Do Bolchevismo à Burocracia – Paul Cardan

Original in French: Le rôle de l’idéologie bolchévik dans la naissance de la bureaucratie (introduction à “l’opposition ouvirère” de Kollontaï)

Introdução à Paul Cardan: “Do bolchevismo à burocracia” – Ricardo Golovaty

Recebemos o convite do Crítica Desapiedada para elaborarmos uma introdução ao presente texto de Paul Cardan (Cornelius Castoriadis). Vamos destacar os pontos que entendemos interessantes no ensaio, bem como, realizarmos uma crítica aos elementos que julgamos problemáticos. Agradecemos a oportunidade e esperamos responder à altura, dado que estamos numa espécie de “introdução da introdução da introdução”, pelas notas de Maurice Brinton a este ensaio que, por sua vez, é uma introdução à textos de Alexandra Kollontai no grupo Oposição Operária.

Aqui, não se trata de uma crítica geral a Paul Cardan, ou um estudo das mudanças que o autor (Castoriadis) desenvolveu em sua teoria nas décadas posteriores, a nosso ver, um deslocamento e empobrecimento de suas contribuições pelo recuo de perspectiva na luta de classes. Como esboço crítico destas mudanças, sugerimos o texto recém-publicado, aqui mesmo, de Yvon Bourdet.

Todo ensaio de crítica ao ano de 1917 e seus desdobramentos e heranças tem um peso no debate marxista sobre o movimento operário e ao proletariado revolucionário. A Rússia de 1905 e de 1917 permite a compreensão das lutas dos trabalhadores na aurora do que entendemos hoje por lutas autogestionárias e, consequentemente, seus entraves contrarrevolucionários, apresentados como comunistas, ou seja, a moribunda, porém insistente, herança bolchevique. Entendemos que o significado de comunismo enquanto movimento do proletariado revolucionário tem, em 1905 e 1917, todo um peso e importância que rompem a distância que as datas porventura trazem ao presente momento.

A crítica ao bolchevismo e suas respectivas heranças é sempre atual. A luta cultural perpassa a luta de classes, o significado de comunismo e marxismo são arduamente disputados. Temos aqui, portanto, o centro da contribuição do ensaio de Cardan, significativamente publicado no ano de 1963, pouco antes das explosões de 1968: o ensaio deixa claro que a chamada degeneração burocrática da revolução de 1917 não foi posterior ao processo, ela já estava no bojo do movimento, ou seja, ela é determinação fundamental das lutas que se seguiram e essência do bolchevismo (independentemente de quais perspectivas se encontrem no seu interior, mesmo que procurem se autolegitimar como distintas e antagônicas).

Contribuições do ensaio

1. A questão da historiografia

Logo de início, Cardan chama atenção para a questão da historiografia, aqui entendida como escrita da história. Ao localizar os textos de Alexandra Kollontai na Oposição Operária como atores da revolução e como fontes, recorda o péssimo juízo seletivo dos historiadores que, grosso modo, não atentam ou não tem mesmo interesse pelas lutas espontâneas dos trabalhadores, preferindo, para a composição de seus estudos – e obviamente para a autolegitimação de suas perspectivas políticas – o deslocamento das lutas do proletariado revolucionário. A historiografia não é o centro do ensaio de Cardan, mas a todo estudioso da chamada “revolução russa” (dedicaremos à essa nomenclatura algumas questões), o trecho abaixo é fundamental:

Infelizmente, não são os trabalhadores que escrevem a história, são sempre “os outros”. E estes “outros”, sejam eles quem forem, só existem historicamente porque os trabalhadores são passivos ou na medida em que são somente ativos no sentido de fornecer apoio aos “outros”. Na maioria das vezes, historiadores “oficiais” não têm olhos para ver ou ouvidos para ouvir os atos e palavras que expressam a atividade espontânea dos trabalhadores. No melhor dos casos, eles exaltarão a atividade de base desde que ela “milagrosamente” coincida com sua própria concepção, mas condenarão radicalmente os que desviarem desta imputando os motivos mais infames para retornar a ela. (…) Os historiadores “oficiais” não têm as categorias de pensamento – pode-se dizer também as células cerebrais – necessárias para entender ou mesmo perceber essa atividade como ela realmente é. Para eles, uma atividade que não tem líder ou programa, nem instituições e estatutos, só pode ser descrita como “problemas” ou “desordem”. Por definição, a atividade espontânea das massas pertence ao que a história suprime.

Como afirmado no início, se “comunismo”, “marxismo” e outros conceitos são locais de luta cultural como parte da luta de classes, ela não deixa de ocorrer com a “revolução russa” que tem, em grande medida, toda uma historiografia marcada pelas próprias perspectivas de classe que a disputaram, bem como e, infelizmente, uma forte herança bolchevique. A breve nota de Cardan, insistimos, é fundamental.

  • O bolchevismo como determinação fundamental da burocratização

Sendo a historiografia marcada pelo apagar das lutas espontâneas dos trabalhadores, ela é resultado, em consequência, da hegemonia do bolchevismo. Temos aqui, portanto, um desdobramento historiográfico bem pontuado pela tese central de Cardan no ensaio: o bolchevismo tem, em sua essência, em sua compreensão da organização do movimento proletário, das estratégias de luta e da própria revolução, “comunista”, a burocratização como resultado da reprodução (ideologicamente ocultada), das relações de classe da divisão social do trabalho do modo de produção capitalista.

O bolchevismo nada mais é do que uma fração da classe burocrática, radicalizada, e em luta por sua autonomização. A contradição é bem expressa: ou as lutas espontâneas e autogestionárias dos trabalhadores, ou seu cerceamento e dominação pela autonomização de uma fração da classe burocrática em nome dos trabalhadores, contudo, contra esses mesmos trabalhadores.

A seção “Sobre os meios e os fins” revela de modo didático essa questão, quanto aos argumentos, recorrentes na historiografia e no debate sobre o processo revolucionário, quanto à necessidade de reorganização da produção industrial e agrícola após as destruições e reorientações da guerra civil aberta, entre os anos de 1917 – 1921.

A ideia de que os mesmos meios não podem servir a diferentes fins, que há uma relação intrínseca entre os instrumentos utilizados e os resultados obtidos, que nem a fábrica nem o exército são simples “meios” ou “instrumentos”, mas estruturas sociais nas quais dois aspectos fundamentais das relações humanas (produção e violência) estão organizados, que o que pode ser observado nelas é uma expressão essencial das relações sociais caracterizando um período — estas ideias, originalmente óbvias para os marxistas, foram completamente “esquecidas”. A produção teve que ser desenvolvida utilizando métodos e estruturas que se “provaram por si mesmas”. Que a principal “prova” desses métodos tenha sido o desenvolvimento do capitalismo como sistema social, e que o que uma fábrica produz não é apenas tecido e aço, mas proletariado e capital, foram fatos que foram totalmente ignorados.

Esse “esquecimento” obviamente esconde algo mais. Na época, é claro, havia uma preocupação desesperada para aumentar a produção e restabelecer uma economia que estava em colapso. Mas essa preocupação não dita necessariamente a escolha de “meios”. Se parecia óbvio para os líderes bolcheviques que os únicos métodos eficientes eram os capitalistas, era porque estavam imbuídos da convicção de que o capitalismo era o único sistema de produção eficiente e racional. Eles certamente queriam abolir a propriedade privada e a anarquia do mercado, mas não o tipo de organização que o capitalismo havia alcançado no ponto de produção. Eles queriam mudar a economia, o padrão de propriedade e a distribuição da riqueza, mas não as relações entre os homens no trabalho ou a natureza do próprio trabalho.

  • Esboço do entendimento da burocracia como classe social

Os problemas herdados pela historiografia da revolução, bem como o destaque do bolchevismo como determinação fundamental e componente central da degeneração burocrática, desde a essência, permitem a terceira contribuição de Cardan com este ensaio, a saber, o esboço do entendimento da burocracia como classe social.

A reflexão do autor no tópico “Burocracia no mundo moderno” traz a questão da burocracia como classe ao procurar por modelos de arranjos de classe que deram lastro à acumulação de capital, pela comparação das distintas experiências, entre aquelas dos países de capitalismo desenvolvido e as de capitalismo atrasado. Cardan então localiza a experiência russa e soviética no interior das comparações, indicando que a classe burocrática ora se apresenta enquanto frações dominadas e auxiliares da classe dominante (no capitalismo desenvolvido), ora como frações radicalizadas e em luta por autonomização em nome da acumulação de capital e do desenvolvimento nacional (países atrasados).

A questão de destaque de Cardan, quanto aos países de capitalismo atrasado, é a seguinte:

Em quase todas as sociedades atrasadas, é evidente que as antigas classes dominantes são incapazes de realizar a industrialização. O capital estrangeiro cria, na melhor das hipóteses, apenas bolsões isolados de exploração moderna. A jovem burguesia nativa não tem a força nem a coragem para revolucionar a velha estrutura social de cima para baixo, na forma que uma verdadeira modernização exigiria. Podemos acrescentar que a classe operária nativa, por causa deste fato, é muito fraca (…). Ela é fraca demais para eliminar as velhas classes dominantes e assumir uma transformação social que levaria, sem interrupção, da democracia burguesa para o socialismo.

Temos então o convite para pensarmos a burocracia como classe social e suas relações com as classes fundamentais do modo de produção capitalista: burguesia e proletariado. Entretanto, ao explorar a contradição entre, de um lado, a tese do bolchevismo como essência da deturpação burocrática da “revolução russa”, num cenário de outras possibilidades históricas, genuinamente revolucionárias e, de outro, a criação de um cenário no qual a explicação do mesmo se apresenta legitimada por uma forma histórica específica, que se sobrepõe aos próprios bolcheviques e seus “meios e fins”, ou seja, para enfrentar o dilema historiográfico e, sobretudo, de perspectiva de classe quanto ao contexto russo pré-revolucionário, entendemos que o próprio Cardan não torna clara a questão colocada no mesmo ensaio, de que as “interpretações do fenômeno burocrático em termos de “atraso” e/ou “isolamento” são insuficientes e anacrônicas”.

Ao apresentar o antagonismo de classes no bojo da revolução, quando das lutas sobre o caráter da produção e da gestão das fábricas, ou seja, da questão operária, Cardan aponta, mas não aprofunda, a interrogação central sobre os antagonismos entre burguesia, proletariado e burocracia: quais eram as possibilidades concretas de outros caminhos à revolução? O autor localiza os anos de 1917 a 1921 como centrais ao processo, defende a tese de que houve sufocamento das tendências antagônicas aos bolcheviques, porém, confere ao proletariado revolucionário ora um papel ambíguo, ora um papel de aceitação e subordinação. Tal ponto de vista permite manter as interrogações anteriores, mas não as desenvolve adequadamente.

Os operários não oferecem nenhuma resistência séria a esse desenvolvimento, ou melhor, a esta súbita revelação da natureza essencial do Partido Bolchevique. Pelo menos, não temos provas diretas de que eles fizeram. Entre a expropriação dos capitalistas e a tomada das fábricas (1917-1918) e as greves de Petrogrado e a revolta de Kronstadt (inverno de 1920-1921), não temos expressão articulada de atividade autônoma dos operários. A Guerra Civil e a contínua mobilização militar, a preocupação com os problemas práticos imediatos (produção, abastecimento de alimentos, etc.), a obscuridade dos problemas e, sobretudo, a confiança dos operários no “seu” partido, respondem em parte por esse silêncio.

Há certamente dois elementos na atitude dos operários. Por um lado, há o desejo de se livrar de toda dominação e de tomar a direção de seus assuntos em suas próprias mãos. Por outro lado, há uma tendência de delegar o poder a um partido, que provou ser irreconciliavelmente oposto aos capitalistas e que estava liderando a guerra contra eles. A contradição entre esses dois elementos não foi claramente percebida na época, e é tentado a dizer que não poderia claramente ter sido percebida.

Os limites de Cardan em “Do bolchevismo à burocracia”: o que é o marxismo neste ensaio?

A crítica a este ponto de vista permite abrirmos a última seção de nossa reflexão, quanto aos limites de Cardan neste ensaio de 1963. Em primeiro lugar, recordamos a questão historiográfica que o próprio autor destacou, quanto à natureza das fontes históricas e o silenciamento das lutas espontâneas dos trabalhadores. Deste ponto de vista, se de um lado é razoável, como faz o autor, aludir à questão das classes e da consciência de classe, quanto às derrotas do proletariado revolucionário diante dos bolcheviques e a compreensão do que estava em jogo (“e é tentado a dizer que não poderia claramente ter sido percebida”), por outro é possível tornar mais claro o processo que se alude, chamando de contrarrevolução burocrática bolchevique o período de sufocamento das tendências críticas do partido, bem como das rebeliões, recusas e lutas espontâneas contra a orientação taylorista da divisão social do trabalho.

A forma pela qual se nomeia uma época ou parte de um período de lutas não é uma mera escolha formal, pelo contrário, define e deixa clara a perspectiva de classe do autor. Chamar de revolução russa todo o período que o ensaio de Cardan abarca não é prudente àqueles que tem na perspectiva das lutas espontâneas e do proletariado revolucionário o seu modo de leitura do período 1905-1917-1922. Denominar como contrarrevolução burocrática bolchevique os desdobramentos da revolução russa demonstra o cuidado com a perspectiva teórica e de classe, bem como traz à tona o que se entende por marxismo.

E neste ponto, o que se entende por marxismo, que vamos destacar outros dois elementos ou limites do ensaio de Cardan. O segundo retorna ao trecho sobre as ambiguidades do movimento operário diante dos bolcheviques. Após marcar que há margem para ajuizarmos que o proletariado revolucionário “não poderia”, “não tinha condições” de entender o que estava em jogo, Cardan assinala, quanto à ambiguidade do desejo de tomar as rédeas do processo (a questão da divisão social do trabalho e da sociedade como um todo) e a tendência de conferir poder ao Partido, que:

A contradição entre esses dois elementos não foi claramente percebida na época, e é tentado a dizer que não poderia claramente ter sido percebida.

No entanto, isso foi visto, e com grande perspicácia, dentro do próprio Partido. Desde o início de 1918 até a proibição das frações em março de 1921, houve tendências dentro do Partido Bolchevique que se opunham à linha do Partido e à rápida burocratização com espantosa clareza e nitidez. Estes eram os “Comunistas de Esquerda” (no início de 1918), a facção “Centralista Democrática” (1919) e a “Oposição Operária” (1920-1921).

Entendemos que se Cardan tivesse aprofundado a análise a partir das classes sociais, poderia apontar a questão dos intelectuais dissidentes do Partido e suas relações antagônicas com a classe burocrática, no bojo do processo de lutas, não somente como distinções entre “perceber” e “ver”, como aludido nos trechos, mas do próprio entendimento do que é a teoria revolucionária e como ela se expressa enquanto ação. Os grupos divergentes não eram apenas intelectuais bolcheviques dissidentes. Podemos entendê-los como pessoas que expressavam teoricamente o bloco revolucionário que estava no centro do processo e avançavam, tanto na leitura e nas ações, quanto no interior da teoria marxista. Se de um lado, o marxismo era ideologicamente deturpado pelos bolcheviques, por outro, o bloco revolucionário elaborava avanços significativos na perspectiva de luta do proletariado revolucionário.

O leitor que chegou até aqui talvez esteja questionando o nosso “preciosismo” nestas notas críticas, contudo, os problemas que destacaremos a seguir tornam mais claros os por quês da necessidade desta orientação. No ensaio, Cardan não apresenta uma perspectiva clara e autêntica do marxismo (do marxismo como expressão teórica do proletariado revolucionário), o que o leva a jogar ideias confusas.

Comecemos com esta posição, ainda no começo do texto, de que a revolução russa “(…) destruiu o pensamento marxista clássico ao cumpri-lo, e cumpriu o conteúdo mais profundo de outros sistemas de pensamento, por meio de sua aparente refutação.” Quanto à contrarrevolução bolchevique ter cumprido outros sistemas de pensamento, não há grandes dúvidas, tendo como resultado o capitalismo de estado soviético e todo o debate sobre violência militar e taylorização da produção que desenvolveram. Mas, perguntamos: que pensamento marxista clássico a revolução destruiu? Primeiro, que pensamento é esse? Seria o marxismo vulgar, etapista, quanto ao grau de desenvolvimento das forças produtivas como critério central para a contradição com as novas e revolucionárias relações de produção? Ora, este pensamento é do marxismo vulgar, do pseudomarxismo, não do clássico (no que deveria ser isso), nem do marxismo autêntico. Neste quadro, Cardan parece focalizar sua teoria da revolução “cumprida” mais numa leitura bolchevique do Manifesto do Partido Comunista do que em A guerra civil na França, mais em comentadores de Marx, do que no próprio autor da Crítica ao Programa de Gotha.

Quanto ao desenvolvimento das forças produtivas como critério revolucionário, “destruído” pelos bolcheviques, não há o apuro de textos fundamentais que deslocam este falso critério, seja a carta-resposta de Marx à pergunta de Vera Zasulitch, ou a própria interpretação da Comuna de Paris, desmistificando a questão do período de transição e do estado “operário”. Estes pontos permitiriam a Cardan não apenas entender as dissidências internas do partido bolchevique como formas distintas de “ver” a revolução, mas também ponderá-las como atualizações ou resistências e expressões, pelo bloco revolucionário, da teoria do proletariado revolucionário, ou seja, do próprio marxismo autêntico e, portanto, não da destruição do “marxismo clássico”.

A questão do que é marxismo culmina no entendimento das próprias categorias centrais do pensamento marxista. Neste sentido, o terceiro limite que apontamos ao ensaio de Cardan se refere ao momento no qual o autor demarca o fenômeno da ascensão e protagonismo da classe burocrática nos países de capitalismo atrasado. Novamente, o autor explora a ideia de que um determinado fenômeno gera a destruição da teoria, desta vez, “das categorias tradicionais”:

O surgimento desse tipo de burocracia explodiu as categorias tradicionais do marxismo. De forma alguma essa nova classe social se formou, cresceu e se desenvolveu gradualmente dentro do ventre da sociedade anterior. A nova classe não surge devido ao desenvolvimento de novos modos de produção, cuja extensão se tornou incompatível com as antigas relações sociais e econômicas. Ao contrário, a burocracia que traz à existência o novo modo de produção. A burocracia nem sequer surge fora do funcionamento normal da sociedade. Ela surge do fato de que a sociedade não é mais capaz de funcionar. 

