Original in French: Kurdistan?
“Há épocas em que não podemos fazer nada exceto não perdermos a cabeça.”
Louis Mercier-Veja do La Chevauchée anonyme[1]
Quando trabalhadores são forçados a tomar o seu destino em suas próprias mãos para sobreviver, eles abrem a possibilidade de transformação social. Alguns curdos estão sendo forçados a agir nas condições que eles encontram e se esforçam para criar no meio de uma guerra internacionalizada desfavorável à emancipação. Não estamos aqui para “julgá-los”. Nem para perdermos a cabeça.
Auto(defesa)
Em várias partes do mundo, o proletariado é levado à autodefesa através da auto-organização:
“Uma vasta multiplicidade de “movimentos” – armados e não-armados, oscilando entre o banditismo social e atividades de guerrilha organizada – atuam nas zonas mais miseráveis do ferro-velho capitalista global, apresentando traços similares àqueles do PKK[2]. De uma forma ou de outra, eles tentam resistir à destruição das já marginalizadas economias de subsistência, ao saque dos recursos naturais ou à mineração local ou ainda à imposição da propriedade fundiária capitalista que limita ou impede o acesso e/ou o seu uso. […] Nós podemos citar aleatoriamente casos de pirataria nas águas da Somália, o MEND na Nigéria, os Naxalitas na Índia, os Mapuche no Chile. […] É fundamental que se apreenda o conteúdo que eles têm em comum: a autodefesa. As pessoas sempre tendem a se auto-organizar tendo por base aquilo que elas são dentro do modo de produção capitalista (trabalhadores desta ou daquela empresa, moradores deste ou daquele bairro etc.), enquanto o abandono da posição defensiva (“reivindicações”) coincide com o fato de que todos estes sujeitos interpenetram-se uns aos outros, e quando a relação capital/trabalho assalariado que os estrutura começa a se desintegrar, as distinções deixam de existir.” [3]
Em Rojava, a auto-organização levou (ou poderia levar) da necessidade da sobrevivência a uma mudança radical nas relações sociais?
Não se faz necessário repetir aqui a história do poderoso movimento curdo de independência na Turquia, Iraque, Síria e Irã. Os curdos foram dilacerados por décadas de rivalidade entre esses países e pela repressão sofrida no interior desse processo. Após a eclosão do Iraque em três etnias (sunitas, xiitas e curdos), a guerra civil síria libertou uma faixa de território na Síria onde a autonomia curda assumiu uma nova forma. Uma união popular (i.e., transclassista) foi formada para administrar o referido território e defendê-lo de uma ameaça militar. O Estado Islâmico (ISIS)[4] serviu como o agente dessa ruptura. A resistência mistura antigos laços comunitários e novos movimentos, principalmente de mulheres, através de uma aliança de fato entre os proletários e as classes médias, com a “nação” [atuando] como cimento. “A transformação que está ocorrendo em Rojava é baseada, em parte, numa identidade curda radical e [numa] classe média significativa […] contingente a qual, apesar da retórica radical, sempre tem algum interesse na continuidade do capital e do estado”[5].
Revolução democrática?
Em política, há muitas nas palavras. Quando Rojava elaborou sua constituição e chamou-a Contrato Social, estava então ecoando o Iluminismo do século XVIII. Lênin e Mao foram abandonados; os atuais líderes curdos leram Rousseau, não Bakunin.
O Contrato Social [de Rojava] proclama a “coexistência e compreensão mútua e pacífica entre todas as correntes da sociedade” e reconhece “a integridade do território Sírio”. É o que todas as constituições democráticas dizem e não há razão para que esperemos encontrar louvores à luta de classes, nem a exigência pela abolição das fronteiras, tampouco dos estados[6].
É o discurso de uma revolução democrática. Na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, o direito à “resistência contra a opressão” explicitamente previsto caminhava de mãos dadas com o direito à propriedade. A Liberdade era plena, mas definida e limitada pela lei. É o mesmo em Rojava – a “propriedade privada” é um direito garantido por lei. Embora optando pelo termo descritivo “região autônoma”, o Contrato Social prevê uma administração, polícia, prisões, impostos (portanto um poder central que angarie fundos).
