O presente artigo faz parte de uma coletânea que reúne vários ensaios de Paul Mattick, intitulada “Comunismo Anti-Bolchevique”.
Karl Kautsky morreu em Amsterdam, no fim de 1938; contava então 84 anos. Viu-se nele o mais eminente teórico do marxismo após a morte dos seus fundadores, e não se exagerava ao dizer que fora o mais representativo entre todos, Kautsky reuniu em si, e de forma bem clara, não só o lado revolucionário como também o lado reacionário deste movimento. No entanto, se Engels, perante a sepultura de Marx, se sentia com direito a declarar que o seu amigo “fora, acima de tudo, um revolucionário” ninguém, em contrapartida, teria tido a ideia de dizer outro tanto sobre o seu discípulo mais célebre. Ao consagrar-lhe um artigo necrológico. Friedrich Adler dizia:
“Teórico e homem político. Kautsky ficará para sempre exposto à crítica; mas possuía um espírito aberto e toda a sua vida se conservou fiel a esse mestre supremo que foi a sua consciência[1]”.
A consciência de Karl Kautsky formou-se na época em que a social-democracia alemã tomava forma. Austríaco de nascença, era filho de um artista plástico ligado ao Teatro Imperial de Viena. Desde 1875, atingida então a maioridade, passou a colaborar na imprensa operária. Porém, seria só em 1880 que viria a aderir ao partido social-democrata alemão e, daí em diante, dedicou-se, segundo as suas próprias palavras, “a evoluir em direção a um marxismo consequente, metódico”[2]. Foi a leitura do Anti-Dühring de Engels que, como a muitos outros, o viria a atrair para aquela via e ficou a dever uma boa parte da sua orientação a Eduard Bernstein, na época secretário do “milionário” socialista Höchberg (que financiou a publicação das suas primeiras obras). Graças aos seus escritos, Kautsky depressa atingiu notoriedade no seio do movimento operário; em 1883 fundou a revista Die Neue Zeit que, sob a sua direção, se tornaria o principal órgão teórico da social-democracia alemã.
A obra de Kautsky não deixa de surpreender não só pela multiplicidade de temas que nela são abordados, mas também pela sua extensão. Uma bibliografia deste autor, ainda que resumida, ocuparia páginas e páginas. Tudo quanto no decurso dos últimos sessenta anos teve importância para o movimento socialista, ou pareceu tê-la, encontra-se na obra de Kautsky. Esta mostra bem que o seu autor foi fundamentalmente um professor e que, considerando a sociedade de um ponto de vista de mestre-escola, estava perfeitamente fadado para a função de inspirador, que foi a sua, num movimento cuja grande preocupação fora sempre a de educar os operários e, simultaneamente, os capitalistas. Na sua qualidade de especialista dos “assuntos teóricos” do marxismo, Kautsky podia parecer mais revolucionário do que conviria ao movimento onde militava. Passava por um marxista “ortodoxo”, e esforçava-se por conservar a herança de Marx, à semelhança de um vigilante tesoureiro sobre os fundos da organização. Contudo, o lado “revolucionário” dos seus ensinamentos não sobressaía como tal senão na medida em que contrastava com a ideologia burguesa geralmente professada antes da guerra. Em contrapartida, e em relação às teorias elaboradas por Marx e Engels, as de Kautsky não iam além de um regresso a formas de pensamento menos elaboradas, assim como a uma concepção menos clara do sistema capitalista e suas implicações. Guardião do tesouro marxista, jamais suspeitou de tudo o que ele continha.
Em 1862, numa carta a Kugelmann, Marx exprimia a esperança de que as menos “populares” das suas obras, escritas com vista a revolucionarem a ciência econômica, acabassem por encontrar o caminho do grande público; uma vez colocada a base científica, a vulgarização será fácil, acrescentava aquele.
“Foi em 1883, escreve Kautsky, que descobri a minha vocação: difundir, vulgarizar e, na medida em que fosse capaz, aprofundar os resultados obtidos por Marx no plano do pensamento e da investigação”[3].
Contudo, mesmo Kautsky, mesmo o maior entre os maiores divulgadores do marxismo, viria a desiludir as esperanças do seu mestre; as simplificações a que se entregou conduziram-no a uma nova forma de mistificação que não permitem compreender nada do verdadeiro caráter da sociedade capitalista. No entanto, apesar deste tratamento, as teorias de Marx eram ainda de longe superiores a todas as teorias econômicas e sociais burguesas, e os escritos de Kautsky galvanizaram centenas e centenas de trabalhadores conscientes. Kautsky, na verdade, exprimia as suas próprias ideias, e numa linguagem mais próxima da linguagem dos trabalhadores do que a de um pensador mais independente, como Marx. Apesar de este e mais do que uma vez haver mostrado os seus dons de poder e clareza de expressão, não era, no entanto, suficientemente “mestre-escola” para sacrificar às necessidades de propaganda a satisfação dos seus caprichos intelectuais.
É necessário compreender num sentido mais lato o que acima dissemos de Kautsky: que ele também encarnou os aspectos “reacionários” do antigo movimento operário. Na verdade, na origem destes elementos reacionários esteve um condicionamento objetivo e se Kautsky, e o antigo movimento operário com ele, acabaram por, subjetivamente, se colocarem como defensores da sociedade capitalista, não o fizeram antes de um longo período de confrontação com uma realidade hostil. Como já Marx o dizia em O Capital:
“O movimento ascendente imprimido pela acumulação do capital ao preço do trabalho, prova que a corrente de ouro com que o capitalista prende o assalariado, e que este mesmo não deixa de fabricar, é já suficientemente grande para permitir uma diminuição da tensão”[4].
Em consequência da melhoria das condições de trabalho e da subida dos salários, tornada possível pela progressiva formação do capital, as lutas operárias transformaram-se em fator de desenvolvimento capitalista. Do mesmo modo que a concorrência, elas tiveram como resultado acelerar a acumulação do capital e, com isso, o ritmo do “progresso”. Tudo o que os operários ganhavam era compensado por uma exploração aumentada, que por sua vez permitia uma expansão ainda mais rápida.