Algo exagerado e, sobretudo, equivocado, este ponto de vista. Se a classe burocrática em países de capitalismo atrasado “Explodiu as categorias tradicionais do marxismo”, neste caso, novamente, foi do pseudomarxismo.

No método dialético, com as categorias da totalidade e da especificidade, os distintos modos pelos quais os processos se desenvolvem não são entendidos numa linearidade ou evolução pré-determinada. Ao tratar da determinação fundamental (o modo de produção capitalista, suas classes fundamentais, a acumulação de capital e consequente exploração do trabalho produtivo), não se desloca ou esquece os caminhos específicos de cada processo, sobretudo, tendo em vista a luta de classes como componente central das transformações sociais. Isto significa que o modo de produção possui características distintas entre diferentes sociedades, mas, ao mesmo tempo, integradas.

Se a determinação fundamental é o modo de produção, no modo de produção capitalista é a exploração do trabalho produtivo para extração do mais-valor, tendo a dinâmica da luta de classes como condutora das mudanças. As classes fundamentais são burguesia e proletariado, na qual a burocracia (e suas frações) emergem como classes auxiliares da burguesia. A luta de classes tem de ser analisada minuciosamente para se entender, no caso citado, o processo de autonomização da classe burocrática. Neste sentido, apenas a análise bem realizada pode chegar a conclusões significativas.

A análise de um caso concreto não se dá por esquemas pré-determinados em modelos. O método dialético convoca o entendimento das dinâmicas das lutas de classe. Se uma classe “surge”, como afirma Cardan no trecho, a explicação se dá nesta própria sociedade e suas dinâmicas internas e externas, nas relações sociais concretas, nas lutas de classe. Assim, podemos argumentar que de auxiliar, na autonomização problematizada por Cardan, a burocracia torna-se burguesia burocrática, levando em consideração, por exemplo, a experiência soviética.

Em todo caso, caberia ao autor aprofundar sua explicação, ao invés de jogar a ideia e defini-la como “destruidora”. No que tange ao marxismo autêntico e às categorias de seu respectivo método dialético, portanto, não há aí destruição, pelo contrário, há convite à investigação.

Ricardo Golovaty, maio de 2021.


Ensaio escrito por Cornelius Castoriadis em 1963 como uma introdução à tradução francesa da “Oposição Operária” de Kollontai. Traduzido e publicado pelo Solidarity [Solidariedade] (Londres) em março de 1967 (Solidarity pamphlet [Panfleto Solidário], nº 24).

“A submissão inquestionável a uma única vontade é absolutamente necessária para o sucesso dos processos de trabalho que se baseiam na indústria de máquinas em larga escala… A revolução exige, no interesse do socialismo, que as massas obedeçam inquestionavelmente à vontade única dos líderes do processo de trabalho.”[1]

“Considero que se a guerra civil não tivesse saqueado nossos órgãos econômicos de tudo o que era mais forte, mais independente, mais dotado de iniciativa, teríamos sem dúvida entrado no caminho da gestão de um homem só na esfera da administração econômica muito mais cedo e muito menos dolorosamente.”[2]

Introdução por Maurice Brinton

Em 1962, o SOLIDARITY decidiu republicar o artigo de Alexandra Kollontai sobre “A Oposição Operária na Rússia” que era difícil de obter na Grã-Bretanha há mais de trinta anos[3]

O texto de Kollontai, escrito às pressas nas semanas que precederam Décimo Congresso do Partido Bolchevique (março de 1921), descreve o crescimento da burocracia na Rússia de uma maneira muito perceptiva e quase profética. Ele trata detalhadamente da grande controvérsia (gestão individual ou gestão coletiva da indústria) e, em seguida, afrontando o Partido, adverte, em termos apaixonados, sobre os perigos inerentes ao curso que então perseguido. Ele coloca as alternativas nos termos mais claros possíveis: o controle burocrático de cima ou a atividade autônoma e criativa das próprias massas.

Em 1964, o clássico de Kollontai foi traduzido para o francês e publicado na edição nº 35 da revista “SOCIALISME OU BARBARIE”, com um prefácio de Paul Cardan sobre “O Papel da Ideologia Bolchevique no Desenvolvimento da Burocracia“. O panfleto agora em suas mãos é uma tradução deste prefácio[4]

Acreditamos que o texto de Cardan seja importante por duas razões principais: Em primeiro lugar, porque ainda há uma crença generalizada entre os revolucionários de que a degeneração burocrática da Revolução Russa só começou depois — e em grande parte como resultado – da Guerra Civil. Este panfleto vai longe ao mostrar que esta é uma interpretação incompleta do que aconteceu. O isolamento da revolução, a devastação da Guerra Civil, a fome e as tremendas dificuldades materiais enfrentadas pelos bolcheviques, sem dúvida, aceleraram o processo de degeneração burocrática, imprimindo-lhe muitas de suas características específicas. No entanto, as sementes tinham sido semeadas antes. Isto pode ser visto por qualquer um seriamente preparado para estudar os escritos e discursos, as proclamações e decretos dos bolcheviques nos meses que se seguiram à sua ascensão ao poder. Em última análise, as ideias que inspiram as ações dos homens são um fator tão objetivo na história quanto o ambiente material no qual as pessoas vivem como a realidade social que elas buscam transformar.

Em segundo lugar, o texto é de interesse devido às diversas nuances que lança sobre o conceito de burocracia, termo que às vezes temos sido culpados de usar sem uma definição adequada. Cardan mostra como uma burocracia gerencial pode surgir de antecedentes históricos muito diferentes. Pode surgir da degeneração de uma revolução proletária, ou como uma “solução” para o estado de crise crônica dos países economicamente atrasados, ou, finalmente, como a personificação final do capital de estado nas comunidades industriais modernas. Cardan aponta as características comuns dessas burocracias, bem como os aspectos importantes nos quais elas diferem. Sem dúvida, tal análise destrói muitas dos esquemas ordenados do pensamento socialista tradicional. Que pena! Isto só precisa preocupar os conservadores do movimento revolucionário.


 Do bolchevismo à burocracia – Paul Cardan

1. O Significado da Revolução Russa

As discussões sobre a Revolução Russa, seus problemas, sua degeneração e sobre a sociedade que ela finalmente produziu, não podem ser encerradas. E como poderiam ser? De todas as revoluções da classe operária, a Revolução Russa foi a única “vitoriosa”. Mas ela também provou o mastro profundo e instrutivo de todas as derrotas da classe operária.

O esmagamento da Comuna de Paris em 1871 – ou da revolta de Budapeste de 1956 – mostrou que as revoltas proletárias enfrentam problemas imensamente difíceis de organização e política. Elas mostraram que uma insurreição pode ser isolada e que as classes dominantes não hesitarão em empregar qualquer violência ou selvageria quando seu poder estiver em jogo. Mas o que aconteceu com a Revolução Russa nos obriga a considerar não apenas as condições para a vitória da classe operária, mas também o conteúdo e o possível destino dessa vitória, sua consolidação, seu desenvolvimento e as sementes que ela poderia conter de uma derrota, infinitamente mais abrangente do que as infligidas pelas tropas de Versalhes ou pelos tanques de Kruschev.

Como a Revolução Russa esmagou os exércitos brancos e sucumbiu a uma burocracia que ela própria havia gerado, ela nos confronta com problemas de uma ordem diferente daqueles envolvidos no estudo de táticas de insurreição armada. Ela exige mais do que apenas uma análise correta da relação de forças em um dado momento. Ela nos obriga a pensar sobre a natureza do poder da classe operária e sobre o que queremos dizer com socialismo. A Revolução Russa culminou em um sistema no qual a concentração da economia, o poder totalitário dos governantes e a exploração dos trabalhadores foram levados ao limite, produzindo uma forma extrema de centralização do capital e de sua fusão com o Estado. Isto resultou no que era — e de muitas maneiras ainda permanece — a forma mais desenvolvida e “mais pura” da sociedade moderna de exploração.

Encarnando o marxismo pela primeira vez na história – apenas para mostrá-lo logo depois como uma caricatura deformada – a Revolução Russa tornou possível que revolucionários distantes obtivessem insights sobre o marxismo muito maiores do que até então aquele marxismo havia fornecido para a compreensão da Revolução Russa. O sistema social que a revolução produziu tornou-se a pedra de toque de todo o pensamento atual, tanto burguês como marxista.

Ela destruiu o pensamento marxista clássico ao cumpri-lo, e cumpriu o conteúdo mais profundo de outros sistemas de pensamento, por meio de sua aparente refutação. Devido à sua extensão sobre mais de um terço do globo, por causa das recentes revoltas operárias contra ela, por suas tentativas de autorreforma e pela sua cisão em seções russas e chinesas, a sociedade burocrática pós-revolucionária continua a colocar questões altamente atuais. O mundo em que vivemos, pensamos e agimos, foi lançado em seu curso atual pelos trabalhadores e bolcheviques de Petrogrado, em outubro de 1917.

2. As Principais Questões

Entre as inúmeras questões colocadas pelo destino da Revolução Russa, há duas que formam polos em torno dos quais as outras podem ser agrupadas.