Mas nós estamos no início do século XXI: a alusão ao “Deus Todo-Poderoso” subsiste lado a lado com o “desenvolvimento sustentável”, a semi-paridade (40% das mulheres) e a “igualdade de gênero” (apesar de vinculada à “família”).
Adicione a isso a separação dos poderes, aquela entre a igreja e o estado, um judiciário independente, um sistema econômico para assegurar o “bem-estar geral”, uma garantia dos direitos dos trabalhadores (inclusive o direito à greve) e a limitação do número de cargos políticos etc. – um programa republicano de esquerda.
Se algumas pessoas na Europa e nos Estados Unidos veem em tais princípios o prenúncio de uma revolução social, isso se deve, sem dúvida, ao “relativismo cultural”. Em Paris, um tal programa só provocaria chacota nos meios radicais, mas “praqueles lados de lá, não é tão mal…”.
Aqueles que traçam um paralelo entre Rojava e a Revolução Espanhola[7] deveriam comparar este Contrato Social com o programa adotado pela CNT em maio de 1936 (e na forma que foi traduzido na prática dois meses depois).
Novo nacionalismo
Como qualquer movimento político, um movimento de libertação nacional se provê a si mesmo [com] as ideologias, os recursos e aliados que consegue, e muda quando é conveniente. Se a ideologia é nova é porque ela reflete uma mudança no tempo.
“Não se pode compreender o atual estágio da questão curda, nem a trajetória das suas expressões políticas – o PKK em primeiro lugar – sem se levar em conta o fim dos tempos dourados de um ‘Nacionalismo de base popular’ de matriz socialista ou ‘progressista’ na periferia e semi-periferia do sistema capitalista e suas causas.[8]”
O PKK não renunciou ao objetivo habitual dos movimentos de libertação nacional. Mesmo que ele agora evite utilizar uma palavra que soe demasiado autoritária, a meta do PKK é, hoje como ontem, a criação de um aparato central de gestão e de domínio político sobre um território – e não há palavra melhor do que Estado para descrever esta coisa. A diferença, fora a sua designação administrativa, é que seria algo muito mais democrático, algo que estaria tão mais nas mãos dos seus cidadãos que não seria mais digno de ser chamado de Estado. Eis a ideologia.
Na Síria, o movimento nacional curdo (sob influência do PKK) substituiu a sua reivindicação de um estado de direito por um programa mais modesto e “básico” [basiste – desde a base, literalmente ‘base-ísta’]: autonomia, confederalismo democrático, os direitos dos homens e das mulheres etc. O que é proposto, ao invés da ideologia do “socialismo” levado à cabo por um partido único de trabalhadores e camponeses que desenvolve a indústria pesada, ou de alusões à “classe” ou “marxistas”, é a autogestão, a cooperativa, a comuna, a ecologia, o anti-produtivismo e, de bônus, o gênero.
A meta de se combinar uma autonomia interna forte com uma vida democrática na sua base não é absolutamente utópica. Por exemplo, em várias partes do Pacífico, os governos permitem uma ampla margem de autogoverno para populações que não interesse em ninguém (exceto quando os interesses da mineração entram em causa – daí o exército é enviado). Na África, a Somalilândia possui os atributos de um Estado (polícia, moeda, economia), exceto que não são reconhecidos por ninguém. Em Chiapas (que muitos comparam à Rojava), as pessoas sobrevivem num sistema de semiautonomia regional que protege a sua cultura e os seus valores sem incomodar o mundo lá fora. Por acaso, o levante Zapatista, o primeiro da era antiglobalização, não almejava a independência ou a transformação da sociedade, mas em vez disso, a preservação de um modo de vida tradicional.
Os curdos vivem no coração de uma região cobiçada pelo petróleo, arrasada por conflitos intermináveis e dominada por ditaduras. Este fato deixa pouca margem à Rojava…, talvez para um pequeno pedaço. Embora a sua viabilidade econômica seja baixa, ela sobrevive graças a uma pequena petrolífera. O ouro negro já foi capaz de criar estados-fantoche como o Kuwait, e permite a sobrevivência do mini estado curdo Iraquiano. Digamos que o futuro de Rojava depende menos da mobilização do seu povo e mais das interações entre os poderes dominantes.
