Alexandra Kollontai também não era feminista – Nuevo Curso

Um novo dia 8 de março se aproxima, já convertido em celebração de estado. E com ele uma nova ampliação da santidade feminista que, para variar, é feita às custas de grandes figuras do movimento operário que não eram apenas feministas, mas porque eram muito mais radicais na luta contra a discriminação, enfrentavam coerentemente as feministas de sua época. Se em outros anos a falsificação foi iniciada, dependendo do país, contra Rosa Luxemburgo e Sylvia Pankhurst, este ano parece que o ataque de falsificação foi contra Alexandra Kollontai.

Ao contrário de Rosa Luxemburgo, em cuja obra a “questão feminina” ocupa apenas um lugar marginal, Kollontai sim tratou de temas que são amadas pelas feministas de hoje… embora de uma perspectiva oposta. A maior parte de seus trabalhos não toca no que na época era conhecido como “a questão feminina”, mas em 1921 ela deu uma série de catorze palestras aos estudantes da Universidade de Sverdlov, depois compiladas como “Mulher, história e sociedade”. Ao final da décima segunda delas, enunciava sua tese principal sobre a libertação da mulher:

“A libertação da mulher só pode realizar-se através de uma transformação radical da vida cotidiana e a própria vida cotidiana não será alterada, senão mediante uma modificação profunda de toda a produção sobre as bases da economia comunista.”

Em outras palavras, Kollontai tinha as mesmas posições que Zetkin e Luxemburgo.

“As linhas diretrizes devem expressar claramente que a verdadeira emancipação da mulher só será possível através do comunismo. A relação sobre os meios de produção deve ser fortemente enfatizada. Com isso, traçaremos uma linha divisória firme e permanente contra o movimento da “verborragia dos direitos das mulheres”.” (Clara Zetkin, “Memórias de Lenin”).

Como visto na citação, Zetkin e Luxemburgo, falando em alemão, rotineiramente chamavam o feminismo de movimento “Frauenrechtelerei” (“retórica sobre direitos das mulheres”) em vez do movimento “Frauenrechtlerinnen” (“em defesa dos direitos das mulheres”) como as feministas se autodenominavam.

Kollontai e a crítica marxista do amor no capitalismo

Hoje, no entanto, Kollontai é citada como uma precursora da preocupação atual do feminismo pelas relações interpessoais e conjugais. Mas nada é menos verdadeiro que uma meia verdade. Kollontai estava na posição oposta à que defende que “o pessoal é político” e nunca aceitou o terreno das “identidades” dentro do Partido social-democrata russo primeiro e do comunista depois.

Mas sim, ela escreveu sobre as relações conjugais, mas de uma perspectiva que nada tinha a ver com feminismo e tudo com a moralidade comunista. Voltemos às palestras na Universidade de Sverlov. No dia seguinte de enunciar a conclusão de que somente o comunismo trará a libertação completa das mulheres, Kollontai valorizou as mudanças que a ditadura do proletariado já estava promovendo, não apenas através do poder conquistado pelos soviets, mas pela mudança nas aspirações e visão dos próprios trabalhadores.

“As mudanças sociais que ocorreram com a revolução se refletem, sobretudo, na mentalidade do trabalhador e em seu novo modo de encarar a vida. Converse com os trabalhadores! Eles eram assim antes da revolução?”

A Revolução Russa, como todo movimento dos trabalhadores como classe, foi o produto e o processo de um desenvolvimento massivo da consciência. Se inicia um período, que embora mais tarde corroído pela guerra civil e pela NEP – isto é, pelas consequências do isolamento da revolução – deu lugar a uma verdadeira explosão de criatividade e experimentação por amplos setores do proletariado.

O que estava ocorrendo não era uma mudança nas relações definidoras da sociedade: trabalho assalariado e o capital. A NEP que se colocava em marcha naquele momento, como insistia Lênin, era uma forma particular de capitalismo de estado destinado a reconstruir a relação com a pequena-burguesia camponesa. Era outra coisa que estava alimentando todo aquele surto do qual hoje apenas se recorda perifericamente na história acadêmica: seu reflexo nas artes. O que estava ocorrendo no centro da classe não eram as mudanças de um novo modo de produção, mas o desenvolvimento da consciência de classe sob as condições de uma ditadura incipiente do proletariado.

“Seus pensamentos, seus sentimentos, o conteúdo de seu trabalho mudaram. Na União Soviética reina um ambiente totalmente diferente. Quando um de nós retorna a um país capitalista burguês, tem a impressão de viver novamente em outro século. Fomos bruscamente impulsionados para o futuro e a partir daí julgamos a realidade desses países, atrasados ​​de um ponto de vista revolucionário. Graças à nossa experiência, aprendemos a conhecer concretamente o futuro.”