Assim, a própria luta de classes do proletariado acabava por servir os interesses, não certamente do capitalista individual, mas do capital em geral. As vitórias operárias nunca deixaram de ser vitórias à Pirrus. Quanto mais os operários ganhavam, mais o capital se engrandecia. Cada aumento na “parte dos operários” contribuía para aumentar o fosso entre salários e lucros. Ainda que aparentasse uma ascensão em flecha, o poder do movimento operário escondia, na realidade, um contínuo enfraquecimento em relação ao desenvolvimento do capital. As “conquistas” dos trabalhadores, nas quais Eduard Bernstein saudava os começos de uma nova era para o capitalismo, apenas podiam levar, numa tal esfera de ação social, à esmagadora derrota da classe operária, quando o capitalismo passou da expansão à estagnação. E a liquidação do antigo movimento operário, espetáculo a que Kautsky não viria a ser poupado, demonstrou que as milhares de derrotas sofridas no período ascendente do capitalismo, ainda que celebradas como outros tantos triunfos do gradualismo, não passavam de um gradualismo da derrota operária, num campo de ação onde a vantagem estava seguramente do lado da burguesia. Contudo, o revisionismo de Bernstein, derivado do empirismo burguês e que consistia em tomar as aparências por realidade, ainda que denunciado inicialmente por Kautsky, acabaria igualmente por servir de trampolim a este último. Sem a prática não revolucionária do antigo movimento operário, cuja teoria foi feita por Bernstein, jamais Kautsky teria encontrado o movimento e a base material que lhe permitiram passar por um grande teórico marxista.
Esta situação objetiva que, vimo-la, transformou os sucessos do movimento operário em outras tantas etapas na via da sua liquidação final, criaram uma ideologia não revolucionária mais bem adaptada que a antiga à situação imediata, e destinada a ser vilipendiada mais tarde como manifestação de social-reformismo, de oportunismo, de social-patriotismo, além de descarada traição. Mas esta “traição” não incomodava absolutamente nada as suas pretendidas vítimas. Pelo contrário, a maioria dos operários organizados aprovavam esta mudança do movimento socialista porque estava de acordo com as suas aspirações, nascidas no contexto de um capitalismo em pleno desenvolvimento. As massas eram tão pouco revolucionárias como os dirigentes que possuíam, e ambos não procuravam senão participar no progresso capitalista. Organizavam-se não só com vista a obterem uma parte maior do produto social, mas também para melhor se fazerem ouvir no plano político. Aprenderam a pensar em termos de democracia. Começaram a colocar-se na posição de consumidores exigindo o acesso aos benefícios da cultura e da civilização. Não será significativo que Franz Mehring tenha achado bem terminar a sua monumental História da Social-democracia Alemã por um capítulo que intitulou “A Arte e o Proletariado”? Ciência para os operários, escolas para os operários, participação operária em todas as instituições da sociedade capitalista, eis os desejos reais do movimento operário. Longe de se exigir o fim da ciência capitalista, reclamavam sábios de origem operária; em vez de se querer abolir as leis capitalistas, formavam-se juristas operários. A proliferação de historiadores do movimento operário, poetas, economistas, jornalistas, médicos, dentistas, todos ao serviço dos operários, assim como a multiplicação de deputados socialistas e de burocratas sindicais, era o índice mais evidente da triunfal socialização da sociedade, a qual se tornava simultaneamente, e cada vez mais, a sociedade dos operários. Tudo em que se pudesse participar de um modo crescente, não tardava a ser julgado digno de defesa. Para o antigo movimento operário, a expansão do capital significava bem-estar e consideração; esta era uma profunda convicção, ao mesmo tempo consciente e inconsciente. Limitando-se a atuar no contexto do capitalismo, as organizações operárias viriam pouco a pouco a fazer seus os problemas da rentabilidade do capital, contentando-se em opor uma resistência puramente verbal às frenéticas rivalidades que a concorrência suscitava entre os países capitalistas. É claro que em primeiro lugar o movimento apenas pretendia uma “pátria melhor” que não fosse só das outras classes, mas que também pertencesse aos trabalhadores, acabando por pronunciar-se pela defesa do “adquirido” e, por fim, muito simplesmente, pela defesa da pátria, “tal como ela é”.
Os bons sentimentos que os discípulos de Marx passaram a demonstrar face à sociedade burguesa não eram já unilaterais. As suas lutas a favor da classe operária haviam ensinado à burguesia a necessidade de “compreender a questão social”. A classe dirigente ligava-se assim cada vez mais a uma interpretação materialista dos fenômenos sociais, donde uma imbricação progressiva de ideologias professadas em ambas as partes, que contribuía para fazer reinar uma “harmonia” que, na verdade, se fundava na ausência de harmonia, no antagonismo das classes no seio do capitalismo ascendente. Todavia, os “marxistas” ansiavam, ainda mais do que a burguesia, por “aproveitar as lições do inimigo”. Foi muito antes da morte de Engels que o revisionismo se começou a desenvolver. De resto, os próprios Engels e Marx deveriam, mais do que uma vez, evidenciar sinais de cedência, deixando-se então embriagar pelos sucessos aparentes do momento. Mas o que neles não passava de uma modificação, puramente provisória, das suas ideias de base, essencialmente coerentes, era elevado ao nível de “crença” e de “ciência” por este movimento que identificava agora o progresso com o caixa dos sindicatos cada vez mais cheios, e com as vitórias eleitorais cada vez mais amplas.
Depois de 1910, a social-democracia viu-se dividida em três grandes tendências: os revisionistas, partidários declarados do imperialismo alemão, a “esquerda”, ilustrada por nomes como Luxemburgo, Mehring, Liebknecht e Pannekoek; o “centro”, que se dizia fiel às opções tradicionais mas que de fato apenas o era no plano da teoria, dado que na prática a social-democracia era obrigada a aceitar o “possível” ou, em outros termos, a tática preconizada por Bernstein. Opor-se a esta última não podia significar senão uma coisa: erguer-se contra a prática da social-democracia no seu conjunto. A “esquerda” não se afirmou como tal senão a partir do momento em que começa a denunciar a social-democracia como uma parte integrante da sociedade capitalista. Seria, no entanto, necessário mais qualquer coisa além de uma batalha de ideias para fazer desaparecer as divergências que opunham os dois campos: elas foram afogadas em 1919 com o sangue do grupo Spartakus, aquando da repressão terrorista que Noske lançou.