Se o abandono do projeto de estado-nação por parte do PKK for real, devíamos nos perguntar como seria uma confederação de três ou quatro regiões autônomas – cruzando fronteiras em pelo menos três países –, uma vez que a coexistência de várias zonas autônomas não faria abolir a estrutura política central que as faz reunir. Na Europa, regiões transfronteiriças (por exemplo, no entorno da Linha Oder-Neisse) não diminuíram, na prática, o poder do Estado.
Uma outra vida cotidiana
Às vezes, tal como nesse caso, a solidariedade contra um inimigo causa a suspensão temporária das diferenças sociais: a administração de aldeias por coletivos, laços entre os combatentes (homens e mulheres) e a população; disseminação de conhecimento médico (o início da superação dos poderes especializados); o livre compartilhamento de alguns utensílios e alimentos durante os piores momentos ([da] luta); formas de tratamento inovadoras das doenças mentais; a vida coletiva de estudantes masculinos e femininos; justiça atribuída à comitês de junta (eleitos por cada aldeia), arbitrando disputas judiciais, aplicando penas, procurando reintegrar e reabilitar; integração das minorias étnicas na região; a auto-organização de mulheres para além do lar[9].
Será isto uma “democracia sem Estado”? Nossa intenção não é opor uma lista de contras a uma lista de prós redigida pelos adeptos. Se faz necessário ver de onde vem essa autoadministração e como ela pode evoluir, pois nós nunca testemunhamos um Estado se dissolver numa democracia local.
Uma estrutura social inalterada
Ninguém afirma que são apenas os “curdos” que têm o privilégio de serem o único povo no mundo que sempre viveu em harmonia. Os curdos, como todos os outros povos, são divididos em grupos de interesses opostos, em classes – ou se “classe” soa muito marxista, divididos em governantes e governados. Ora, às vezes lê-se que uma “revolução” está em curso ou sendo preparada em Rojava. Partindo do fato de que a classe dominante jamais renuncia voluntariamente ao poder, onde e como elas foram derrotadas? Qual luta de classes intensa se deu no Curdistão a ponto de desencadear este processo? Este [discurso da “revolução”] não nos diz nada. Se palavras de ordem e manchetes falam de revolução, artigos afirmam que a população de Rojava luta contra o ISIS, o patriarcado, o Estado e o capitalismo…, mas, neste último ponto, ninguém explica por que ou como o PYD[10]-PKK poderia ser anticapitalista…, e ninguém parece notar essa “ausência”. A autodenominada Revolução de julho de 2012 corresponde, na verdade, à retirada das tropas de Assad do curdistão. Tendo desaparecido, o poder administrativo e de segurança anterior foi substituído e uma autoadministração denominada revolucionária assumiu em seu lugar. Mas em prol de qual “auto” ele age? [E] de qual revolução?
Se alguém fala voluntariamente de tomar o poder na base [da sociedade] e de se transformar a esfera doméstica, nunca é uma questão da transformação das relações de troca e exploração. No melhor dos casos, pode-se descrever cooperativas sem a menor indicação do começo da coletivização. O novo estado curdo reabriu os poços e refinarias de petróleo, e produz eletricidade – [mas] nada é dito acerca dos que lá trabalham. Comércio, artesanato e mercados funcionam, o dinheiro continua a desempenhar o seu papel. Zaher Baher, um visitante e admirador da “revolução” curda [diz]: “Antes de deixar a região, nós falamos com comerciantes, empresários e pessoas no mercado. Todo mundo tinha uma opinião positiva sobre a DSA [sigla para Democratic Self Administration, autoadministração democrática] e o TEV-DEM [‘Movement for a Democracia Society’ – uma coalização de organizações que giram em torno do PYD]. Eles estavam contentes com a existência da paz, da segurança e da liberdade e administravam seus próprios negócios sem interferências de quaisquer partidos ou grupos”[11]. Enfim, uma revolução que não assusta a burguesia.
Soldados
Seria o suficiente se se trocassem os nomes. Muito da exaltação hoje direcionada à Rojava, inclusive a questão de gênero, foi, por volta dos anos 1930, direcionada aos grupos pioneiros do sionismo na Palestina. No primeiro kibutz, ao lado da ideologia frequentemente progressista e socialista, estavam as condições materiais (precárias e necessárias à defesa) que os obrigavam a não se furtarem ao uso de metade da força de trabalho: [dessa maneira,] as mulheres tinham a obrigação de participar nas atividades agrícolas e de defesa, o que implicava na liberação das suas tarefas “femininas”, inclusive do cuidado com as crianças.
