A classe média intelectual – Anton Pannekoek

Original in German: Die intellektuelle Mittelschicht

[Nota do Crítica Desapiedada]: Em 2 de outubro de 2020, publicamos no site o artigo “Os Intelectuais”, assinado por J. Harper (Anton Pannekoek) e, originalmente, editado pela revista International Council Correspondence, vol. 1, no. 12, Outubro de 1935.
O artigo “A classe média intelectual” possui algumas semelhanças com o texto de 1935, “Os Intelectuais”, mas a sua publicação é anterior, em março de 1934. A respeito das semelhanças e dos limites de Pannekoek, a introdução de Diego Marques à discussão da classe intelectual no autor neerlandês permanece válida e por isso recomendamos novamente a sua leitura como introdução a essa nova tradução. Boa leitura!


A classe média intelectual[1]

Nos movimentos fascistas e nacional-socialistas emergentes atualmente há um outro aspecto que merece consideração, a saber, seu caráter como um movimento de intelectuais.

Os intelectuais, a chamada nova classe média[2], a classe dos empregados, representantes e pequenos intermediários no grande capitalismo, possuem uma mentalidade completamente diferente da antiga classe média das pequenas empresas e empreendimentos independentes. A velha classe média é uma classe em declínio; embora muitas pequenas empresas continuem a encontrar terreno fértil no mundo capitalista e lojas e oficinas mecânicas continuem a existir, o apogeu dessa classe já passou; ela está olhando para o passado, e sua importância social está em declínio.

Os intelectuais, por outro lado, são uma classe nova, que olha adiante e que vem ganhando ainda mais importância com o desenvolvimento do capitalismo; uma classe que está crescendo e que sente que sua própria importância social está crescendo. Portanto, é importante que a classe trabalhadora concentre sua atenção nisso.

Em termos de posição econômica, os intelectuais podem ser comparados a trabalhadores qualificados altamente remunerados; em virtude do parentesco e da origem, eles estão ligados à burguesia, e seus estratos superiores também se fundem à burguesia; eles formam uma classe separada entre as outras duas, que, no entanto, não pode ser delimitada precisamente em nenhum dos lados. Sobre eles repousa a condução intelectual do processo de produção, e também, na liderança política, são, na maioria das vezes, eles os especialistas competentes que realizam o trabalho para a burguesia. Eles são os acadêmicos, os teóricos, os especialistas em trabalho intelectual. À medida que as empresas se tornaram mais gigantescas, suas conexões e organização, mais diversificadas, e o uso da ciência na tecnologia se tornou maior, cresceu a importância de seu trabalho para a sociedade.

Houve um tempo em que parecia que o movimento operário emergente poderia arrastar consigo esses intelectuais. Eles reconheciam quão acertada era a crítica ao capitalismo, viam e sentiam suas deficiências, viam também o entusiasmo vibrante do socialismo e do comunismo em ascensão. O idealismo revolucionário da vanguarda proletária atraiu alguns deles, eles simpatizaram, um número menor deles se juntou e lutou com o movimento dos trabalhadores. A maioria, naturalmente, permaneceu leal aos senhores capitalistas, permaneceu distante e trabalhou apenas em seu próprio campo e para progredir pessoalmente. Mas depois veio um longo apogeu do capital, com uma expansão extraordinária da riqueza, do capital, da tecnologia e da ciência. E o movimento operário concentrou-se apenas em reformas, tornou-se pragmático e perdeu seu idealismo revolucionário, que o havia tornado algo grandioso e belo, algo que também poderia inspirar pessoas de fora. Ele perdeu sua força interior e, agora que o capitalismo está em uma crise tão longa e severa como nunca antes, a classe trabalhadora está fraca demais para tomar o poder.

Agora surge um movimento autônomo da classe média intelectual. Ela vê os sinais de decadência do capitalismo, ela vê e experimenta no seu próprio corpo a grave crise, e capta os conflitos que daí podem surgir; ela vê clara e distintamente que o capitalismo não tem mais um futuro ilimitado pela frente. Justamente porque ela se sente como guia espiritual, que julga ter arrendado o pensamento como seu domínio, isso precisa inquietá-la de modo enfático. Ela fornece os técnicos que aperfeiçoaram ainda mais a produção, e agora toda a produção entra em colapso devido a forças além de seu controle. Ela reconhece, portanto, muito bem a triste insuficiência do capitalismo tradicional: por um lado, a impiedosa anarquia da produção, que também a faz passar fome e empobrecer; por outro, o desperdício de força de trabalho por meio de gambiarras improdutivas e técnica ultrapassada. Ela deseja ordem, organização, produtividade e razão no processo social do trabalho. Ela se sente como a elite intelectual, como as pessoas dotadas de razão, que sabem e são capazes, sim, que estão destinadas a organizar a produção por meio de uma direção eficiente e, além disso, a expandi-la enormemente. A palavra “tecnocracia”, vinda da América – o domínio dos especialistas técnicos sobre a produção – designa o seu ideal. Numa economia planificada socialista estatal, isso se torna uma organização abrangente com uma direção central e geral, que tira dos capitalistas individuais o poder de agir arbitrariamente.