Uma vez a guerra declarada, a “esquerda” encontrou-se na prisão e a “direita” no Q.G. do Kaiser. Quanto ao “centro”, dirigido por Kautsky, acabou com todos os problemas do movimento socialista declarando que nem a social-democracia alemã nem a Internacional poderiam continuar em atividade enquanto a guerra durasse, na medida em que uma e outra eram instrumentos essencialmente para os períodos de paz.
“Esta é, escrevia Rosa Luxemburgo, uma atitude de eunuco. Agora que Kautsky o completou, poder-se-á ler no Manifesto Comunista: ‘Proletários de todos os Países, uni-vos em tempo de paz, matai-vos em tempo de guerra!’”[5].
A guerra e as suas repercussões pulverizaram o mito da “ortodoxia” marxista de Karl Kautsky. Depois de haver sido um dos seus mais fervorosos discípulos, até Lênin foi obrigado a desviar-se categoricamente do seu mestre. Como escrevia a Chliapnikov em Outubro de 1914:
“Rosa Luxemburgo tinha razão quando afirmava, desde há bastante tempo, que existe em Kautsky a ‘lisonja do teorizador’, ou, em termos mais simples, a servilidade perante a maioria do partido, perante o oportunismo. Nada há de mais prejudicial e perigoso para a independência ideológica do proletariado do que esta baixa presunção e abjeta hipocrisia de Kautsky, de tudo pretender escamotear e disfarçar, de querer tranquilizar por meio de sofismas e de um palavreado pseudocientífico a consciência que desperta nos operários”[6].
Desde que o movimento operário adquiriu um aspecto “respeitável”, foi invadido por uma multidão de intelectuais, todos inclinados a conservarem as suas tendências para a colaboração de classes. Kautsky distinguia-se destes personagens por um amor mais vivo pela teoria, que, no entanto, se recusava a confrontar com os fatos, à semelhança de uma mãe que, por amor a um filho, o pretende manter a salvo das “vergonhosas realidades da vida”. Kautsky não podia situar-se como revolucionário a não ser que mantivesse o papel de teórico e abandonava aos outros, com a maior complacência, o cuidado de responderem pelas questões práticas do movimento. E isso era cair na automistificação. Ao pretender-se teorizador “puro”, Kautsky deixava simultaneamente de ser um teórico revolucionário, ou mais exatamente, não podia tornar-se um revolucionário. Desde que, acabada a guerra, o pano se levantou sobre uma batalha real entre as forças do socialismo e as do capitalismo, as suas teorias afundaram-se porque estavam, na prática, separadas do movimento que diziam representar.
Ainda que houvesse tomado posição contra as demonstrações de um chauvinismo excessivo que o seu partido prodigalizava, e se abstivesse de partilhar do entusiasmo belicista dos camaradas Ebert, Scheidemann e outros, ainda que igualmente se tivesse recusado a pronunciar-se pelo voto incondicional dos créditos de guerra, não deixou, no entanto, de ser obrigado a destruir com as próprias mãos o mito da sua ortodoxia marxista, mito este engendrado e alimentado por dez anos de discursos, de livros, de brochuras e de artigos. Ele, que em 1902 proclamava[7] que o mundo entrara numa época de lutas proletárias pela conquista do poder, considerava semelhante pretensão como pura demência quando os operários começaram a tomar os seus propósitos a sério. Ele, que combatera com tanto ardor o ministerialismo dos Millerand e dos Jaurés na França, viria a exaltar, vinte anos mais tarde, a política de coligação ministerial seguida pela social-democracia na Alemanha, e com os mesmos argumentos dos seus antigos adversários. Ele, que desde 1909 se interrogava sobre o “caminho do poder”, acalentava depois da guerra o sonho de um “ultraimperialismo” que faria reinar a paz no mundo, e viria a passar o resto da sua existência a reinterpretar o seu passado, com vista a justificar a ideologia de colaboração de classes que professou desde então. Na sua última obra, exprimia-se assim:
“No decurso da sua luta de classe, o proletariado transforma-se gradualmente em vanguarda para a reconstrução da sociedade, objetivo que por sua vez passa a ser também o das categorias sociais não proletárias. Isto em nada trai a ideia da luta de classes. Sustentei muitas vezes este ponto de vista antes da aparição do bolchevismo, como o testemunho por exemplo o artigo ‘As classes. Interesse particular e interesse geral’ que publiquei em 1903 na Neue Zeit e onde dizia, em conclusão, que a luta de classe do proletariado apenas deseja a solidariedade da humanidade e jamais a solidariedade das classes”[8].
De fato, é absurdo ver em Kautsky um “renegado”. É não compreender nada da teoria e da prática social-democrata, nem tão pouco da do próprio Kautsky. Este apenas desejou uma única coisa durante a sua vida: ser um bom servidor, sem outro objetivo na vida senão o de satisfazer os seus mestres, Marx e Engels. Do primeiro só falava no mais puro estilo social-democrata e filistino, com a ajuda de epítetos do gênero “espírito superior”, “Olímpico”, “Júpiter troante” e outros. Evocando o primeiro encontro com o seu herói, gabava-se de não ter tido junto dele o “acolhimento desdenhoso que Goethe reservara ao seu jovem colega Heine”[9]. Tudo se passa como se Kautsky houvesse jurado nunca desiludir Engels, a partir do momento em que este o passou a considerar, a Kautsky e Bernstein, como “irrepreensíveis representantes da teoria de Marx”. E, na verdade, durante a maior parte da sua vida, Kautsky viria a comportar-se como um ardente defensor da “carta”. Ele era certamente sincero ao lamentar-se, numa carta a Engels, que
“Quase todos os intelectuais do partido (…) sonham apenas com colônias, ideias nacionalistas, ressurreição do velho passado germânico, unicamente preocupados em antecipar-se ao governo e substituir a luta de classes pelo poder da ‘Justiça’, além de manifestarem a sua aversão pela concepção materialista da história — esse dogma marxista, como lhe chamam”[10].
Engels compreendia bem as causas desta precoce “degenerescência, do movimento. Respondendo a Kautsky declarava que
“O desenvolvimento capitalista burguês se revelara mais forte que a contrapressão revolucionária; para que um novo levantamento aconteça será necessário, por exemplo, que a Inglaterra perca o domínio do mercado mundial ou que uma ocasião revolucionária surja bruscamente na Franca”[11].