Não há nenhum traço disso em Rojava. O armamento de mulheres não é tudo (como as Forças de Defesa de Israel claramente o demonstram). Z. Baher dá o seu testemunho: “Eu fiz uma observação interessante: eu não vi uma única mulher trabalhando numa loja, posto de gasolina, mercado, café ou restaurante”. Os campos de refugiados “autogeridos” na Turquia estão repletos de mulheres cuidando das crianças enquanto os homens procuram por emprego.
A natureza subversiva de um movimento ou organização não pode ser mensurada pelo número de mulheres armadas – tampouco o seu caráter feminista. Desde os anos 1960, em todos os continentes, a maioria das guerrilhas incluíram ou incluem inúmeras combatentes femininas – por ex. na Colômbia. Isto se torna ainda mais verdadeiro nas guerrilhas de inspiração maoísta (Nepal, Peru, Filipinas etc.) que utilizam a estratégia da “Guerra Popular”: igualdade masculina/feminina deveria contribuir para a derrubada das estruturas tradicionais, feudais ou tribais (sempre patriarcais). É nas origens maoístas do PKK-PYD que se encontra a fonte daquilo que os especialistas chamam de “feminismo marcial”.
Mas por que que as mulheres armadas passam por um símbolo de emancipação? Por que é que nós vemos nisso tão facilmente uma imagem de liberdade, chegando a esquecer por que elas estão lutando?
Se uma mulher armada com um lança-foguetes pode aparecer na capa da Le Pariesien-Magazine ou de um jornal militante, é porque é uma figura clássica. O monopólio do uso de armas é um privilégio tradicional masculino: sua inversão deve comprovar a radicalidade e excepcionalidade de uma batalha ou de uma guerra particular. Haja visto as fotos de belas milicianas espanholas. A revolução está na ponta de uma Kalashnikov…, empunhada por uma mulher. A esta visão, vem-se somar às vezes uma outra mais “feminista”, da mulher armada vindicada, abatendo os bandidos, estupradores etc. Reparem que o ISIS e o regime de Damasco [i.e., o regime de Assad] constituíram algumas unidades exclusivamente femininas. Entretanto, e contrariamente ao YPJ-YPG, eles não criticam as distinções de gênero, elas não são aparentemente usadas nas linhas de frente, e estão circunscritas às funções policiais e de apoio.
Às armas
Durante manifestações parisienses em apoio à Rojava, a faixa do cortejo dos anarquistas unidos exigia “Armas para a resistência curda”. Considerando que o proletário médio não possui rifles de assalto e granadas para enviar clandestinamente para o curdistão, de quem nós exigimos tais armas? Deveríamos nos fiar em traficantes internacionais de armas ou na OTAN para a remessa de armas? Tais remessas foram cuidadosamente iniciadas, mas as faixas anarquistas não têm nada a ver com isso. Além do ISIS, ninguém está considerando criar novas Brigadas Internacionais[12]. Então que tipo de apoio armado é esse? Trata-se de demandar mais ataques aéreos ocidentais com os “danos colaterais” que todos nós conhecemos? Óbvio que não. Trata-se, portanto, uma fórmula vazia, e talvez isso seja o pior de tudo: a pretensa revolução é um pretexto para manifestações e palavras de ordem as quais ninguém espera seriamente que sejam postas em prática. Nós somos na política exatamente como somos na representação.
Nós estaríamos menos surpresos que pessoas sempre dispostas a denunciar o complexo industrial-militar agora fazem estas convocatórias se nós lembrarmos que já em 1999, pelo Kosovo, alguns anarquistas apoiaram o bombardeio da OTAN…, para prevenir um “genocídio”.
Anarquista
O que é triste, mais do que as organizações que sempre apoiaram movimentos de libertação nacional, é que essa exaltação atinge um meio mais amplo, de companheiros anarquistas, okupas[13], feministas e autonomistas – amigos/as geralmente mais lúcidos.
Se políticas de “mal menor” penetram estes meios é porque o seu radicalismo é fraco (embora isso não impeça coragem pessoal ou energia).