Qual a relação desse esse objetivo de classe natural da classe média intelectual com os interesses dos capitalistas e dos trabalhadores? Ela não quer expropriar os capitalistas nem privá-los de seus lucros. Ao contrário – quer, ao pôr fim à destruição insensata e ao desperdício dos capitalistas estúpidos, aumentar ainda mais os lucros. Quer manter a exploração dos trabalhadores, mas acabar com a anarquia da produção. Isso, naturalmente, também interessa aos trabalhadores; com a maior produtividade do trabalho, os salários podem aumentar, as necessidades podem ser mais bem atendidas, mesmo que, ao mesmo tempo, seja possibilitado um excedente maior para o capital. E isso, por sua vez, interessa à burguesia, pois assim não apenas crises e miséria, mas também revoltas por fome e explosões revolucionárias das massas poderão ser evitadas. Isso significa socialismo, economia planificada socialista; mas não um socialismo dos trabalhadores. É o contrário: por meio do saber e do conhecimento desses líderes intelectuais, o mundo é melhorado para os trabalhadores. Isso não é socialismo democrático; pois aqui não se pode falar de democracia, que entregaria o poder às mãos das massas trabalhadoras ignorantes. Os intelectuais se veem como a minoria escolhida de guias espirituais, entre os quais o mais capaz alcança o topo por sua aptidão. A classe trabalhadora não deve imaginar que possa governar a si mesma. Em outros tempos, os trabalhadores socialistas, porque viam a produção, porque viam o trabalho como uma unidade mundial, podiam ser internacionalistas. O socialismo dos intelectuais, enquanto organização de liderança espiritual, do intelecto, precisa das fronteiras do nacional e, por isso, só pode ser nacional. O início dessa tomada de consciência da classe média intelectual, seu surgimento como classe, se realiza no movimento nacional-socialista na Alemanha e, ao mesmo tempo, também nos Países Baixos e em outros países. A isso, naturalmente, se somam outras origens e fontes do movimento. Na Alemanha, as universidades, os intelectuais, os estudantes foram os pilares e os auxiliares mais incansáveis da propaganda hitlerista. Pode-se dizer que esse movimento de classe dos intelectuais teve força interna tão grande que arrastou consigo até mesmo as massas de trabalhadores, a geração mais jovem. Isso, naturalmente, só aconteceu porque o próprio movimento de classe dos trabalhadores estava tão apodrecido e mal formado internamente, que os jovens trabalhadores não conheciam uma posição de classe própria. Por isso, aderiram à propaganda e aos objetivos do nacional-socialismo: ordem, dissolução dos partidos, alinhamento de todas as classes, tornar o Estado tão poderoso a ponto de poder enfrentar a tarefa de dirigir uma produção estatal.

Isso vai dar certo? Isso dependerá das relações de poder e de como elas se desenvolverem. O capital ainda é tão forte em todos esses países que uma economia planificada só irá tão longe quanto o grande capital permitir, em seu próprio interesse. Provavelmente, isso não será muito abrangente. Para o capital, a primeira parte do plano – a derrubada da democracia e a desarticulação do antigo movimento operário – pareceu suficientemente atraente para que contribuísse rapidamente com isso. Se isso lhe faz bem ou lhe fará bem, por exemplo aqui nos Países Baixos, não nos cabe julgar. Sabemos muito bem que os discursos nos parlamentos, mesmo que ocorram em linguagem “subversiva”, são completamente inofensivos para o capital, funcionando até mesmo como válvula de escape. No entanto, se o capital holandês acha isso tão desagradável e perturbador a ponto de preferir arriscar um descontentamento crescente que não tem onde se manifestar e, portanto, apoia o surgimento de um movimento nacional-socialista, então ele mesmo deve saber disso. Uma coisa é certa: um movimento intelectual não seria um poder diante do capital. Só poderá tornar-se um poder se for apoiado por grandes parcelas do capital. E então só poderá realizar seus ideais de classe na medida em que o capital o permitir.

Será diferente quando, no futuro, também como consequência do nacional-socialismo, a classe trabalhadora se levantar para uma nova e poderosa luta. Se houver então a possibilidade de que seu poder cresça a tal ponto que possa derrotar o capitalismo, os intelectuais se juntarão a ela, como meio para seus próprios fins, e assim tentarão, como resultado do movimento, alcançar um socialismo estatal organizado. Esse será então o último recurso do capitalismo. Nesse momento, na luta pelo comunismo, a disputa pela direção da produção por parte dos intelectuais será uma de suas formas.


[1] NT: Texto extraído da obra “Arbeiterräte: Texte zur sozialen Revolution”, p. 450, que compilou em alemão a obra de Anton Pannekoek. Texto originalmente publicado anonimamente como “De intellektueele middenstand”, no P.I.C. Persdienst van de Groep van Internationale Communisten, n° 4, março 1934 (sétimo ano), Amsterdam, p. 1-3. A presente tradução foi feita a partir da tradução alemã, feita por Carsten Würmann.

[2] NT: cabe pontuar que, no texto, Pannekoek usa os termos “Mittelschicht”, “Mittelstand” e “Mittelklasse”, referentes à “classe média”, de forma intercambiável, .

Traduzido por Vinícius Posansky. Revisado por Thiago Papageorgiou.

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