Mas nada disso veio a acontecer. Os socialistas deixaram de contar com a revolução. Deste modo, Bernstein, não querendo decepcionar o homem a quem mais devia, esperou que Engels morresse para proclamar que “o objetivo não é nada, o movimento é que é tudo!”. É preciso acrescentar, além disso, que o próprio Engels, no fim da sua vida, contribuiu para reforçar a corrente reformista. Tratava-se de uma quebra individual, mas os seus epígonos aproveitaram a sua atitude e consideraram-na como um elemento de força. De tempos em tempos, no entanto, Marx e Engels voltavam às posições mais intransigentes do Manifesto Comunista e de O Capital, como por exemplo na Crítica ao Programa de Gotha, cuja publicação foi adiada para que não perturbasse os fazedores de compromissos. A burocracia do partido só cedeu ao fim de uma longa luta, o que levou Engels a dizer um dia:
“Na verdade, é uma excelente ideia colocarem a ciência socialista alemã, hoje livre da lei antissocialista bismarkiana, sob a alçada de uma nova lei antissocialista!”[12].
Kautsky defendia já um marxismo mutilado. O marxismo radical, revolucionário, anticapitalista, sucumbira ao desenvolvimento do capitalismo. Num discurso pronunciado em 1872, no encerramento do congresso da Internacional, em Haia, o próprio Marx declarava:
“O operário terá que obter um dia a supremacia política a fim de poder estabelecer a nova organização do trabalho (…). Mas de modo algum pretendemos que para chegar a este objetivo os meios sejam todos os mesmos (…). Assim, não negamos que existem países como a Inglaterra, ou a América (…), onde os trabalhadores poderão atingir os seus objetivos por meios pacíficos”.
Esta asserção viria a permitir aos próprios revisionistas dizerem-se marxistas, e tudo quanto Kautsky podia contrapor-lhes — por exemplo, quando do congresso social-democrata de Stuttgart (1898) — era que os progressos da democracia e da socialização, que os revisionistas pretendiam estar em bom andamento nos países anglo-saxônicos, de modo algum seriam possíveis na Alemanha. Retomando por conta própria as afirmações de Marx sobre a possibilidade de ver em alguns países a sociedade sofrer uma transformação pacífica, Kautsky contentou-se em acrescentar que também ele sonhava “obter o socialismo sem o ter que pagar com uma catástrofe”. Mas esta possibilidade parecia-lhe então duvidosa.
Concebe-se facilmente que Kautsky, partindo de tais premissas, achasse perfeitamente lógico afirmar depois da guerra que, estando daí em diante reunidas as condições para um rápido desenvolvimento das instituições democráticas na Alemanha e na Rússia, a via de passagem pacífica ao socialismo abria-se simultaneamente nestes países. Esta via pacífica favorecia o desenvolvimento desta “solidariedade da humanidade” que Kautsky tanto encarecia. Os intelectuais socialistas pretendiam rivalizar em matéria de cortesia com a classe burguesa, a qual por sua vez aprendera a tratá-los com deferência. E ao fim e ao cabo não eram todos habitantes do mesmo mundo? A vida ordenada, esta vida pequeno-burguesa que um poderoso movimento socialista assegurava à “intelligentsia”, levava-os a pôr a tônica nos aspectos ético e cultural das coisas. Se Kautsky nutria pelos métodos dos bolcheviques um ódio idêntico ao dos Guardas-Brancos, aprovava, no entanto, sem reservas, contrariamente a estes últimos, os objetivos a que os bolcheviques se entregavam. Para além do elemento proletário da revolução, os dirigentes do movimento socialista viam despontar um caos capaz de os arrastar simultaneamente com o poder burguês. Na realidade, o ódio que tinham pela “desordem”, encobria a vontade de defenderem os seus privilégios materiais, sociais e intelectuais. A seus olhos, a ação ilegal apenas podia levar o socialismo à sua perda. Acima de tudo eram partidários da legalidade a todo o preço, único meio de dirigentes e organizações conservarem o domínio sobre o movimento de massa. E o modo como conseguiram sufocar, ainda em embrião, a revolução proletária demonstrou não só que os “ganhos” realizados pelos operários na esfera econômica se voltavam contra eles mesmos, mas também que a sua “vitória” no plano político seria nefasta à sua emancipação. O principal obstáculo a uma solução radical da questão social foi a social-democracia, partido por cujo crescimento se ensinou aos trabalhadores a medir o seu crescente poder!
Nada prova de maneira mais peremptória o caráter revolucionário das teorias de Marx do que a dificuldade de assegurar a sua manutenção nos períodos não revolucionários. Kautsky não estava, portanto, errado ao sustentar que o movimento socialista estava condenado à inação em tempo de guerra, esta última excluindo provisoriamente a revolução. Para o revolucionário isso significa o isolamento, a derrota temporária. E o momento de aguardar uma mudança de situação, esperar que o acordo dado à guerra desapareça devido à impossibilidade objetiva de traduzir em fatos o sim subjetivo. Um revolucionário não pode deixar de, de tempos em tempos, se encontrar à margem da situação. Crer que uma prática revolucionária, exprimindo-se através da ação autônoma dos trabalhadores, é possível em todos os momentos, significa aceitar as ilusões democráticas. Mas é bem mais difícil estar “de fora”, pois a mudança da situação é absolutamente imprevisível e ninguém está para ficar debaixo de fogo quando ele rebentar. A coerência apenas existe no plano teórico. Se não se encontra incoerência nas teorias de Marx, é necessário porém reconhecer que também algumas vezes o próprio Marx se inclinou perante as mudanças da realidade, e que ao querer persistir na ação em períodos não revolucionários, foi levado a agir em ruptura com as suas teorias. Estas unicamente diziam respeito aos pontos essenciais da luta de classes que opunham o proletariado à burguesia. Mas a prática de Marx era contínua; atacava os problemas, “à medida que estes se iam apresentando”, e, portanto, problemas que nem sempre era possível resolver apelando para os princípios fundamentais. Recusando admitir a necessidade de se dobrar sobre si mesmo no período de desenvolvimento do capitalismo, o marxismo não podia intervir senão dum modo contrário à sua essência, a qual considerava a luta de classes revolucionária como um fenômeno de todos os momentos. Na realidade, a teoria da luta de classes permanente não tem mais fundamento do que a noção burguesa de permanente progresso. Nada fará com que o curso das coisas se encaminhe automaticamente no sentido desejado; muito pelo contrário, é preciso o combate em condições incertas, submetidas a bruscas variações e sob a constante ameaça do fracasso total. Nas épocas em que a história se inclina ainda a favor do capitalismo, a massa simplesmente numérica dos operários que se opõem ao poderoso Estado de classe, longe de representar o gigante sobre cujas costas os parasitas capitalistas se repousam, é bem mais comparável ao touro que se vê constrangido a deslocar-se aonde quer que o obriguem as bandarilhas que lhe espetaram. Enquanto o desenvolvimento do capitalismo prosseguia, o marxismo apenas podia continuar sob uma forma ideológica, justificada por uma prática que em todos os domínios se lhe opunha. E mesmo sob esta forma, os acontecimentos reais não deixariam de lhe reduzir ainda mais a importância. Enquanto pura e simples ideologia, o marxismo estava condenado a desaparecer, desde que as grandes viragens sociais implicavam a sua transformação e o transformavam de ideologia indireta em ideologia direta da colaboração de classes, com objetivos capitalistas.