Hoje é muito mais fácil ficar empolgado com o Curdistão (como há 20 anos atrás foi com Chiapas) enquanto os militantes se desesperam pelo Billancourt[14]. “Lá”, pelo menos, não há proletários bêbados e conformistas que votam no FN [Front Nationale] e sonham apenas em ganhar na loteria ou arranjar um emprego. “Lá” há camponeses (embora a maioria dos curdos viva em cidades), o povo das montanhas em luta, cheio de sonhos e esperança… Este aspecto rural-natural (portanto ecológico) é misturado com um desejo por mudança aqui e agora. Lá se vão os dias das grandes ideologias e promessas da “Grand Soir”[15]: nós fazemos algumas coisas, nós “criamos laços”, apesar da falta de recursos, nós cultivamos hortas, criamos um pequeno jardim público (como aquele mencionado por Z. Baher). Isto ecoa a ZAD[16]: nós arregaçamos nossas mangas e fazemos algo de concreto e em pequena escala no aqui e agora. Isso é o que eles fazem “lá”, com uma AK-47 no ombro.
Alguns textos anarquistas só evocam Rojava em termos de conquistas locais e assembleias de bairro, quase nunca falando do PYD e do PKK etc., como se elas fossem apenas de ações espontâneas. Seria um pouco como se, a fim de analisar uma greve geral, só falássemos da “autogestão” dos grevistas e dos piquetes, sem levar em consideração os sindicatos locais ou as manobras da gestão do sindicato, ou suas negociações com o Estado e os patrões…
A revolução é vista, de forma crescente, como uma questão de comportamento: auto-organização, interesse por gênero, ecologia, criação de laços, discussão, afetos. Se adicionarmos aqui desinteresse ou descuido no que diz respeito à questão do Estado e do poder político, é lógico que realmente se veja uma revolução – e, por que não, uma “revolução de mulheres” em Rojava. Já que se fala cada vez menos de classes e de luta de classes, importa que isso também esteja ausente do discurso do PKK-PYD?
Qual crítica do estado?
O que incomoda o pensamento radical em lutas de libertação nacional é o objetivo de se criar um Estado. Basta para isso que se renuncie a este objetivo e se considere que, na sua base, a nação (tendo em conta que é sem estado) é o povo – e como é que nós podemos ser contra o povo? Nós todos nos encaixamos um pouco [dentro disso], quase 99%. Não é?
O anarquismo tem a característica de (e para o seu próprio mérito) uma hostilidade por princípio ao Estado. Dado isso, e isso é alguma coisa, sua grande fraqueza é considerá-lo basicamente como um instrumento de coerção – o que ele certamente o é – sem se perguntar por que e como ele desempenha esse papel. Por conseguinte, para alguns anarquistas (não todos) basta varrer as formas mais visíveis do Estado para que eles concluam que o seu desaparecimento já se deu ou está próximo de acontecer.
Por essa razão, o anarquista está desarmado diante daquilo que se assemelha demasiado ao próprio seu programa, tendo sido sempre contra o Estado mas pela democracia, embora eles sejam naturalmente favoráveis ao confederalismo democrático e à autodeterminação social. O ideal anarquista é substituir o Estado por milhares de comunas federadas (e coletivos de trabalho).
Com base nisso, é possível ser internacionalista e apoiar um movimento nacional conquanto este pratique a autogestão generalizada, social e política, agora chamada “apropriação privada dos comuns”. Quando o PKK deixa de proclamar a conquista do poder como objetivo, antes um sistema em que todos irão compartilhar o poder, é fácil para os anarquistas se reconhecerem ali.
Perspectivas
O intento de uma revolução democrática em Rojava, e as transformações sociais que o acompanham, só estão sendo possíveis por causa de condições excepcionais: a ruptura entre os estados Sírio e Iraquiano e a invasão jihadista da região – uma ameaça que teve o efeito de promover a radicalização.