A primeira questão é: que tipo de sociedade foi produzida pela degenerescência da Revolução? (Qual é a natureza e a dinâmica desse sistema? O que é a burocracia russa? Qual é a sua relação com o capitalismo e o proletariado? Qual é o seu papel histórico e quais são seus problemas atuais?)  A segunda questão é: como uma revolução operária poderia dar origem a uma burocracia e como isto aconteceu na Rússia? Estudamos esse problema em nível teórico[5], mas até agora temos dito pouco sobre os acontecimentos concretos da história.

Há um obstáculo quase intransponível para o estudo do período particularmente obscuro que vai de outubro de 1917 a março de 1921 durante o qual o destino da Revolução foi estabelecido. A questão mais preocupante para nós é a de decidir até que ponto os trabalhadores russos procuraram tomar o controle de sua sociedade em suas próprias mãos. Até que ponto eles aspiraram a gerir a produção, regular a economia e decidir eles mesmos as questões políticas? Qual era o nível de consciência deles e qual era sua própria atividade espontânea? Qual foi a atitude deles em relação ao Partido Bolchevique e à burocracia em desenvolvimento?

Infelizmente, não são os trabalhadores que escrevem a história, são sempre “os outros”. E estes “outros”, sejam eles quem forem, só existem historicamente porque os trabalhadores são passivos ou na medida em que são somente ativos no sentido de fornecer apoio aos “outros”. Na maioria das vezes, historiadores “oficiais” não têm olhos para ver ou ouvidos para ouvir os atos e palavras que expressam a atividade espontânea dos trabalhadores. No melhor dos casos, eles exaltarão a atividade de base desde que ela “milagrosamente” coincida com sua própria concepção, mas condenarão radicalmente os que desviarem desta imputando os motivos mais infames para retornar a ela. Trotsky, por exemplo, descreveu os trabalhadores anônimos de Petrogrado em termos brilhantes quando se reuniram no Partido Bolchevique ou quando se mobilizaram durante a Guerra Civil. Mas, posteriormente, ele chamaria os insurretos de Kronstadt de “informantes” e “mercenários do alto comando francês”. Os historiadores “oficiais” não têm as categorias de pensamento – pode-se dizer também as células cerebrais – necessárias para entender ou mesmo perceber essa atividade como ela realmente é. Para eles, uma atividade que não tem líder ou programa, nem instituições e estatutos, só pode ser descrita como “problemas” ou “desordem”. Por definição, a atividade espontânea das massas pertence ao que a história suprime.

Não é apenas que o registro documental dos eventos que nos interessam seja fragmentário, ou mesmo que foi e permanece sistematicamente suprimido pela burocracia triunfante. O que é mais importante é que o registro que temos é infinitamente mais seletivo e orientado do que qualquer outra evidência histórica. A raiva reacionária das testemunhas burguesas, a hostilidade quase igualmente cruel dos socialdemocratas, os gemidos confusos dos anarquistas, as crônicas “oficiais” que são periodicamente reescritas de acordo com as necessidades da burocracia, as “histórias” trotskistas que se preocupam apenas em justificar sua própria tendência retrospectivamente (e em esconder o papel que o trotskismo desempenhou no início da degenerescência) — tudo isso tem uma coisa em comum: ignoram a atividade autônoma das massas, ou, na melhor das hipóteses, “provam” que era logicamente impossível que ela existisse.

Deste ponto de vista, as informações contidas no texto[6] de Alexandra Kollontai são de valor inestimável. Em primeiro lugar, Kollontai fornece evidências diretas sobre as atitudes e reações de toda uma camada de trabalhadores russos à política do Partido Bolchevique. Em segundo lugar, ela mostra que grande parte da base da classe operária do Partido estava consciente da burocratização e lutou contra ela. Uma vez lido este texto, não será mais possível continuar descrevendo a Rússia de 1920 como “apenas o caos”, como “apenas uma massa de ruínas”, onde as ideias de Lênin e a “vontade de ferro” dos bolcheviques eram os únicos elementos de ordem. Os trabalhadores tinham suas próprias aspirações. Eles a mostraram através da Oposição Operária dentro do Partido, e através das greves de Petrogrado e da revolta de Kronstadt fora do Partido. Era necessário que ambos fossem esmagados por Lênin e Trotsky para que Stálin saísse vitorioso.

3. As “Respostas” Tradicionais

Como poderia a Revolução Russa ter produzido a burocracia? A resposta recorrente (primeiro apresentada por Trotsky, posteriormente retomada pelos companheiros de viagem do stalinismo e, mais recentemente, ainda por Isaac Deutscher) consiste em “explicar” as “deformações burocráticas” do que é “fundamentalmente um sistema socialista” ao apontar que a Revolução ocorreu em um país atrasado, que não poderia ter construído o socialismo por si só, que a Rússia estava isolada pela derrota da revolução na Europa (e mais particularmente na Alemanha entre 1919 e 1920) e que o país tinha sido completamente devastado pela Guerra Civil.

Esta resposta não mereceria um momento de consideração, se não fosse pelo fato de sê-la amplamente aceita e de continuar a desempenhar um papel mistificador. A resposta é, de fato, completamente fora de questão.

O atraso do país, seu isolamento e a devastação generalizada – todos fatos indiscutíveis – poderiam igualmente ter resultado em uma derrota direta da Revolução e na restauração do capitalismo clássico. Mas o que está sendo perguntado é precisamente por que não ocorreu uma derrota tão simples, por que a revolução derrotou seus inimigos externos apenas para entrar em colapso internamente, por que a degeneração tomou a forma específica que levou ao poder a burocracia.

A resposta de Trotsky, se usarmos uma metáfora, é como dizer: “Este paciente desenvolveu tuberculose porque ele estava terrivelmente debilitado.” Mas estando debilitado, o paciente poderia ter morrido ou contraído outra doença. Por que ele contraiu esta doença em particular? O que precisa ser explicado na degeneração da Revolução Russa é por que ela foi especificamente uma degeneração burocrática. Isto não pode ser feito referindo-se a fatores tão gerais como “atraso” ou “isolamento”. Podemos acrescentar, de passagem, que essa “resposta” nada nos ensina que possamos estender para além dos limites da situação russa. A única conclusão a ser tirada desse tipo de “análise” é que os revolucionários devem esperar ardentemente que futuras revoluções só devem eclodir nos países mais avançados, que não devem permanecer isoladas e que as guerras civis não devem, sempre que possível, levar ao caos ou à devastação.

Além do mais, o fato de que durante os últimos vinte anos, o sistema burocrático tenha estendido suas fronteiras muito além daquelas da Rússia, que se tenha instalado em países que dificilmente podem ser chamados de “atrasados” (por exemplo, Tchecoslováquia e Alemanha Oriental) e que a industrialização — que fez da Rússia a segunda potência do mundo — não tenha de forma alguma enfraquecido essa burocracia, mostra que interpretações do fenômeno burocrático em termos de “atraso” e/ou “isolamento” são insuficientes e anacrônicas.

4. Burocracia no Mundo Moderno

Se quisermos compreender o surgimento da burocracia como uma classe cada vez mais importante no mundo moderno, devemos primeiro notar que, paradoxalmente, ela surgiu nos dois polos opostos do desenvolvimento social. Por um lado, a burocracia gerencial tem aparecido como um produto natural na evolução das sociedades capitalistas plenamente desenvolvidas. Por outro lado, ela surgiu como a “resposta forçada” dos países atrasados aos problemas de sua própria transição para a industrialização. A burocracia russa é uma variante particular, e será discutida após as outras duas.

A. Sociedades capitalistas modernas

Aqui não há mistério sobre o surgimento da burocracia. A concentração da produção leva necessariamente à formação dentro da indústria de um estrato gerencial, cuja função é, coletivamente, assumir a gestão de imensas unidades econômicas e a administração que está além das capacidades de qualquer proprietário individual. O papel crescente desempenhado pelo Estado, tanto na economia como em outras esferas, leva tanto a uma extensão quantitativa da máquina burocrática do Estado quanto a uma mudança qualitativa em sua natureza.

Dentro da sociedade capitalista moderna, o movimento da classe operária degenera-se através da burocratização. Ele torna-se burocrático integrando-se na ordem estabelecida, e não pode ser tão integrado sem ser burocratizado. Em uma sociedade capitalista moderna, os diferentes elementos que constituem a burocracia — técnico-econômico, político-estatal, “operário” — coexistem com diferentes graus de sucesso. Eles coexistem uns com os outros e com os elementos verdadeiramente “burgueses” (proprietários dos meios de produção). A importância desses novos elementos na gestão da sociedade moderna está aumentando constantemente. Neste sentido, pode-se dizer que o surgimento da burocracia corresponde a uma fase final na concentração de capital, e que a burocracia é a personificação do capital durante essa fase, da mesma forma que a burguesia foi sua personificação durante a fase anterior.

No que diz respeito às suas origens e seus papéis históricos e sociais, a natureza desse tipo particular de burocracia pode ser entendida em termos das categorias marxistas clássicas. (Não importa a este respeito que aqueles que hoje afirmam ser marxistas fiquem tão aquém das possibilidades de sua própria teoria que não podem dar qualquer definição histórico-social da burocracia moderna. Eles acreditam que em sua teoria não há espaço para tal coisa como a burocracia, e por isso negam sua existência e falam do capitalismo moderno como se nada tivesse mudado fundamentalmente nos últimos 50 ou 100 anos).