Marx elaborou as suas teorias no decurso de um período revolucionário. Ele foi então o mais avançado dos revolucionários surgidos da burguesia, e o mais próximo também do proletariado. Mas a derrota da revolução burguesa na Alemanha, e o seu triunfo subsequente no contexto da contrarrevolução, viriam a convencer Marx de que a classe operária constituía a única classe autenticamente revolucionária do mundo moderno. E foi nesta base que Marx concebeu a teoria socioeconômica da revolução proletária. Subestimando, à maneira de muitos dos seus contemporâneos, o vigor e a sutileza do capitalismo, Marx fez mal em predizer o fim próximo da sociedade burguesa. Marx encontrava-se face à seguinte alternativa: ou se situava fora do curso real das coisas e se atinha desde então a ideias radicais mas aplicáveis, ou participava, nas condições do momento, nas lutas reais, reservando sempre para “melhores tempos” a aplicação das teóricas revolucionárias. Este último termo da alternativa foi de seguida racionalizado sob a forma de “o bom equilíbrio entre a teoria e a prática”; simultaneamente, a derrota ou a vitória do proletariado tornaram-se uma mera questão de “boa” ou “má” tática, de organização adaptada ou não às respectivas tarefas e de dirigentes capazes ou nefastos. Se o elemento jacobino, inerente ao movimento a que Marx ligou o seu nome, conheceu um tal desenvolvimento, foi menos devido à primeira ligação de Marx com a revolução burguesa do que a uma prática não revolucionária deste movimento, a qual provinha diretamente do caráter não revolucionário do período.
Assim, o marxismo de Kautsky era um marxismo tornado ideologia e, por isso, obrigado a cair no idealismo com o decurso do tempo. Na verdade, a “ortodoxia” de Kautsky consistia em preservar artificialmente ideias em ruptura com a prática e, desde logo, destinadas a degradar-se, pois a realidade é mais forte do que as ideologias. Mas uma “ortodoxia” real tinha por condição obrigatória a reaparição de uma conjuntura revolucionária, na qual, aliás, a “ortodoxia” em questão se preocuparia não em ser fiel à “carta”, mas apenas em aplicar a uma situação nova os princípios da luta de classes entre a burguesia e o proletariado. As obras de Kautsky permitem seguir em todas as etapas, e com toda a clareza desejável, a regressão que a prática impôs à teoria.
Kautsky tratou nos seus escritos não só questões específicas do movimento operário, mas também de quase todos os problemas sociais. Os seus inumeráveis livros e artigos podem, no entanto, classificar-se em três grandes categorias: Economia, História e Filosofia. No que diz respeito à economia política, não se pode dizer que haja contribuído muito para o seu avanço. Além dos manuscritos de Marx que tomou a iniciativa de editar, entre 1904 e 1910, sob o título de Teoria da Mais-Valia, Kautsky dedicou-se a vulgarizar as teorias econômicas de Marx, especialmente as do primeiro volume de O Capital, sem se afastar contudo da interpretação que os teóricos socialistas, inclusive os revisionistas, atribuíam em geral aos fenômenos econômicos. Testemunha-o o fato de certas partes do seu célebre trabalho As Doutrinas Econômicas de Karl Marx terem sido redigidas por Eduard Bernstein. E, além disso, as intervenções de Kautsky nas vivas controvérsias que as teorias de Marx, expressas nos volumes II e III de O Capital, suscitaram a partir de 1885, foram muito modestas. Com efeito, e segundo a sua opinião, o volume I, consagrado ao processo de produção, à fábrica e à exploração, incluía tudo quanto os trabalhadores tinham necessidade de saber para, de um modo organizado, lutarem contra o capital. Quanto aos outros dois volumes, que tratavam mais detalhadamente das tendências para as crises e para a derrocada do sistema capitalista, não correspondiam à realidade imediata e interessaram muito pouco a Kautsky e a todos os teóricos marxistas desse período de desenvolvimento capitalista. Por ocasião de uma resenha do segundo volume de O Capital, escrita em 1886, Kautsky defendeu a ideia de que este apresentava um interesse menor para os operários, na medida em que nele se falava sobretudo da realização do mais-valor, a qual, ao fim e ao cabo, dizia mais respeito aos capitalistas. Quando Bernstein, ao desejar refutar as doutrinas econômicas marxistas, se ateve à teoria da derrocada, Kautsky, que por sua vez pretendia defender o marxismo, limitou-se a negar que Marx tivesse alguma vez professado uma teoria que concluísse pela existência de um limite objetivo ao funcionamento do sistema, e afirmou que Bernstein a tinha, pura e simplesmente, inventado totalmente. Era na esfera da circulação que Kautsky situava a origem das dificuldades e contradições do capitalismo. Dado que o consumo não podia aumentar tão depressa quanto a produção, deveria seguir-se uma sobreprodução permanente que, por sua vez, viria a engendrar a necessidade política de uma realização do socialismo. Quando Tougan-Baranovsky formulou a sua teoria do desenvolvimento ilimitado do capital, defendendo que este cria o seu próprio mercado e, por isso, tem a possibilidade de impedir o aparecimento de desproporções, teoria esta que veio a exercer uma profunda influência sobre a corrente reformista no seu conjunto, Kautsky[13] respondeu-lhe que o subconsumo operário tornava inevitáveis crises que terão por efeito o engendrar das condições subjetivas da mutação do capitalismo em socialismo. Mas, passados vinte e cinco anos, admitia já sem rodeios haver subestimado as possibilidades do sistema capitalista, tendo-se este revelado “muito mais dinâmico do ponto de vista econômico do que o era há meio século”[14].