Kollontai viu bem que o que estava acontecendo era que os trabalhadores estavam “ganhando autoconfiança” como classe. Era isso que lhes permitia “sentir com a ponta dos dedos a realidade comunista “. A explosão criativa do proletariado depois da tomada do poder por seus soviets era na verdade o futuro vislumbrando-se no presente, uma extensão da moral comunista possibilitada pela maior ascensão das lutas ocorridas até então. Por isso não é de se estranhar que Kollontai, uma leitora devota de “Que fazer” de Chernishevski, passará depois, nessas mesmas conversas, mas também em sua famosa “Carta à Juventude Comunista” de 1923, a tratar de como a revolução já estava adiantando elementos dessa “revolução da vida cotidiana” através do comportamento dos setores mais conscientes da classe, já massivos. E, certamente, entre eles, as relações amorosas.

Ela faz primeiro uma crítica histórica do conceito de “amor” e suas muitas dimensões. Vai enumerando como cada sistema de exploração o tem dado de formas particulares de acordo com seus interesses. E em muito acerta quando, ao chegar à moral burguesa, aponta que no modelo conjugal do capitalismo, a lógica subjacente é a do casal/família como núcleo de acumulação de capital. Por isso parte do sentimento individual, que se consolida com certos enfeites formais e contratuais, é idealmente eterna e é entendida como uma tarefa absorvente e de longo alcance em si mesma. Mas, sobretudo, a relação do casal com o coletivo se estende como uma extensão da falsa oposição entre o “indivíduo” e a coletividade.

“A única coisa indiscutível é que quanto mais unida estiver a Humanidade pelos laços duradouros da solidariedade, mais intimamente unida estará em todos os aspectos da vida, da criação ou das relações mútuas. Por conseguinte, menos espaço restará para o amor no sentido contemporâneo da palavra. Em nossos dias, o amor sempre peca por uma absorção excessiva de todos os pensamentos, de todos os sentimentos entre dois “corações que se amam” e, portanto, isolam e separam o casal amoroso do resto da coletividade. Esta separação, esse isolamento moral do “casal amoroso” não será apenas completamente inútil, mas psicologicamente será impossível em uma sociedade em que estejam intimamente unidos os interesses, as tarefas e as aspirações de todos os membros da comunidade. Neste novo mundo a forma reconhecida, normal e desejável das relações entre os sexos será baseada puramente na atração saudável, livre e natural – sem perversões nem excessos – dos sexos. […] Neste período de transição, a ideia moral que determina as relações entre os sexos não pode ser o instinto sexual, mas as múltiplas sensações do amor-camaradagem experimentadas por homens e mulheres. Para que estas sensações correspondam à moral proletária em formação, elas devem estar baseadas em três coisas:

– A igualdade nas relações mútuas, desaparecendo prepotência e submissão subserviente;

– O reconhecimento mútuo e recíproco de seus direitos sem reivindicar, nenhum dos seres unidos por relações amorosas, a posse absoluta do coração e do espírito do ser amado, isto é, o desaparecimento do sentimento de propriedade promovido pela civilização burguesa;

– E sensibilidade fraterna, a arte de assimilar e entender o trabalho psíquico que realiza o amado, sensibilidade que na sociedade burguesa só era exigida das mulheres. […].

Não esqueça, jovem companheira, que o amor muda de aparência e se transforma de maneira inevitável ao mesmo tempo em que mudam as bases econômicas e culturais da sociedade. Se garantirmos que as relações amorosas cegas, o sentimento passional exigente e absorvente desapareçam; o sentimento de propriedade também desaparece, assim como o desejo egoísta de “unir-se para sempre” ao ser amado; se garantirmos que desapareça a fantasia do homem e que a mulher não renuncie criminalmente a seu “eu”, sem dúvida, o desaparecimento de todos esses sentimentos levará ao desenvolvimento de outros elementos preciosos.  De modo que se desenvolverá e aumentará o respeito à personalidade dos outros, assim como se aperfeiçoará a arte de respeitar os direitos dos demais; se ensinará a sensibilidade recíproca e se desenvolverá enormemente a tendência de manifestar o amor, não somente com beijos e abraços, mas também com uma unidade de ação e de vontade na criação comum.” (Alexandra Kollontai, “Carta à Juventude Comunista”, 1923).

Não, você não precisa ser feminista para…

As incursões de Kollontai sobre o amor na perspectiva da moral comunista, estão pendentes ainda da discussão e do aprofundamento que merecem. Hoje as que mantemos sobre a prostituição e barriga de aluguel só podem ser compreendidas em continuidade com as críticas da sexualidade burguesa que ela iniciou. Não, não é necessário ser feminista nem para lutar contra a discriminação, nem para lutar pela emancipação das mulheres, nem para denunciar a aberração que supõe a tendência do capitalismo de mercantilizar todas e cada uma das atividades humanas, incluindo a sexualidade. Pelo contrário, isso só pode ser feito de forma coerente com a perspectiva da única classe que luta por interesses universais. E pela mesma razão, só podemos trazer para o presente os valores do futuro, os de uma comunidade humana reunida e realmente igualitária, com uma moral comunista.

O presente texto foi traduzido por Matheus Ávila, segundo a versão disponível em: https://nuevocurso.org/alexandra-kollontai-tampoco-era-feminista/. A revisão foi feita por Jaciara Veiga.