B. Os países economicamente “atrasados”

Pode-se dizer que aqui a burocracia surge por causa de um vazio na sociedade. Em quase todas as sociedades atrasadas, é evidente que as antigas classes dominantes são incapazes de realizar a industrialização. O capital estrangeiro cria, na melhor das hipóteses, apenas bolsões isolados de exploração moderna. A jovem burguesia nativa não tem a força nem a coragem para revolucionar a velha estrutura social de cima para baixo, na forma que uma verdadeira modernização exigiria. Podemos acrescentar que a classe operária nativa, por causa deste fato, é muito fraca para desempenhar o papel que lhe atribuído na teoria de Trotsky da “revolução permanente”. Ela é fraca demais para eliminar as velhas classes dominantes e assumir uma transformação social que levaria, sem interrupção, da democracia burguesa para o socialismo.

O que acontece depois? Uma sociedade atrasada pode estagnar por um período longo ou curto. Esta é a situação atual de muitos países atrasados, que tenham sido recentemente constituídos em Estados ou tenham sido Estados há algum tempo. Mas essa estagnação significa, de fato, uma diminuição relativa e às vezes até mesmo absoluta dos padrões sociais e econômicos, e constantes rupturas no velho equilíbrio social. Isso é quase sempre agravado por fatores que parecem acidentais, mas que são realmente inevitáveis e que são geralmente ampliados em uma sociedade que está se desintegrando. Cada ruptura no equilíbrio se desenvolve em uma crise, quase sempre colorida por algum componente nacional. O resultado pode ser uma luta social e nacional aberta e prolongada (China, Argélia, Cuba, Indochina), ou pode ser um golpe de Estado, quase inevitavelmente de natureza militar (Egito). Os dois exemplos são muito diferentes, mas também têm características em comum.

No primeiro tipo de exemplo (China, etc.), a liderança político-militar da luta se desenvolve gradualmente em uma casta independente, que dirige a “revolução” e, após a “vitória”, toma em mãos a reconstrução do país. Para este fim, ela incorpora elementos convertidos das velhas classes privilegiadas e busca uma certa base popular. Além de desenvolver a indústria do país, ela passa a constituir a pirâmide hierárquica que será o esqueleto da nova estrutura social. A industrialização é realizada, naturalmente, de acordo com os métodos clássicos de acumulação primitiva. Estes envolvem a intensa exploração dos operários e uma exploração ainda mais intensa dos camponeses, que são mais ou menos forçados a pressionar um exército industrial de trabalho.

No segundo exemplo (Egito, etc.), a burocracia estatal-militar, enquanto exerce um certo poder sobre as antigas classes privilegiadas, não as elimina completamente ou os interesses sociais que elas representam. A industrialização completa desses países provavelmente nunca será alcançada sem uma convulsão mais violenta. Mas, o que é interessante do nosso ponto de vista, é que em ambos os casos a burocracia substitui ou tende a substituir a burguesia como o estrato social que realiza a tarefa de acumulação primitiva.

O surgimento desse tipo de burocracia explodiu as categorias tradicionais do marxismo. De forma alguma essa nova classe social se formou, cresceu e se desenvolveu gradualmente dentro do ventre da sociedade anterior. A nova classe não surge devido ao desenvolvimento de novos modos de produção, cuja extensão se tornou incompatível com as antigas relações sociais e econômicas. Ao contrário, a burocracia que traz à existência o novo modo de produção. A burocracia nem sequer surge fora do funcionamento normal da sociedade. Ela surge do fato de que a sociedade não é mais capaz de funcionar. Quase literalmente, ela se origina de um vácuo social. Suas raízes históricas estão inteiramente no futuro. É evidente que não faz sentido dizer que a burocracia chinesa, por exemplo, se origina da industrialização do país. Seria muito mais preciso dizer que a industrialização é o resultado da ascensão da burocracia ao poder. Na época atual, e na ausência de uma solução revolucionária em escala internacional, um país atrasado não pode ser industrializado sem ser burocratizado.

C. Rússia

Aqui, a burocracia parece ter desempenhado retrospectivamente o papel histórico da burguesia de um período anterior, ou da burocracia de um país atrasado hoje, e pode, portanto, ser identificada até certo ponto com este último. As condições em que surgiu, no entanto, eram totalmente diferentes. Eram diferentes precisamente porque a Rússia não era simplesmente um país “atrasado” em 1917, mas um país que, lado a lado com seu atraso, apresentava certas características capitalistas bem desenvolvidas. (Afinal, a Rússia era a quinta potência industrial do mundo em 1913.) Essas características capitalistas eram tão bem desenvolvidas que a Rússia era o teatro de uma revolução proletária, que se autodenominava socialista (muito antes desta palavra ter chegado a significar qualquer coisa ou nada).

A primeira burocracia a se tornar a classe dominante na sociedade moderna, a burocracia russa, foi o produto final de uma revolução que parecia para o mundo inteiro ter dado poder ao proletariado. A burocracia russa, portanto, representa um terceiro tipo de burocracia muito específica (embora tenha sido de fato a primeira claramente a emergir na história moderna). É a burocracia que surge da degeneração de uma revolução operária, a burocracia que é a degeneração dessa revolução. Isto permanece verdadeiro, embora a burocracia russa, desde o início, fosse em parte um estrato “gerente do capital centralizado” e, em parte, um “grupo social que visava desenvolver a indústria por todos os meios possíveis”.

5. A Classe Operária na Revolução Russa

Em que sentido pode-se dizer que a Revolução de Outubro foi proletária, dado o desenvolvimento subsequente dessa revolução? Embora a tomada do poder em outubro de 1917 tenha sido organizada e liderada pelo Partido Bolchevique — e embora este Partido tenha assumido o poder quase desde o primeiro dia — é preciso fazer essa pergunta se se recusa simplesmente a identificar uma classe com um partido que alega representá-la.

Muitas pessoas (vários social-democratas, diversos anarquistas e o Partido Socialista da Grã-Bretanha) disseram que nada realmente aconteceu na Rússia, exceto um golpe de Estado realizado por um Partido que, tendo de alguma forma obtido o apoio da classe operária, procurou apenas estabelecer sua própria ditadura e conseguiu fazê-lo.

Não queremos discutir essa questão de forma acadêmica. Nosso objetivo não é decidir se a Revolução Russa merece o rótulo de revolução proletária. As perguntas que são importantes para nós são diferentes. A classe operária russa teve um papel histórico próprio durante este período? Ou era apenas uma espécie de infantaria, mobilizada para servir aos interesses de outras forças já estabelecidas? Será que a classe operária russa aparecia como uma força relativamente autônoma no grande tornado de ações, demandas, ideias, formas de organização, destes primeiros anos? Ou foi apenas um objeto manipulado sem muita dificuldade ou risco, apenas recebendo impulsos que se originaram em outro lugar? Qualquer um com o menor conhecimento da história real da Revolução Russa poderia responder sem hesitação. O papel independente desempenhado pelo proletariado era claro e inegável. Petrogrado de 1917, e mesmo depois, não foi nem Praga em 1968, nem Cantão em 1949.

Em primeiro lugar, esse papel independente foi mostrado pela própria forma como os operários se reuniram nas fileiras do Partido Bolchevique, dando-lhe apoio, que ninguém naquela época poderia ter extorquido deles. O papel independente da classe operária é demonstrado pela relação entre os operários e esse Partido e pela forma como eles aceitaram espontaneamente os fardos da guerra civil. É demonstrado, sobretudo, por sua atividade espontânea em fevereiro e julho de 1917, e ainda mais em outubro, quando expropriaram os capitalistas sem esperar por diretrizes partidárias, e de fato, muitas vezes agindo contra tais diretrizes. É mostrado na forma como eles próprios procuraram organizar a produção. É mostrado finalmente nos órgãos autônomos que eles criaram: os comitês de fábrica e os sovietes [conselhos operários].

A Revolução só foi possível porque um vasto movimento de revolta total das massas operárias, desejando mudar suas condições de existência e livrar-se tanto dos chefes quanto do Czar, convergiu com a atividade do Partido Bolchevique. É verdade que só o Partido Bolchevique, em outubro de 1917, deu expressão articulada às aspirações dos operários, camponeses e soldados, e lhes proporcionou um objetivo preciso de curto prazo: A derrubada do Governo Provisório. Mas isto não significa que os operários eram apenas peões passivos. Sem os operários, tanto dentro como fora de suas fileiras, o Partido teria sido fisicamente e politicamente inexistente. Sem a pressão decorrente de suas atitudes cada vez mais radicais, o Partido nem sequer teria adotado uma linha revolucionária. Mesmo vários meses após a tomada do poder, não se poderia dizer que o Partido dominasse as massas operárias.