A falta de rigor e a confusão que Kautsky evidenciava em matéria de teoria econômica[15] atingiu uma espécie de cúmulo no dia em que adotou as teses de Tougan-Baranovsky que outrora combatera. Este pormenor constitui apenas um aspecto da sua mudança geral de atitude para com o pensamento burguês e a sociedade capitalista. Na opinião do próprio Kautsky, a sua melhor obra, conclusão e coroamento de toda uma vida de investigação, é A Concepção Materialista da História, livro no qual se trata, em cerca de duas mil páginas, da evolução da natureza, da sociedade e do Estado. Este trabalho não é só o testemunho de um modo de exposição pedante e de um vasto conhecimento de teorias e fatos. Ele evidencia igualmente até que ponto o seu autor possuía uma ideia errada do marxismo. Na verdade, é nele que Kautsky vira incontestavelmente as costas à ciência marxista. E então que abertamente afirma que “de tempos em tempos tornam-se inevitáveis revisões do marxismo”[16] e acaba por se ligar a concepções contra as quais, aparentemente, toda a vida lutara. Não contente em abandonar a interpretação marxista, apresenta ainda a sua “opus magnum” como uma concepção da História original que, sem estar absolutamente desligada da de Marx e Engels, não deixa contudo de ser independente. Os seus mestres, negligenciando o papel dos fatores naturais da História, restringiram – pretende então Kautsky – demasiado o valor das suas concepções. Quanto a ele, que de modo algum parte de Hegel mas de Darwin, quer “alargar assim o campo do materialismo histórico até a sua fusão total com a biologia”[17]. Mas este aprofundamento revela-se, em última instância, nem mais nem menos do que um retorno às posições da burguesia revolucionária que Marx ultrapassara no contexto da sua crítica a Feuerbach[18]. Kautsky, fundamentando-se à maneira dos seus predecessores, os filósofos burgueses, no materialismo naturalista, não podem, à semelhança daqueles, deixarem de conceber a história social numa perspectiva idealista. É por isso que quando fala sobre o Estado retoma pura e simplesmente a velha concepção burguesa, segundo a qual a história do gênero humano se confunde com a história dos Estados. E conclui a análise do Estado democrático burguês com estas palavras: “A época das lutas de classes violentas está ultrapassada. É pacificamente, graças à propaganda e ao sistema eleitoral, que daqui em diante será possível apaziguar os conflitos, tomar as decisões”[19].
Por não podermos discutir aqui ponto por ponto este volumoso trabalho[20], limitar-nos-emos a acentuar que é nele que do princípio ao fim se torna evidente como foi duvidoso o “marxismo” do seu autor. Com o recuo histórico, apercebemo-nos que Kautsky não deixou de considerar em nenhum momento a sua participação no movimento operário como uma atividade social de tipo burguês. O fato é hoje evidente: Kautsky jamais chegou a compreender verdadeiramente a posição de Marx e Engels ou, pelo menos, esteve longe de supor que pudesse existir uma relação direta entre a teoria e a realidade. Parecia que estudara o pensamento de Marx com seriedade, e na verdade nunca o tomou a sério. Assemelhando-se a tantos padres beatos que se conduzem na prática de modo contrário aos seus ensinamentos, Kautsky não se deu sequer conta da dualidade que separa, na sua essência, o pensamento da ação. Como se desejasse ser aquele burguês de que Marx dissera que queria ser “capitalista unicamente no interesse dos operários”! Mas é claro que Kautsky teria recusado aceder a este feliz estado se para isso tivesse que renunciar aos métodos “pacíficos” da democracia burguesa. “Kautsky afasta a melodia bolchevique que lhe fere os ouvidos”, escrevia Trotsky,” sem que, no entanto, procure uma outra; geralmente, o velho pianista recusa-se a tocar no instrumento da revolução”[21].
Para o fim dos seus dias, Kautsky deve ter constatado a impossibilidade de realização por vias pacíficas, democráticas, das reformas com que sonhara; então efetuou uma viragem total. Ele, que outrora se instituíra o defensor de uma ideologia marxista absolutamente desligada do real, e unicamente capaz de servir à parte contraria, fez-se então pregador do liberalismo, ou seja, de uma ideologia igualmente irrealista no quadro de uma sociedade evoluindo para um capitalismo de tipo fascista, e que servia a esta sociedade como outrora a sua ideologia marxista havia servido o capitalismo de tipo democrático.
“Pretende-se hoje, abertamente, diz ele na sua última obra, desprezar a economia liberal. Mas as teorias de Quesnay, Adam Smith e Ricardo não estão de modo algum ultrapassadas. Marx adotou os seus princípios essenciais e aperfeiçoou-os, sem nunca contestar que não fosse a produção liberal mercantil a melhor base para o desenvolvimento da produção. A diferença entre Marx e os clássicos é a seguinte: se estes últimos viam na produção de mercadorias por conta privada a única forma de produção concebível, Marx, por seu lado, considerava que a forma de produção mais evoluída, a produção mercantil, viria a engendrar, devido ao seu próprio desenvolvimento, as condições que mais tarde permitiriam a passagem para uma forma de produção superior, a produção social, graças à qual a sociedade, isto é, a população laboriosa no seu conjunto, geriria os meios de produção, não já com vista ao lucro mas com vista à satisfação das suas necessidades. O modo de produção socialista obedece a leis que lhe são próprias, diferentes, portanto, em muitos aspectos das leis que regem a produção mercantil. Mas enquanto esta última predominar, funcionará tanto melhor quanto as leis do seu movimento, descobertas na era do liberalismo, forem respeitadas”[22].