Com apoio militar ocidental, parece provável que Rojava possa (na imagem do curdistão iraquiano) existir como uma entidade autônoma organizada à margem de um persistente caos sírio. Em tal caso, esse pequeno estado, por mais democrático que queira ser, ao mesmo passo em que normaliza (suas relações), não deixará intactos suas conquistas ou avanços sociais. No melhor dos casos, vai sobrar alguma parte de autogoverno local, educação progressiva, uma imprensa livre (sob a condição de que se evite a blasfêmia), um islamismo tolerante e, claro, igualdade de gênero. Nada mais. Mas ainda será o suficiente para que aqueles que querem acreditar numa revolução social continuem acreditando – não é necessário dizer também desejando que esta democracia se torne ainda mais democrática.
Quanto à esperança de um conflito entre a auto-organização na sua base e as estruturas que as supervisiona, pode-se imaginar que existe em Rojava uma situação de “poder paralelo”. Trata-se de esquecer que o poder do PYD-PKK em si mesmo conduziu este autogoverno e que ele detém o poder real, tanto política quanto militarmente.
Para voltarmos à comparação com a Espanha, em 1936 se deu o “início” da revolução que mais tarde fora devorada pela guerra. Em Rojava, houve primeiro a guerra e, infelizmente, não há ainda sinal de que uma revolução “social” esteja para nascer.
[1] “Nascido Charles Cortvint em Bruxelas, no ano de 1914, Louis Mercier Vega foi um jornalista anarquista muito ativo no movimento operário francês. Após lutar com a Coluna Durruti na Guerra Civil Espanhola, Mercier retornou à França, onde em 1938 ele se juntou (como Charles Ridel) a um grupo de jovens anarquistas chamado Révision, o qual buscava um processo radical de reformulação ideológica e estratégica. Durante a Segunda Guerra Mundial Vega viveu na América Latina, um continente que ele viria a analisar mais tarde em alguns de seus trabalhos. No final da década de 1950, Mercier tornou-se co-editor de Volontà, um jornal italiano de uma corrente anti-organizacional do anarquismo que defendia a espontaneidade criativa e a experimentação livre em esferas como a educação, a cultura e a estética. Em 1958, ele criou com Helmut Rüdiger, a Comissão Internacional de Liaison Ouvrière (CILO), uma rede de contatos em torno do boletim de mesmo nome publicado em Paris até 1965, o qual tinha como objetivo a redefinição do papel do sindicalismo libertário nos novos contextos de produção. O último esforço de Mercier foi a Interrogations, uma revista trimestral fundada em 1974 e escrita em francês, inglês, italiano e espanhol, que atualizava conceitos-chave do pensamento político anarquista, especialmente no que concerne ao papel do estado e da classe dominante. A publicação durou até 1979, dois anos após Mercier cometer suicídio”.
Cf.: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1002/9781405198073.wbierp1745.
[2] [N.T.] A sigla PKK se refere ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (Parti Karkerani Kurdistan em turco) de Abdullah Öcalan, principal motor da chamada “Revolução Curda”. Existe como organização desde 1978, tendo surgido como um partido de inspiração marxista-leninista que com o tempo fora progressivamente abandonando suas concepções em prol de uma outra, mais libertária, resultando no Confederalismo Democrático. Grande parte desta “conversão” se deve ao fato de que Öcalan trocou correspondências na prisão com Murray Bookchin, importante anarquista norte-americano, pai do chamado Municipalismo Libertário.
Cf.: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Partido_dos_Trabalhadores_do_Curdist%C3%A3o.
O texto “Confederalismo Democrático” de Abdullah Öcalan pode ser acessado em: https://pt.br1lib.org/s/%C3%96calan?languages%5B%5D=portuguese.
[3] Il Lato Cattivo, ‘The “Kurdish Question”, ISIS, USA, Etc.’ Cf.: https://endnotes.org.uk/other_texts/en/il-lato-cattivo-the-kurdish-question.
[4] [N.T.] “Estado Islâmico, antes denominado Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL) ou Estado Islâmico do Iraque e da Síria (EIIS), é uma organização jihadista islamita de orientação salafita (sunita ortodoxa) e wahabita criada após a invasão do Iraque em 2003.” (Fonte: Wikipédia). Cf.: https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Estado_Isl%C3%A2mico_do_Iraque_e_do_Levante.
[5] Becky, ‘A revolution in daily life’. Cf.: https://peaceinkurdistancampaign.com/2014/12/22/a-revolution-in-daily-life/.