Mas essa convergência entre os operários e o Partido, que culminou na derrubada do Governo Provisório e na formação de um Governo predominantemente bolchevique, acabou sendo transitória. Sinais de divergência entre partido e massas apareceram muito cedo, embora essas divergências, por sua própria natureza, não pudessem ser tão claras quanto aquelas entre as tendências políticas organizadas. Os operários certamente esperavam da Revolução, uma mudança completa nas condições de suas vidas. Sem dúvida, eles esperavam uma melhora em suas condições materiais, embora soubessem muito bem que isso não seria possível imediatamente. Mas apenas aqueles de imaginação limitada poderiam analisar a Revolução apenas em termos desse fator, ou explicar a desilusão final dos operários pela incapacidade do novo regime de satisfazer as esperanças da classe operária de avanço material. De certa forma, a Revolução começou com uma exigência por pão. Mas, muito antes de outubro, já havia ido além do problema do pão: havia obtido o compromisso total dos homens.

Por mais de três anos, os operários russos tiveram as mais extremas privações materiais sem vacilar, a fim de abastecer os exércitos que lutaram contra os Brancos. Para eles era uma questão de liberdade da opressão da classe capitalista e de seu Estado. Organizados em comitês de fábrica e sovietes, os operários também não podiam imaginar, já antes, mas mais particularmente depois de outubro, que os capitalistas ser autorizados a permanecer. E uma vez livres dos capitalistas, descobriram que eles mesmos tinham que organizar e gerenciar a produção. Foram os próprios operários que expropriaram os capitalistas, agindo contra a linha do Partido Bolchevique (os decretos de nacionalização, aprovados no verão de 1918, apenas reconheceram um fato estabelecido). E foram os próprios operários que puseram as fábricas em funcionamento mais uma vez.

6. A Política Bolchevique

Os bolcheviques viam as coisas de forma muito diferente. Na medida em que o Partido tinha uma perspectiva clara após outubro (e ao contrário da mitologia stalinista e trotskista, existem provas documentadas de que o Partido estava totalmente às escuras quanto aos seus planos para após a tomada de poder), o Partido desejava estabelecer uma economia “bem organizada” nas linhas do “capitalismo de Estado” (uma expressão constantemente usada por Lênin) sobre a qual o “poder político da classe operária” seria sobreposto[7]. Este poder seria exercido pelo Partido Bolchevique, “o partido da classe operária”. O “socialismo” (o que Lênin claramente quer dizer – ou seja, a “direção coletiva da produção”) viria mais tarde.

Tudo isso não foi apenas uma “linha”, não apenas algo dito ou pensado. Em sua mentalidade e em suas atitudes mais profundas, o Partido foi permeado de cima a baixo pela convicção indiscutível de que ele tinha que administrar e dirigir em pleno sentido. Esta convicção data de muito antes da Revolução, como o próprio Trotsky mostrou quando, em sua biografia de Stálin, ele discute a “mentalidade do comitê”. A atitude foi compartilhada na época por quase todos os socialistas (com algumas exceções, como Rosa Luxemburgo, a tendência Gorter-Pannekoek na Holanda ou os “comunistas de esquerda” na Alemanha). Essa convicção seria tremendamente reforçada pela tomada do poder, pela guerra civil e pela consolidação do poder do Partido. Trotsky expressou essa atitude mais claramente na época, quando proclamou o “direito histórico de nascimento” do Partido.

Isso foi mais do que um mero estado de espírito. Após a tomada do poder, tudo isso se torna parte da situação social real. Os membros do partido assumem individualmente cargos de gestão em todos os domínios da vida social. É claro que isso ocorre em parte porque “é impossível fazer o contrário” — mas, por sua vez, isto logo significa que o que quer que o Partido faça, se torna cada vez mais difícil fazer o contrário.

Coletivamente, o Partido é a única instância real de poder. E, muito em breve, são apenas as cúpulas do Partido. Quase imediatamente após outubro, os sovietes são reduzidos a instituições meramente decorativas. (Como testemunha disso, é interessante notar que eles não desempenharam nenhum papel nas discussões acaloradas que precederam o Tratado de Paz de Brest-Litovsk, na primavera de 1918).

Se é verdade que as condições sociais reais dos homens determinam sua consciência, então é ilusório pedir ao Partido Bolchevique que aja de outro modo não condizente com sua verdadeira posição social. A verdadeira situação social do Partido é, de agora em diante, a de uma organização que governa a sociedade: o ponto de vista do Partido não mais coincidirá com o da própria sociedade.

Os operários não oferecem nenhuma resistência séria a esse desenvolvimento, ou melhor, a esta súbita revelação da natureza essencial do Partido Bolchevique. Pelo menos, não temos provas diretas de que eles fizeram. Entre a expropriação dos capitalistas e a tomada das fábricas (1917-1918) e as greves de Petrogrado e a revolta de Kronstadt (inverno de 1920-1921), não temos expressão articulada de atividade autônoma dos operários. A Guerra Civil e a contínua mobilização militar, a preocupação com os problemas práticos imediatos (produção, abastecimento de alimentos, etc.), a obscuridade dos problemas e, sobretudo, a confiança dos operários no “seu” partido, respondem em parte por esse silêncio.

Há certamente dois elementos na atitude dos operários. Por um lado, há o desejo de se livrar de toda dominação e de tomar a direção de seus assuntos em suas próprias mãos. Por outro lado, há uma tendência de delegar o poder a um partido, que provou ser irreconciliavelmente oposto aos capitalistas e que estava liderando a guerra contra eles. A contradição entre esses dois elementos não foi claramente percebida na época, e é tentado a dizer que não poderia claramente ter sido percebida.

No entanto, isso foi visto, e com grande perspicácia, dentro do próprio Partido. Desde o início de 1918 até a proibição das frações em março de 1921, houve tendências dentro do Partido Bolchevique que se opunham à linha do Partido e à rápida burocratização com espantosa clareza e nitidez. Estes eram os “Comunistas de Esquerda” (no início de 1918), a facção “Centralista Democrática” (1919) e a “Oposição Operária” (1920-1921).

Publicamos detalhes sobre as ideias e atividades dessas frações nas notas históricas em seguida ao texto de Kollontai[8]. As ideias desses grupos expressaram a reação dos operários no Partido — e, sem dúvida, dos círculos proletários fora do Partido — à linha capitalista-estatal da liderança. Elas expressaram o que poderia ser chamado de “o outro componente” do marxismo, aquele que exige ações dos próprios trabalhadores e proclama que sua emancipação só será alcançada através de sua própria atividade.

Mas essas frações oposicionistas foram derrotadas uma a uma, e foram finalmente destruídas em 1921, ao mesmo tempo em que a revolta de Kronstadt foi esmagada. Os fracos ecos de suas críticas à burocracia que se encontram na “Oposição de Esquerda” trotskista após 1923, não têm o mesmo significado. Trotsky se opõe à linha política errada da burocracia e ao seu poder excessivo. Ele nunca questiona a natureza essencial da burocracia. Até quase o fim de sua vida Trotsky ignora as questões levantadas pelas oposições de 1918-1921, questões como: “Quem vai gerir a produção?” e “O que o proletariado deveria fazer durante a ditadura do proletariado — além de trabalhar duro e cumprir as ordens do ‘seu Partido’?”

Podemos, portanto, concluir que, ao contrário da mitologia estabelecida, não foi em 1927, nem em 1923, nem mesmo em 1921, que o jogo foi jogado e perdido, mas muito antes, durante o período entre 1918 e 1920. Em 1921, uma revolução no sentido pleno da palavra teria sido necessária para restabelecer a situação. Como os acontecimentos provaram, uma mera revolta tal como a de Kronstadt foi insuficiente para provocar mudanças essenciais. O aviso de Kronstadt induziu o Partido Bolchevique a corrigir certos erros, relacionados a outros problemas (essencialmente aqueles relativos aos camponeses e à relação entre a economia urbana e rural). Isto levou a uma diminuição das tensões provocadas pelo colapso econômico e ao início da reconstrução econômica, mas esta “reconstrução” foi firmemente realizada nos moldes do capitalismo burocrático.

Foi, de fato, entre 1917 e 1920 que o Partido Bolchevique se estabeleceu tão firmemente no poder que não poderia ter sido desalojado sem força armada. As incertezas em sua linha foram logo eliminadas, as ambiguidades abolidas e as contradições resolvidas. No novo estado, o proletariado teve que trabalhar, ser mobilizado e, se necessário, morrer, na defesa do novo poder. Ele teve que dar seus elementos mais “conscientes” e “capazes” ao “seu” Partido, onde deveriam se tornar os governantes da sociedade. A classe operária tinha que ser “ativa” e “participar” sempre que o Partido exigisse, mas apenas e exatamente na medida em que o Partido exigisse. Tinha que ser absolutamente guiada pelo Partido em relação a todos os fundamentos. Como Trotsky escreveu durante este período, em um texto que tinha uma enorme circulação dentro e fora da Rússia: “o trabalhador não apenas negocia com o Estado soviético: não, ele está subordinado ao Estado soviético, sob suas ordens em todas as direções — pois é SEU Estado”[9].