É espantoso encontramos semelhantes ideias no homem que foi o editor das Teorias da Mais-Valia de Marx, trabalho que indiscutivelmente mostra que “nunca Marx ou Engels professaram, enquanto vivos, a superficial opinião de que o conteúdo novo da sua teoria socialista e comunista consistiria numa simples consequência lógica das teorias arquiburguesas de Quesnay, Smith e Ricardo[23]”. Isto justifica assim de um modo inequívoco a nossa tese: Kautsky foi um excelente discípulo de Marx e Engels, mas unicamente na medida em que podia fazer coincidir o marxismo com os seus conceitos pessoais e limitados não só do desenvolvimento social, mas também da sociedade capitalista. A seus olhos, a sociedade “socialista” ou, por outras palavras, a consequência lógica do desenvolvimento da produção mercantil, não passava de um sistema capitalista de Estado. Kautsky, ao pretender, sem razão, que a lei marxista do valor subsistiria na economia socialista, com a condição de que o valor fosse conscientemente restabelecido e não fixo pelo jogo das leis “cegas” do mercado, foi chamado à atenção por Engels que lhe contrapôs ser o valor uma categoria estritamente histórica e que, aparecido com o capitalismo, com ele viria a desaparecer[24]. Kautsky teve que aceitar este parecer, como mostra o seu trabalho sobre As doutrinas econômicas de Karl Marx (1887), onde o valor é considerado uma categoria histórica. No entanto, ao responder em a revolução proletária e o seu programa (1922) a algumas críticas burguesas sobre a teoria econômica do socialismo, não hesitou em reintroduzir, no seu esquema de sociedade socialista, a noção de valor, mercado e dinheiro e a de produção mercantil. A categoria, ainda ontem puramente histórica, tornava-se eterna; Engels falara em vão. Kautsky regressara às origens, à pequena-burguesia, a qual odeia igualmente o poder dos monopólios e o socialismo e unicamente aspira a uma transformação quantitativa da sociedade, a uma reprodução alargada do status quo, a um capitalismo melhorado e revigorado, saído de uma democracia mais real e extensa, em vez de uma sociedade capitalista que não tenha outra escolha senão exacerbar-se em fascismo ou transformar-se em comunismo.
Se Kautsky preferia a produção mercantil de tipo liberal, e a sua expressão política, a uma “economia” de estilo fascista é porque devia ao primeiro destes sistemas a sua longa grandeza e reduzida miséria. Do mesmo modo que outrora contribuíra para apoiar a democracia burguesa, servindo-se de uma fraseologia marxista, ajudava agora a obscurecer a realidade fascista através do uso de todo um palavreado democrático. Em lugar de animar quantos nele depositavam confiança a olharem em frente, incitava-os antes a restaurar o passado, tornando-os simultaneamente incapazes de ação revolucionária. Este homem que, pouco tempo antes de morrer, viria a ser vítima da onda fascista que o levou de Berlim a Viena, de Viena a Praga e de Praga a Amsterdam, publicou em 1937 um livro, Os Socialistas e a Guerra, que demonstra com a máxima clareza que um marxista que tenha trocado a sua concepção materialista do desenvolvimento social por uma concepção idealista é fatalmente levado a esse ponto de regressão em que o idealismo atinge o delírio. Conta-se na Alemanha que Hindenburg, assistindo um dia ao desfile das seções de assalto nazis, se terá inclinado para um dos seus ajudantes de campo e dito: “Não imaginava que tivéssemos feito tantos prisioneiros russos”. No seu último livro, Kautsky vivia também ele na hora de Tannenberg[25]. A obra descreve, fazendo um resumo, as diferentes atitudes que desde o século XV, até aos nossos dias, os socialistas e seus precursores adotaram face ao problema da guerra. Ainda que Kautsky não tenha disso consciência, ele próprio é uma prova do ridículo em que cai o marxismo quando pretende associar as necessidades e exigências do proletariado às da burguesia.
Kautsky redigiu este livro com o fim, segundo as suas próprias palavras,
“De determinar a posição a tomar pelos socialistas e democratas no caso da deflagração de uma nova guerra, apesar de todos os nossos esforços para a evitar”.
E diz:
“Não existe resposta direta a esta questão até que as hostilidades hajam começado, e exista a possibilidade de ver quem provocou o conflito e com que fins”,
Acrescentando:
“Se a guerra rebentasse, os socialistas deveriam fazer por manter a sua unidade de modo a que a organização sobreviva à experiência e possa colher os frutos dos seus esforços por toda a parte onde quer que os regimes impopulares se afundem. Em 1914 esta unidade quebrou-se e ainda hoje pagamos por essa calamidade. Mas agora as coisas são mais claras do que o eram antes: a oposição entre Estados democráticos e não democráticos é muito mais nítida e estamos no direito de esperar que se acontecesse uma nova guerra mundial, todos os socialistas se encontrariam do mesmo lado — o da democracia”[26].
O que se sabe da última conflagração mundial e do que se lhe seguiu torna perfeitamente inútil procurar muito longe a causa das guerras e ninguém ignora já com que objetivo a guerra se fez. Mas colocar semelhante questão é muito menos estúpido do que possa parecer à primeira vista. Debaixo de um manto de ingenuidade jaz, na verdade, a vontade de servir o capitalismo sob uma forma, combatendo-o sob uma outra. Trata-se de levar os trabalhadores a participarem na guerra, em troca do direito de voto e do direito de formar organizações, quer ao serviço do capital quer da burocracia dirigente. E a velha política de Kautsky, sempre pronta a trocar uns milhões de cadáveres operários por algumas concessões da burguesia. Na realidade, quaisquer que sejam a natureza política e os objetivos proclamados pelos Estados beligerantes, as guerras capitalistas nunca deixarão de ser guerras pelo lucro, e, portanto, também guerras contra a classe operária; e visto que é assim, os trabalhadores não têm a menor possibilidade de escolha entre uma participação condicional e uma participação incondicional. Pelo contrário, a guerra – e mesmo o período que precede a sua declaração – será marcada, não só nos países fascistas mas também nos antifascistas, por uma ditadura militar absoluta. A guerra acabará por destruir as últimas diferenças que subsistiam entre os regimes democráticos e os outros. Os operários colocar-se-ão atrás de Hitler como já o haviam feito com o Kaiser; apoiarão Roosevelt como tinham outrora apoiado Wilson; morrerão por Stálin como antigamente pelo Tzar.
Considerando que a democracia é a forma natural do capitalismo, Kautsky não viu no aparecimento e propagação do fascismo senão uma doença, um provisório acesso de demência, um fenômeno sem qualquer ligação com o capitalismo. Acreditava verdadeiramente que uma guerra para o restabelecimento da democracia permitiria ao capitalismo progredir de novo em direção ao seu termo lógico, a comunidade socialista. E esta a razão porque em 1937 Kautsky diagnosticava:
“Eis-nos finalmente chegados à época em que é já possível abolir a guerra como meio de resolver os conflitos entre nações”[27].