[6] O Contrato Social (de Rojava). Cf.: https://peaceinkurdistancampaign.com/charter-of-the-social-contract/.
[7] [N.T.] Para quem quiser conferir uma breve reflexão de Gilles Dauvé sobre a Revolução Espanhola de 1936, pode-se conferir o ensaio “Quando as Insurreições Morrem”, traduzido e disponibilizado em: https://libcom.org/library/quando-insurrei-es-morrem-gilles-dauv.
[8] Il Lato Cattivo, op. cit. Cf.: https://endnotes.org.uk/other_texts/en/il-lato-cattivo-the-kurdish-question.
[9] Um eclipse relativo das disparidades sociais, uma vez que os curdos mais ricos evitam participar no autogoverno dos campos refugiando-se em outros países com condições mais confortáveis.
[10] PYD é a sigla para Partido de União Democrática, organização que integra curdos sírios e que é filiada ao PKK. Para mais informações, cf.:
https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Partido_de_Uni%C3%A3o_Democr%C3%A1tica.
[11] Zaher Baher, «Vers l’autogestion au Rojava?», Où est la révolution au Rojava?, n°1, juillet-novembre 2014 p. 21. Versão em inglês disponível como ‘The experiment of West Kurdistan (Syrian Kurdistan) has proved that people can make changes’. Cf.: https://libcom.org/news/experiment-west-kurdistan-syrian-kurdistan-has-proved-people-can-make-changes-zaher-baher-2.
[12] Entretanto, um pequeno grupo stalinista pró-Albânia na Turquia, o ‘Partido Comunista Marxista-Leninista’ (Marksist-Leninist Komünist Partisi em turco), se comprometeu a organizar de Brigadas Internacionais para Rojava. Cf.:
https://en.wikipedia.org/wiki/Marxist%E2%80%93Leninist_Communist_Party_(Turkey).
[13] [N.T.] Aqui o autor parece se referir ao contexto dos meios políticos radicais europeus. Portanto, o termo “okupa” (squatter) diz respeito aos movimentos contraculturais, normalmente de orientação anarquista ou libertária, que no contexto europeu ocupam prédios vazios para os transformar em centros culturais. São movimentos que possuem um caráter cultural e político bastante diferentes dos movimentos de ocupação urbana no Brasil, por exemplo.
[14] Penso que se trata de uma referência ao antigo centro do radicalismo da classe trabalhadora industrial em Paris. Do Wikipedia: ‘Boulogne-Billancourt é um subúrbio pertencente aos subúrbios à oeste de Paris, França. […] Outrora um importante parque industrial, foi reconvertido em um centro de serviços empresariais e agora abriga importantes empresas de comunicação sediadas no distrito comercial do Vale do Sena.’ Cf. https://en.wikipedia.org/wiki/Boulogne-Billancourt.
[15] A ‘Grand Soir’ é um termo comum na extrema-esquerda francesa, anarquista, socialista e comunista, que remonta pelo menos ao século XIX (embora alguns digam ter sido registrado mais cedo, origens cristãs). A ‘Grande Noite’ é em essência a noite da Revolução, a noite da inversão da ordem social, a noite do último acertos de contas. De acordo com Maurice Tournier, o termo foi recuperado mais recentemente por setores da extrema-direita. Cf. (em francês): Maurice Tournier, «Le Grand Soir», un mythe de fin de siècle. Cf. https://www.persee.fr/doc/mots_0243-6450_1989_num_19_1_1467.
[16] ZAD ou ‘Zone À Défendre’ (Área a Defender). Um nome dado por manifestantes à área que eles desejam proteger do proposto ‘Aéroport du Grande Ouest Projet’, i.e., o aeroporto planejado ao norte da cidade de Nantes. Cf. https://en.wikipedia.org/wiki/A%C3%A9roport_du_Grand_Ouest.
O texto foi traduzido por Alexandre Guerra e revisado por Gabriel Teles e Felipe Andrade. A tradução foi realizada segundo a versão em inglês disponível no site Libcom Cf.: https://libcom.org/news/kurdistan-gilles-dauv%C3%A9-17022015. Esta última versão é uma tradução do original publicado em francês e que pode ser acessado em: https://ddt21.noblogs.org/?page_id=324. Versão em espanhol: ¿Kurdistán?.
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