7. A Gestão da Produção

O papel da classe operária no novo estado era claro. Era o de um cidadão entusiasta, mas passivo. O papel da classe operária na produção não era menos claro. Deveria ser o mesmo de antes – sob o capitalismo privado – exceto que os operários de “caráter e capacidade”[10] foram agora escolhidos para substituir os gerentes de fábrica, que fugiram. A principal preocupação do Partido Bolchevique durante esse período não foi: como pode ser facilitada a tomada do poder pelos trabalhadores da gestão da produção? Era: qual é a maneira mais rápida de desenvolver uma camada de gestores e administradores da economia? Quando se lê os textos oficiais do período, não há dúvida a este respeito. A formação de uma burocracia como o estrato gerencial na produção (necessariamente tendo privilégios econômicos) foi, quase desde o início, o objetivo consciente, honesto e sincero do Partido Bolchevique liderado por Lênin e Trotsky.

Isso foi honestamente e sinceramente considerado como uma política socialista — ou, mais precisamente, uma “técnica administrativa” que poderia ser colocada à disposição do socialismo, no qual o estrato de administradores dirigentes da produção estaria sob o controle da classe operária, “personificada pelo seu Partido Comunista”. Segundo Trotsky: a decisão de ter um gerente no coração de uma fábrica em vez de um comitê operário não teve significado político. Ele escreveu: “Pode ser correto ou incorreto do ponto de vista da técnica de administração. Consequentemente, seria um erro muito grave confundir a questão quanto à supremacia do proletariado com a questão dos conselhos de administradores dos operários à frente das fábricas. A ditadura do proletariado se expressa na abolição da propriedade privada, na supremacia sobre todo o mecanismo soviético da vontade coletiva dos trabalhadores, e não na forma em que as empresas econômicas individuais são administradas.[11]

Na frase de Trotsky: “a vontade coletiva dos trabalhadores” é uma metáfora para a vontade do Partido Bolchevique. Os líderes bolcheviques afirmaram isso sem hipocrisia, ao contrário de alguns de seus “defensores” de hoje. Trotsky escreveu na época: “Nesta substituição do poder do Partido pelo poder da classe operária não há nada acidental, e na realidade não há nenhuma substituição. Os comunistas expressam os interesses fundamentais da classe operária. É bastante natural que, no período que traz à tona esses interesses, em toda a sua magnitude, na ordem do dia, os comunistas tenham se tornado os representantes reconhecidos da classe operária como um todo”[12]. Pode-se facilmente encontrar dezenas de citações de Lênin expressando a mesma ideia.

Então, tivemos o poder inquestionável dos gestores nas fábricas, “controlados” (que controle era, na realidade?) somente pelo Partido. Tínhamos o poder inquestionável do Partido sobre a sociedade, não controlado por ninguém. Dada esta situação, ninguém poderia impedir esses dois poderes de se fundirem. Ninguém poderia impedir a interpenetração dos dois grupos sociais personificando essas áreas de poder, ou o estabelecimento de uma burocracia inamovível, dominando todos os setores da vida social. O processo pode ter sido acelerado ou ampliado pela entrada em massa de elementos não proletários no Partido, atraídos pela vitória. Mas este foi o resultado da política do Partido – e não sua causa.

Foi durante a discussão sobre a “questão sindical” (1920-1921), anterior ao Décimo Congresso do Partido, que a oposição a essa política dentro do Partido foi mais forçosamente expressa. Formalmente, a questão era o papel dos sindicatos na gestão das fábricas e da economia. A discussão inevitavelmente concentrou a atenção mais uma vez nos problemas da “gestão individual” nas fábricas e no “papel dos especialistas” — questões que já haviam sido debatidas amargamente e em grande medida nos últimos dois anos. Os leitores encontrarão um relato dos diferentes pontos de vista sobre essas questões no próprio texto de Kollontai e nas notas históricas que o acompanham.

Brevemente, a atitude de Lênin, e a da liderança do Partido, era que a gestão da produção deveria estar nas mãos de gestores individuais (ou “especialistas” burgueses ou operários selecionados pela sua “capacidade e caráter”). Estes agiriam sob o controle do Partido. Os sindicatos teriam a tarefa de educar os operários e defendê-los contra “seus” gestores e “seu estado”. Trotsky exigiu que os sindicatos fossem completamente subordinados ao Estado: que fossem transformados em órgãos do Estado (e do Partido). Seu raciocínio era que, em um Estado Operário, os operários e o Estado eram um e o mesmo. Os operários, portanto, não precisavam de uma organização separada para se defenderem contra o “seu” Estado. A Oposição Operária queria que a gestão da produção e da economia passasse a ser confiada gradualmente aos “coletivos operários nas fábricas”, com base nos sindicatos; queriam que a gestão “individual” fosse substituída pela “gestão coletiva” e o papel dos especialistas e técnicos fossem reduzidos. A Oposição Operária enfatizou que o desenvolvimento pós-revolucionário da produção era um problema social e político, cuja solução dependia da utilização da iniciativa e da criatividade das massas trabalhadoras, e que não se tratava apenas de um problema administrativo ou técnico. Ela criticou a crescente burocratização tanto do Estado quanto do Partido (naquela época todos os cargos de qualquer importância já estavam preenchidos pela nomeação de cima e não por eleição) e pela crescente separação do Partido da classe operária.

As ideias da Oposição Operária foram confundidas em alguns desses pontos. A discussão parece ter ocorrido em um nível bastante abstrato e as soluções propostas envolveram mais formas do que fundamentos. (De qualquer forma, os fundamentos já haviam sido decididos em outros lugares). Assim, a Oposição (e Kollontai em seu texto) nunca distingue claramente entre o papel essencial dos especialistas e técnicos enquanto especialistas, sob o controle dos operários, e sua transformação em gestores da produção sem controle. A Oposição formulou uma crítica geral aos especialistas e técnicos. Isto a deixou exposta aos ataques de Lênin e Trotsky, que não tiveram dificuldade em provar que não poderia haver fábricas sem especialistas em engenharia — mas que gradualmente chegaram à surpreendente conclusão de que esses especialistas tinham, apenas por essa razão, poderes gerenciais ditatoriais sobre todo o funcionamento da fábrica. A Oposição lutou ferozmente pela “gestão coletiva” em oposição à “gestão individual”, que é um aspecto bastante formal do problema (a gestão coletiva pode, afinal, ser tão burocrática quanto a gestão individual). A discussão deixou de fora o verdadeiro problema, o de onde deveria estar a fonte da autoridade. Assim, Trotsky foi capaz de dizer: “A independência dos trabalhadores é determinada e medida, não pelo fato de três trabalhadores ou um ser colocado à frente de uma fábrica, mas por fatores e fenômenos de caráter muito mais profundo[13].” Isto o absolveu de ter que discutir o verdadeiro problema, que é o da relação entre “’um” ou “três” gestores e o corpo dos trabalhadores da empresa.

A Oposição também mostrou um certo fetichismo sobre os sindicatos numa época em que os sindicatos já estavam sob o controle quase completo da burocracia partidária. “A contínua ‘independência’ do movimento sindical, numa época de revolução proletária, é tão impossível quanto a política de coalizão. Os sindicatos se tornam os órgãos mais importantes do proletariado no poder. Assim, eles se encontram sob a liderança do Partido Comunista. Não apenas questões de princípio no movimento sindical, mas sérios conflitos de organização dentro dele, são decididas pelo Comitê Central do nosso Partido[14]“.

Isto foi escrito por Trotsky, em resposta às críticas de Kautsky à natureza antidemocrática do poder bolchevique. A questão é que Trotsky certamente não tinha motivos para exagerar a extensão do domínio do Partido sobre os sindicatos.

Mas, apesar dessas fraquezas e apesar de uma certa confusão, a Oposição Operária apresentou o verdadeiro problema: “quem deveria gerir a produção no Estado Operário?” E deu a resposta certa: “as organizações coletivas dos trabalhadores”. O que a liderança do Partido queria e já havia imposto – e neste ponto não havia discordância entre Lênin e Trotsky – era uma hierarquia dirigida de cima. Sabemos que foi essa concepção que prevaleceu. E sabemos aonde essa “vitória” levou.

8. Sobre os “Fins” e os “Meios”

A luta entre a Oposição Operária e a liderança do Partido Bolchevique simboliza os elementos contraditórios que coexistiram no marxismo em geral e em sua encarnação russa em particular.

Pela última vez na história do movimento marxista, a Oposição Operária chamou por uma atividade das próprias massas, mostrou confiança nas capacidades criativas do proletariado e uma profunda convicção de que a revolução socialista anunciaria um período genuinamente novo na história humana, no qual as ideias do período anterior se tornariam sem valor e no qual a estrutura social teria que ser reconstruída a partir das raízes. As propostas da Oposição constituem uma tentativa de incorporar essas ideias em um programa político que trata do campo fundamentalmente importante da produção.

A vitória da perspectiva leninista representa a vitória do outro elemento no marxismo, que durante muito tempo – mesmo no próprio Marx – tornou-se o elemento dominante no pensamento e na prática socialista. Em todos os discursos e artigos de Lênin desse período, há uma ideia constantemente recorrente, quase como uma obsessão. É a ideia de que a Rússia deve aprender com os países capitalistas avançados; que não há trinta e seis métodos para desenvolver a produção e a produtividade do trabalho se se quiser emergir do atraso e do caos; que é necessário adotar métodos capitalistas de racionalização da produção, métodos de gestão capitalista e incentivos capitalistas no trabalho. Tudo isso, para Lênin, não era mais do que “meios” que podiam ser colocados livremente a serviço de um objetivo histórico fundamentalmente oposto, a construção do socialismo.

Da mesma forma, Trotsky, ao discutir o militarismo, foi capaz de separar o exército, sua estrutura e seus métodos, do sistema social ao qual ele serve. Trotsky disse substancialmente que o que havia de errado com o militarismo burguês e o exército burguês, era que ele servia à burguesia. Se não fosse por isso, não haveria motivo para críticas. A única diferença, disse ele, estava na questão: “Quem está no poder?[15]” Da mesma forma, a ditadura do proletariado não se expressava pela “forma em que as empresas econômicas são administradas”[16]

A ideia de que os mesmos meios não podem servir a diferentes fins, que há uma relação intrínseca entre os instrumentos utilizados e os resultados obtidos, que nem a fábrica nem o exército são simples “meios” ou “instrumentos”, mas estruturas sociais nas quais dois aspectos fundamentais das relações humanas (produção e violência) estão organizados, que o que pode ser observado nelas é uma expressão essencial das relações sociais caracterizando um período — estas ideias , originalmente óbvias para os marxistas, foram completamente “esquecidas”. A produção teve que ser desenvolvida utilizando métodos e estruturas que se “provaram por si mesmas”. Que a principal “prova” desses métodos tenha sido o desenvolvimento do capitalismo como sistema social, e que o que uma fábrica produz não é apenas tecido e aço, mas proletariado e capital, foram fatos que foram totalmente ignorados.

Esse “esquecimento” obviamente esconde algo mais. Na época, é claro, havia uma preocupação desesperada para aumentar a produção e restabelecer uma economia que estava em colapso. Mas essa preocupação não dita necessariamente a escolha de “meios”. Se parecia óbvio para os líderes bolcheviques que os únicos métodos eficientes eram os capitalistas, era porque estavam imbuídos da convicção de que o capitalismo era o único sistema de produção eficiente e racional. Eles certamente queriam abolir a propriedade privada e a anarquia do mercado, mas não o tipo de organização que o capitalismo havia alcançado no ponto de produção. Eles queriam mudar a economia, o padrão de propriedade e a distribuição da riqueza, mas não as relações entre os homens no trabalho ou a natureza do próprio trabalho.

Ainda assim, em um nível mais profundo, sua filosofia era uma filosofia que exigia, acima de tudo, o desenvolvimento das forças produtivas. Neste caso, eram discípulos fiéis de Marx – ou, pelo menos, de um certo aspecto de Marx, que se tornou predominante em suas obras da maturidade. O desenvolvimento das forças produtivas foi visto pelos bolcheviques, se não como o objetivo final, de qualquer forma como meio essencial, no sentido de que todo o resto seguiria como um subproduto, e teria que ser subordinado a ele. O homem também? É claro! “Como regra geral, o homem se esforça para evitar o trabalho (…) o homem é um animal bastante preguiçoso[17]“. Para combater esta indolência, todos os métodos de eficiência comprovada tiveram que ser postos em funcionamento: Trabalho compulsório – cuja natureza aparentemente mudou completamente se foi imposta por uma “ditadura socialista”[18] – e métodos técnicos e financeiros. “Sob o capitalismo, o sistema de trabalho por peças e gratificação, a aplicação do sistema Taylor, etc., têm como objeto aumentar a exploração dos trabalhadores extorquindo-lhes mais-valor. Sob a produção socialista, o trabalho por peças, o bônus, etc., tem como seu problema aumentar o volume do produto social e, consequentemente, elevar o bem-estar geral. Aqueles trabalhadores que fazem mais pelos interesses gerais do que outros recebem o direito a uma maior quantidade do produto social do que os preguiçosos, os descuidados e os desorganizadores”[19]. Este não é Stalin falando (em 1939). É Trotsky (em 1919).

A reorganização socialista da produção durante o primeiro período após uma revolução é realmente difícil de conceber sem alguma “compulsão ao trabalho”, como “aqueles que não trabalham, não comem”. Alguns índices de trabalho provavelmente terão de ser estabelecidos, para garantir alguma igualdade de esforço proporcionado entre diferentes setores da população e entre diferentes oficinas e fábricas. Mas, todo os sofismas de Trotsky sobre o fato de que o “trabalho livre” nunca existiu na história (e só existirá sob o comunismo completo), não deveria fazer ninguém esquecer as questões cruciais. Quem estabelece essas normas? Quem decide e administra a “compulsão ao trabalho”? É feito por organizações coletivas, formadas pelos próprios trabalhadores? Ou essa tarefa é assumida por um grupo social especial, cuja função é administrar o trabalho dos outros?

“Gerir o trabalho dos outros”. Não é este o início e o fim de todo o ciclo de exploração? A “necessidade” de uma categoria social especial para gerir o trabalho dos outros na produção (e a atividade dos outros na política e na sociedade), e a necessidade de uma liderança separada das fábricas, e a necessidade de um partido governando o Estado, foram todas proclamadas e zelosamente trabalhados pelo Partido Bolchevique, desde os primeiros dias de sua ascensão ao poder. Sabemos que o Partido Bolchevique atingiu seus fins. Na medida em que as ideias desempenham um papel no desenvolvimento histórico, e, em última análise, seu papel é enorme, a ideologia bolchevique (e alguns aspectos da ideologia marxista subjacente a ela) foi um fator decisivo no desenvolvimento da burocracia russa.

Publicado por SOLIDARITY (Londres)


[1] Lênin: “The Immediate Tasks of the Soviet Government” [“As Tarefas Imediatas do Governo Soviético”]. Select Works (vol. VII, p. 342). Isto foi escrito na primavera de 1918.

[2] Trotsky: Report to the Third All-Russian Congress of Trade Unions. (6 de abril a 15 de abril de 1920). Publicado em “Terrorism and Communism” [“Terrorismo e Comunismo”].

[3] A primeira tradução para o inglês tinha aparecido (entre 22 de abril de 19 de agosto de 1921) em sucessivas edições do Worker’s Dreadnought de Sylvia Pankhurst. Nosso panfleto sobre o assunto contém notas de rodapé detalhadas descrevendo o contexto desta controvérsia.

[4] O presente panfleto foi posteriormente traduzido para o italiano (sob o título “Dal Bolscevismo all Burocrazia” e publicado em 1968 pelo Quaderni della Rivoluzione dei Consigli (V. C. Rolando 8/8, Ge-Sampierdarena). Posteriormente, no mesmo ano, ele foi também traduzido para o sueco (sob o título “Bolshevism, Byrakrati”) e publicado pelo Libertad (Allmana vage 6, 4l460 Goteborg).

[5] Ver Socialism Reaffirmed publicado por Solidarity (Londres) em 1961. Este é uma tradução do editorial da edição n. 1 de Socialisme ou Barbarie.

[6] The Workers’ Opposition de Alexandra Kollontai, Solidarity Pamphlet No 7. [Ed. portuguesa: A Oposição Operária (1920-1921), Portugal, Afrontamento, 1977].

[7] Uma citação entre cem que ilustrará essa forma de pensamento: “A história tomou rumo tão original que trouxe à tona, em 1918, duas metades desconectadas do socialismo, existindo lado a lado como duas futuras galinhas na uma única casca de imperialismo internacional. Em 1918, a Alemanha e a Rússia foram a encarnação da realização material mais marcante da economia, a produção e as condições econômicas sociais do socialismo, por um lado, e das condições políticas do outro”. “Left Wing Communism — an Infantile Disorder”, Selected Works. Vol. VII., p. 365 [Ed. brasileira: Esquerdismo, doença infantil do comunismo, São Paulo, Global, 1989]. 

[8] Ver The Workers’ Opposition de Alexandra Kollontai. Solidarity pamphlet, No. 7.

[9] Terrorism and Communism, Ann Arbor Paperbacks, 1961. p. 168.

[10] Terrorism and Communism, Ann Arbor Paperbacks, 1961. p. 260.

[11] Terrorism and Communism, Ann Arbor Paperbacks, 1961. p. 162.

[12] Terrorism and Communism, Ann Arbor Paperbacks, 1961. p. 109.

[13] Terrorism and Communism, Ann Arbor Paperbacks, 1961. p. 161.

[14] Terrorism and Communism, Ann Arbor Paperbacks, 1961. p. 110.

[15] Terrorism and Communism, Ann Arbor Paperbacks, 1961. p. 172.

[16] Terrorism and Communism, Ann Arbor Paperbacks, 1961. p. 172.

[17] Terrorism and Communism, Ann Arbor Paperbacks, 1961. p. 135.

[18] Terrorism and Communism, Ann Arbor Paperbacks, 1961. p. 149.

[19] Terrorism and Communism, Ann Arbor Paperbacks, 1961. p. 147.

Traduzido por Guilherme Corrêa, a partir da versão disponível em: https://libcom.org/library/bolshevism-bureaucracy-paul-cardan. Revisado por Felipe Andrade, de acordo com esta versão disponível no Libcom, bem como cotejado com a tradução disponível em: A Experiência do Movimento Operário: “O papel da ideologia bolchevique no nascimento da burocracia (1964)”, São Paulo: Brasiliense, 1985.
Publicado originalmente: https://archivesautonomies.org/IMG/pdf/nonfrenchpublications/english/solidarity60-77/pamphlets/solidarity-pamphlet-n24.pdf.

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