E predizia:
“A política de conquista levada a cabo pelo Japão na China, ou pelos italianos na Etiópia, será o último vestígio dos tempos passados, do período do imperialismo. Tudo leva a crer que não haverá mais guerras deste gênero”[28].
Idênticas fórmulas abundam neste livro, fazendo crer que o mundo do seu autor se reduzia às quatro paredes de uma biblioteca, na qual faltavam prateleiras consagradas à história contemporânea! Na verdade, Kautsky pensava que, mesmo sem guerra, o fascismo seria vencido e a democracia restaurada; a evolução pacífica para o socialismo poderia então retomar o seu curso, como nos bons dias anteriores ao fascismo. Por quê? Porque, dizia ele, “o caráter pessoal da ditadura demonstra, por si só, que a duração desta não poderá exceder o período de uma vida humana”[29].
Kautsky estava assim convencido de que o episódio fascista seria seguido de um retorno “à normalidade”, a uma democracia abstrata, cada vez mais socialista, que aperfeiçoaria as reformas conseguidas durante a gloriosa época da participação dos socialistas no governo. Ora, entra pelos olhos adentro que a reforma fascista é hoje a única reforma objetivamente possível que o capitalismo pode realizar. De fato, o “programa de socialização” que os social-democratas jamais ousaram pôr em prática enquanto detiveram o poder, foi em grande parte realizado pelos fascistas. Do mesmo modo que as reivindicações da burguesia alemã não foram satisfeitas em 1848 mas só depois, pela contrarrevolução que se seguiria, assim o programa da social-democracia só foi levado a cabo por Hitler. Foi, na verdade, graças a este, e não à social-democracia, que velhas aspirações socialistas, tais como o Anschluss da Áustria e o controle estatal da indústria e bancos, deveria entrar na ordem dos fatos. Foi Hitler, e não a social-democracia, quem proclamou feriado o 1.º de Maio. E de um modo mais geral basta comparar o que os socialistas diziam querer, mas que nunca fizeram, com a política praticada na Alemanha depois de 1933, para nos apercebermos que Hitler realizou a seu bel-prazer o programa da social-democracia dispensando os seus serviços. Como Hitler, os social-democratas combatem quer o bolchevismo quer o comunismo e, como ele, preferem a organização de um controle estatal a um sistema de capitalismo de Estado tão desenvolvido como o da Rússia. Mas os social-democratas jamais tiveram a audácia de tomar as medidas exigidas para a execução deste programa e foi Hitler quem disso se encarregou. Do mesmo modo que Kautsky se revelou incapaz de imaginar sequer que uma teoria marxista podia desembocar numa prática marxista, também não chegou a compreender que uma política de reforma capitalista deve ter efeitos práticos e que essa foi precisamente a obra do fascismo. Se a vida de Kautsky pode ensinar qualquer coisa aos trabalhadores, é que a luta contra o fascismo se desdobra necessariamente numa luta contra a democracia burguesa, contra o kautskismo. Na verdade, não estaremos a exagerar sobre a vida de Kautsky se a resumirmos do seguinte modo: de Marx a Hitler.
[1] Friedrick Adler, Der sozialistische Kampf, 5-11-1938, p. 271.
[2] K. Kautsky, Aus der Fruhzeit des Marxismus, Praga, 1935 p. 20.
[3] K. Kautsky, Aus der Fruhzeit des Marxismus, Praga, 1935 p. 93.
[4] K. Marx, Le Capital, I, 3, p. 59.
[5] Rosa Luxemburgo in: Die Internationale, Primavera de 1915.
[6] Lênin, Oeuvres, 35, p. 164.
[7] K. Kautsky, La Révolution Sociale, trad. francesa, Paris, 1921.
[8] K. Kautsky, Sozialisten und Krieg, Praga, 1937.
[9] K. Kautsky, Aus der Fruhzeit des Marxismus, Praga, 1935 p. 50.
[10] Id., p. 112.
[11] Aus der Fruhzeit des Marzismus, p. 155.
[12] ldem, p. 275.
[13] Cf. a série de artigos que Kautsky publicou em 1902 na Die Neue Zeit.
[14] K. Kautsky, Die Materialistische Ceschichtsauffassung, Berlim, 1927.
[15] H. Grossmann descreveu excelentemente em Akkumulations und Zusammenbruchsetx des Kapitalistischen System (Leipzig, 1929) e criticou como convinha o caráter limitado das teorias econômicas de Kautsky e a sua transformação com o tempo.
[16] Die Materialistische Geschichtsazcffassung, op. cit., II, p. 60.
[17] Die Materialistische GeschichtsauffasszLng, op. cit., II, p. 629.
[18] K. Marx & Friedrich, Engels, Teses sobre Feuerbach, A Ideologia Alemã, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2001, p. 99.
[19] Id., II, p.431.
[20] Remetemos o leitor à crítica exaustiva que Karl Korsch fez da obra em questão: Die materialistische Geschichtsauffassung. Eine Auseinandersetzung mit Karl Kautsky, Leipzig, 1929 [tradução francesa: L’Anti-Kautsky, Editions Champ Librel.
[21] L. Trotsky, Terrorisme et communisme, Paris, 1963, p. 278.
[22] K. Kautsky, Sozialisten und Krieg, op. cit., p. 665.
[23] K. Korsch, Karl Marx, Éd. Champ Libre, Paris, 1971, p. 99. Cf. também os prefácios de Engels à edição alemã de Miséria da Filosofia (1844) e ao Livro Segundo de O Capital (1885).
[24] Aus der Frühzeit des Marsismus, op. cit., p. 145.
[25] Aldeia da Prússia oriental onde, em Agosto de 1914, os exércitos do marechal Hindenburg, futuro presidente de Reich, aniquilaram as tropas do Tzar.
[26] K. Kautsky, Sozialisten und Krieg, op. cit., p. VIII.
[27] Id., p. 265.
[28] Id., p. 656.
[29] Id., p. 646.
O presente texto foi retirado do seguinte site: https://www.marxists.org/portugues/mattick/1939/mes/kautsky.htm. A revisão do português de Portugal para o português do Brasil foi feita por Ádamo Soares.