Auge e declínio da Educação Burguesa – dois exemplos: Kant e o EaD (Parte II)

Texto de Diego Marques dos Anjos*

Kant e a educação racional e disciplinar – parte II

O sistema de ensino é criticado em diferentes aspectos: qualidade material, organização, ideias, violência, repressão, coerção, alienação. Mas antes de sua existência, e de certa forma antecipando alguns aspectos de sua forma de funcionamento, Kant foi um ardoroso defensor da educação racional, sistemática e fundamento para a ação humana em sociedade.

Immanuel Kant nasceu em 1724 e faleceu em 1804, vivendo praticamente toda sua vida em Konigsberg, antiga capital cultural do Reino da Prússia e que atualmente pertence à Rússia que, por sua vez, conquistou a cidade como espólio da Segunda Guerra Mundial e a transformou na atual Kaliningrado. Kant foi uma das principais expressões na filosofia europeia do movimento intelectual “Iluminista”, e o inaugurador do período de vivacidade do idealismo na filosofia Alemã entre os séculos XVIII e XIX.

Kant elaborou seu sistema filosófico tendo como base o conceito de razão, do qual ele faz derivar suas interpretações sobre a natureza, o ser humano, a sociedade. Embora Konigsberg fosse o centro cultural da Prússia, estava longe de ser um dos principais polos de irradiação da cultura do Iluminismo, o que não foi um limite para o estabelecimento de contatos e vínculos desta cidade com a capital política, Berlim, bem como com outras metrópoles europeias, pincipalmente Londres e Paris, cidades que abrigavam as maiores influências intelectuais de Kant.

O sistema filosófico de Immanuel Kant é uma das mais complexas contribuições intelectuais para a filosofia e para a ciência modernas, sua contribuição está fundamentada na inovação do método e na complexidade analítica. Assim, Kant pode ser considerado uma das expressões mais bem desenvolvidas, ou esclarecidas, para uma nova época social que estava surgindo e ganhando força, movimentada pela atuação de uma nova classe social, a burguesia, e pelas novas relações de classe constituídas na sociedade capitalista. Desta forma, para conhecermos as ideias de Kant sobre a educação é fundamental ter clareza do momento em que este autor está produzindo, o que move seu pensamento e o que ele propõe. A produção de Kant coincide com a época de surgimento da Revolução Industrial e dos acontecimentos da Revolução Francesa. Logo, é no alvorecer da sociedade capitalista e toda a turbulência social que esta gerou que se pode compreender as suas ideias.

No entanto, para analisarmos as ideias de Kant devemos ter uma perspectiva que fundamente e justifique nossa interpretação do seu pensamento sobre a educação. Para resumirmos nossa perspectiva, vamos deixar claro três questões, são elas: o que é o ser humano? O que é a realidade? O que é o conhecimento?

O ser humano é um tipo de animal que através da associação com os demais pode reproduzir sua vida enquanto espécie, satisfazendo suas necessidades humanas (comer, moradia, vestimenta) e desenvolvendo suas potencialidades (produzir os meios de vida, desenvolver a consciência, viver com os demais). Como o ser humano produz os meios de manter-se vivo e faz isto através da associação, se faz necessário que ele desenvolva consciência das suas ações práticas, da sua experiência. Portanto, a consciência é uma necessidade e potencialidade dos seres humanos. Assim, o ser humano é um animal que produz seus meios de vida e o faz através da associação com os demais seres humanos, sendo o ser humano o produtor da realidade histórica e social, que ele cria também tendo como fundamento a natureza, e como produto da sua ação surge a consciência humana. Considerando brevemente esses elementos, passamos agora para a exposição e análise das ideias de Kant sobre a educação.

Kant é uma das expressões mais avançadas na história do pensamento pedagógico na sociedade capitalista. Embora suas ideias já deixam entrever os limites intransponíveis do pensamento educacional na sociedade burguesa. Os avanços de Kant expressam um determinado momento histórico, e os seus limites são expressões de interesses e objetivos em consolidação na nova sociedade burguesa.

A questão da educação é fundamental para a formação do “homem”, segundo Kant, “ele é aquilo que a educação dele faz” (KANT, 1999, p. 15). O ser humano[1] se encaixa dentro de uma concepção de educação e esta, por sua vez, se encaixa dentro de uma concepção do que deve vir a se tornar o ser humano. Esse é o sentido do otimismo racionalista de Kant, daí que a educação deve corresponder ao progresso da formação do homem, o que segundo nosso filósofo otimista remonta a distintas etapas sucessivas, que convivem tanto no homem quanto na educação:

Na educação, o homem deve, portanto:
1. Ser disciplinado. Disciplinar quer dizer: procurar impedir que a animalidade prejudique o caráter humano, tanto no indivíduo como na sociedade. Portanto, a disciplina consiste em domar a selvageria.
2. Tornar-se culto. A cultura abrange a instrução e vários conhecimentos. A cultura é a criação de uma habilidade e esta é a posse de uma capacidade condizente com todos os fins que almejamos. Ela, portanto, não determina por si mesma nenhum fim, mas deixa esse cuidado às circunstâncias. (…)
3. A educação deve também cuidar para que o homem se torne prudente, que ele permaneça em seu lugar na sociedade e que seja querido e tenha influência. A essa espécie de cultura pertence aquela chamada propriamente de civilidade. Esta requer certos modos corteses, gentileza e a prudência de nos servirmos dos outros homens para os nossos fins (…).
4. Deve por fim, cuidar da moralização. Na verdade, não basta que o homem seja capaz de toda sorte de fins; convém também que ele consiga a disposição de escolher apenas os bons fins. Bons são aqueles fins aprovados necessariamente por todos e que pode ser ao mesmo tempo os fins de cada um (KANT, 1999, p. 25-26).

Com a maioridade vem a possibilidade da moralidade, ou seja, a obediência da lei comum a todos, mas na medida em que em se reconhece como pertencente a cada um, por isso que Kant diz que “a lei que existe dentro de nós chama-se consciência” (KANT, 1999, p. 99). