveram-se a dar mais um passo à frente: sonharam com a Terceira Revolução.

Press Gang

Kronstadt estava muito longe de ser contrarrevolucionária. Até bem recentemente, os soldados que ocupavam os postos mais baixos da marinha sempre foram uma ralé. Em contraste com o alto oficialato, formado por elementos da nobreza, os marinheiros viviam a bordo em condições deploráveis, sujeitos a doenças, má alimentação, castigos corporais e constantes motins. Remadores acorrentados nas galés gregas e romanas podem nos oferecer uma imagem bastante rude da vida marítima, mas nem um pouco inusitada. Mesmo na modernidade, os marinheiros eram plebeus recrutados sem aviso prévio e por meio do uso da força. São bastantes conhecidos os métodos de arregimentação compulsória da Marinha Real Britânica em tempos de guerra pela Press Gang. No século XVIII, qualquer homem podia ser enquadrado e sequestrado nas ruas, lojas, oficinas, feiras e obrigado a servir de bucha de canhão para a glória da realeza britânica. Conta-se que até um noivo e seus convidados foram raptados na igreja bem no dia de seu casamento. Além disso, o chicote não era uma exclusividade dos barcos da Antiguidade; fazia parte da rotina e do estatuto disciplinar da marinha de todos os países. No Brasil, os marujos, geralmente ex-escravos recrutados pelo uso de força policial, muito sofriam com punições físicas a que estavam frequentemente submetidos. Em sua primeira viagem ao exterior, no ano de 1906, um marinheiro de nome João Cândido tomou conhecimento da rebelião do Encouraçado Potemkin, um ano antes. Em 1909, viajou novamente para fora e teve contato com a luta dos marinheiros ingleses por melhores condições. De volta ao Brasil, o “Almirante Negro”, como ficou conhecido, juntamente com Francisco Dias Martins, o “Mão Negra”, liderou, em 1910, a Revolta da Chibata.

A rebelião do Encouraçado Minas Gerais podia ser mais um capítulo no histórico de motins de Kronstadt. A mesma base social e o sistema de coações e obrigações irmanavam esses marinheiros sob um único ideal: justiça social. Em 1921, Kronstadt insurgiu-se contra as políticas emergenciais impostas pelo comunismo de guerra. Os marinheiros provinham de famílias camponesas e conheciam de perto as mazelas do confisco de alimentos e outras duras medidas de austeridade. Após três anos de guerra civil, a população russa estava em frangalhos e não suportava mais um período de escassez prolongada. Afinal, por que lutaram pela revolução? Os marinheiros só se rebelaram contra os bolcheviques porque queriam pôr em prática o lema prometido pelo próprio Lênin: “Todo poder aos sovietes”. Mas o governo foi cada vez mais tomando as feições de um terrível Leviatã: uma “monarquia” centralizada e absolutista.

Vladimir Lenin

No interregno de fevereiro e outubro, Lênin também escreveu O Estado e a revolução, texto que mais parece um manual ou código cifrado de sentido contrário de como fazer um Estado. No livreto, Lênin retoma as proposições de Marx e Engels bastantes esquecidas sobre o “definhamento” do Estado: “O Estado é ‘uma força especial de repressão’. Esta notável e profunda definição de Engels é de uma absoluta clareza. Dele resulta que essa ‘força especial de repressão’ do proletário pela burguesia, de milhões de trabalhadores por um punhado de ricos, deve ser substituída por uma ‘força especial de repressão’ da burguesia pelo proletariado (a ditadura do proletariado). É nisso que consiste a ‘abolição do Estado como Estado’. É nisso que consiste o ‘ato’ de posse dos meios de produção em nome da sociedade. Consequentemente, essa substituição de uma ‘força especial’ (a da burguesia) por outra ‘forca especial’ (a do proletário) não pode equivaler para aquela a um ‘definhamento’. Esse ‘definhamento’ ou, para falar com mais relevo e cor, essa ‘letargia’, coloca-a Engels, claramente, no período posterior ao ‘ato de posse dos meios dos meios de produção pelo Estado, em nome da sociedade’, posterior, portanto, à revolução socialista” (Lênin, Vladimir Ilyich. O estado e a revolução). E mais adiante: “O poder centralizado do Estado, característico da sociedade burguesa, nasceu na época da queda do absolutismo. As duas instituições mais típicas dessa máquina governamental são a burocracia e o exército permanente. (…). A burocracia e o exército permanente são ‘parasitas’ da sociedade burguesa, parasitas que tapam os poros da vida” (Idem).

Ora, “força especial de repressão”, “burocracia e o exército permanente”, mas do que se trata O Estado e a revolução senão de um espelho do príncipe bolchevique!

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Os próprios anarquistas, que talvez no início do século XX constituíssem a maioria no movimento socialista, saudaram com entusiasmo a Revolução Russa, muito embora esta representasse um tiro de misericórdia no movimento anarquista como um todo. A vitória dos bolcheviques e a fundação do Estado proletário pareciam confirmar a verdade científica das teses de Marx. A partir de então, os partidos comunistas começaram a pipocar como cogumelos nos mais diversos lugares do mundo e a estender seus tentáculos para muito além do movimento operário, como arte, ciência e filosofia, universidades, quartéis, cadeiras do parlamento etc. Em parte, o próprio intelectualismo de Marx e a concepção de vanguarda de Lênin conferiam um papel de liderança a uma minoria de intelectuais que deveria guiar as massas de trabalhadores braçais em sua missão histórica para a realização da sociedade comunista.

O êxodo dos socialistas para setores que antes só eram ocupados pela pequena e grande burguesia, em que pese o embaraço, não consumou o divórcio definitivo entre o socialismo e os trabalhadores. Este viria com o desfecho trágico da Guerra Civil Espanhola, quando, por meio de um acordo tácito estabelecido entre as grandes potências democráticas (Inglaterra e França), a URSS e os países do eixo nazifascista, o terreno ficou livre para o general Franco consolidar seu golpe de Estado, o que representou, num plano geral e em longo prazo, uma série de capitulações que minaram pouco a pouco a revolução mundial. Pouco depois, o próprio bloco comunista sofreria abalos sísmicos. As denúncias dos crimes do stalinismo por Nikita Kruschev, a Revolução Húngara e a Primavera de Praga provocaram uma debandada nas fileiras dos partidos comunistas do mundo todo. Os mais renitentes ainda culparam o “acidente” Stalin por perverter a grande obra do materialismo histórico. A verdade é que a situação não podia ser pior por trás da cortina de ferro. Desgraçadamente, as transformações nas condições materiais de vida não remodelaram a consciência das massas e, quando a economia soviética entrou em crise nos anos 80, em breve as penosas filas da mercearia, da padaria, das feiras, do mercado negro etc. seriam substituídas pelas filas quilométricas na lanchonete McDonald’s. (Não é difícil entender porque 66% da população russa hoje se diz lamentar o colapso da URSS, conforme pesquisa noticiada e publicada no site Russia Beyond, em dezembro de 2019).

URSS: 1990

No apagar das luzes do século XX, a Queda do Muro de Berlim, em 1989, simbolizou o fracasso da grande aventura iniciada pelo iluminismo, a experiência da história, e legou para o século XXI um horizonte sombrio e pessimista. O espírito de Hegel ainda tentou assombrar o mundo através de uma aparição patética e derradeira, encarnando o fim da história na nova ordem mundial unipolar. Mas os atentados de 11 de setembro de 2001 apontaram para uma direção muito diferente daquela retratada pela ficção científica hollywoodiana, em sua plácida odisseia no espaço. A pax americana, isto é, a paz mundial imposta pelo porrete do Estado policial do governo único, pouco durou. Na verdade, o que se erguia como um deus todo-poderoso e senhor absoluto dos céus e da terra era o capital, que passava a conciliar todas as contradições, antinomias, oposições, dissonâncias, incongruências, divergências, enfim, todas as diferenças sob a batuta da mercadoria, ainda que de maneira abstrata e fetichista, enquanto que, no mundo real, onde as coisas acontecem de verdade, semeava a guerra de todos contra todos.

O período dos últimos dois séculos, canhestramente esboçado por mim, que se inicia com a Queda (simbólica) da Bastilha e termina com Queda (real) do Muro de Berlim, eu passei a denominar, para fins de meu próprio entendimento, de “Era das Utopias”. O novo ciclo que se inicia desde então, eu tenho chamado, muito a contragosto, de “Era da Distopia”. O termo me parece relativamente adequado, porque diz respeito a uma completa ausência de esperança, de utopias. A sociedade distópica é o pesadelo do fascismo desprovido de sua caricatura nazista e normalizado pela sua máxima característica: “Viva a morte, abaixo a inteligência!” Quando Adorno e Horkheimer perguntam-se no Prefácio da Dialética do esclarecimento por que a humanidade, ao invés de alcançar um sentido verdadeiramente humano, está afundando numa nova barbárie, a questão fundamental que se coloca é: o que deu errado no projeto iluminista? A ciência inaugurou uma nova idade das trevas, com a bomba atômica, a poluição e destruição do meio ambiente, a devastação da natureza, o aquecimento global, a peste globalizada (pandemias), o controle absoluto sobre os indivíduos, e não resolveu a desigualdade social e a miséria extrema, ao contrário, intensificou a concentração de renda em níveis inauditos. A panaceia dos filósofos iluministas e de todas as gerações que os sucederam revelou-se, no fim, tão opressiva, fetichista, irracional e repleta de incertezas quanto o obscurantismo do passado. A ciência criou novos medos, novos dogmas, novas mistificações e não solucionou os problemas essenciais da humanidade. Ademais, a ciência tornou-se um novo tribunal do Santo Ofício, na defesa intransigente do establishment.

Lavoratori! (pernacchia)

A distopia é o mundo da terra plana e da luta das narrativas; da religião sem Deus e do fundamentalismo do deus mundano, o dinheiro. Todos têm seu lugar ao sol na distopia, desde que possam pagar por isso e se adequar a algum nicho de mercado. Nem o socialismo escapou do canto da sereia da industrial cultural, tornando-se rótulo de vil mercadoria. Mas se valor econômico congrega, harmoniza; o cotidiano separa, dilacera. A sociedade de consumo despedaça a humanidade em infinitos átomos de inumanidade que se repelem. Como diz a música, cada um no seu quadrado! O respeito à diferença é a indiferença, a segregação, a intolerância, o ódio, a violência. Como cristãos que não seguem o único mandamento ensinado por Cristo, “ame seu inimigo”, a dissimulação é o único valor moral autêntico. Neste grande espetáculo de falsidades, partidos de esquerda e direita dançam a música orquestrada pelo capital financeiro, seguindo o ritual em que damas e cavalheiros trocam de pares conforme o comando da quadrilha. Lacaios a serviço das oligarquias, alpinistas sociais inescrupulosos, revezam-se como administradores da miséria do povo e dos lucros bilionários de acionistas e especuladores da dívida pública: alternância de poder, belas palavras para vilania! Quanto aos sindicatos, viraram máfias sem qualquer representatividade com os verdadeiros interesses dos trabalhadores, a não ser de enriquecer dirigentes corruptos. Até mesmo o anarquismo, que perdeu todo o lastro com o proletariado e os movimentos sociais, refugiando-se no diletantismo das classes médias, busca ocupar espaço numa instituição (pública ou privada) que sempre foi dominada por brilhantes intelectuais marxistas, a universidade, através de uma reabilitação – pasmem! – do positivismo – diga-se, de passagem, escola filosófica que foi a coluna vertebral do exército brasileiro e emprestou o lema à bandeira do Brasil: “Ordem e Progresso”. Seja como for, tanto marxistas como anarquistas há muito abandonaram o chão de fábrica para se instalar nas confortáveis cadeiras universitárias, limitando-se a ministrar palestras e seminários para poucos iniciados e a reproduzir todos os vícios e afetações deste oráculo do mundo moderno. Ademais, neoliberais roubam e profanam as insígnias do anarquismo com a mácula do capitalismo, aumentando ainda mais a confusão, numa conjuntura em que a direita ataca o sistema e a esquerda aparece comodamente adaptada às categorias burguesas. Enquanto isso, sob esse poço de mediocridade, no andar de baixo, na base da pirâmide, multidões escravizadas, verdadeiras bestas de carga, orgulhosas de sua ignorância, dóceis com o patrão, hostis com os iguais, carregam nas costas um pesado Palácio de Versalhes da pós-modernidade, amargando uma vida miserável, subsistindo como instrumentos falantes sem ter o que falar, brutalizados pelo trabalho, sem direito a nada, alheios a tudo, jogados à própria sorte, desamparados, humilhados, injustiçados, roubados e oprimidos pelas “forças especiais de repressão” do Estado democrático de direito!

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Também tenho definido o intervalo entre a publicação do livro de Proudhon O que é a propriedade? (1840) e a Revolução Espanhola (1936-1939) como O Século do Anarquismo. O movimento anarquista nunca foi um bloco coeso e sempre existiram muitas correntes divergentes em torno de seus princípios fundamentais. Porém, a única tendência a obter êxito indiscutível foi a semente plantada por Bakunin na Espanha, que criou raízes com o federalismo, cresceu com o anarcossindicalismo e frutificou com o anarcocomunismo. Infelizmente, a única experiência efetiva e de grandes proporções do anarquismo, as coletividades libertárias na Espanha, tem sido negligenciada pelos estudiosos e adeptos anarquistas, que parecem se deter apenas em estéreis especulações de ordem moral e metafísica a encarar o fato de que o anarquismo só exerceu protagonismo histórico enquanto esteve ligado aos movimentos populares.

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Na Era da Distopia, somente a transfiguração de todos os valores, a negação de tudo que já existiu até aqui, sem reservas, nem concessões, sejam quais forem, um recomeçar do zero, uma metamorfose radical, um renascer poderão resgatar um novo sentido de humanidade, a partir de uma existência individual e social afirmativa, que se erguerá dos destroços do mundo desmoronado, desafiando as leis naturais, juntamente com criação deste novo planeta fraternal que surge triunfante entre as infinitas estrelas do universo.

À destruição!

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Hoje é Dia do Trabalho, gostaria de aproveitar a oportunidade e pedir mais um pouco de atenção, na certeza de que serei atendido, para relembrar um episódio que, se não me falha a memória, li em alguma das publicações do Edgar Rodrigues. Era Primeiro de Maio e o grande Edgard Leuenroth saiu para celebrar as derrotas e conquistas da classe trabalhadora. Foi aos lugares de costume, mas não encontrou seus antigos camaradas. A bem da verdade, não encontrou ninguém. Os sindicatos estavam fechados, as fábricas vazias, os centros de cultura já não mais existiam. Naquela data tão especial para todos os de sua geração, Leuenroth descobriu-se completamente só. As multidões de transeuntes passavam por ele sem sequer o notar, displicentes como estavam, num dia de feriado. Entristecido, o velho anarquista decidiu voltar para casa e por um destes acasos do destino (ou não) entrou na rua em que ficava a sede do antigo Partidão. Ao reconheceram Leuenroth, que passava cabisbaixo, melancólico, os comunistas saíram rapidamente da sede e foram ao seu encontro. “Por que está sozinho? Para onde está indo, camarada?” perguntaram-lhe, com uma respeitosa admiração. Leuenroth explicou que só queria comemorar o dia do trabalhador, como não encontrou ninguém, retornava para casa. Então os membros do PCB o convidaram para passar o Primeiro de Maio com eles, convite que Edgar Leuenroth prontamente aceitou.

Deem flores aos rebeldes que falharam!

Jean Fecaloma


[1] Berkman, The Kronstadt Rebellion, págs. 39-40. Um autor menchevique fez a mesma observação em Sotsialisticheskii Vestnik, 5 de abril de 1921, pág. 5. Como disse Marx uma vez: “Ficar na defensiva é a morte de qualquer levante armado”.

[2] Lenin, Polnoe sobranie sochinenii, XVI, 452-53.

[3] Ibid., XIII, 333. Cf. Carr, The Bolshevik Revolution, II, 280-82.

[4] Slepkov, Kronshtadtskii miatezh, pág. 15.

[5] Lenin, Polnoe sobranie sochinenii, XLIII, 138, 387.

[6] Ver Carr. The Bolshevik Revolution, II, 277-79.

[7] Desiatyi s’ ‘ezd RKP(b), pág. 404.

[8] Ibid., pág. 413.

[9] Ibid. pág. 468. Com relação à decisão de abolir as requisições compulsórias, ver ibid., págs. 608-609.

[10] Ibid., págs. 37-38, 406. Cf. Schapiro, The Origin of the Communist Autocracy, pág. 311.

[11] Pukhov, Kronshtadtskii miatezh, págs. 185-205; White, The Growth of the Red Army, págs. 191-93, 246-49.

[12] Desiatyi s’ ‘ezd RKP(b), pág. 625.

[13] Boldin, “Men’sheviki v Kronshtadtskom miatezhe”, Krasnaia Letopis’, 1931, No 3, pág. 28; Katkov, “The Kronstadt Rising”, St. Antony’ s Papers, No 6, pág. 13.

[14] Lenin, Polnoe sobranie sochinenii, XLIII, 241.

[15] Desiatyi s’ ‘ezd RKP(b), pág. 118; Schapiro, The Origin of the Communist Autocracy, pág. 316.

[16] Desiatyi s’ ‘ezd RKP(b), págs. 34-35.

[17] Ibid., pág. 276.

[18] Ibid., págs. 571-76.

[19] Degras (comp.), The Communist International, I, 213.

[20] Goldman, Trotsky Protests Too Much, pág. 7.

[21] Serge, Memoirs of a Revolutionary, págs. XV-XVI.

[22] L. Trotskii, “Eshche ob usmirenii Kronshtadta”, Biulleten’ Oppozitsii, outubro de 1938, pág. 10; The New International, agosto de 1938, págs. 249-50.

[23] Trotsky, “Hue and Cry Over Kronstadt”, The New International, abril de 1938, págs. 103-105; Trotsky, Stalin, Nova York, 1946, pág. 337. A observação de Trotsky, de que os excessos “provêm da natureza mesma das revoluções”, recorda a frase de Engels de que uma revolução é “a coisa mais autoritária de que se possa imaginar”.

[24] The New International, julho de 1938, págs. 212-13.

[25] Anton Ciliga, The Kronstadt Revolt, Londres, 1942, pág. 13.

[26] Bol’shaia sovetskaia entsiklopediia, 1a ed., XXXV, 222; 2a ed., XXIII, 484; O. Leonidov, Likvidatsiia Kronshtadtskogo miatezha (mnart 1921 g.), Moscou, 1939, págs. 8-9, 139; K. Zhakovshchikov, Razgrom Kronshtadtskogo kontrrevoliutsionnogo miatezha v 1921 godu, Leningrado, 1941, pág. 62. Cf. Abramovitch, The Soviet Revolution, pág. 209.

[27] Cf. Mett, La Commune de Cronstadt, pág. 6; e I. N. Steinberg, In the Workshop of the Revolution, Nova York, 1953, pág. 300.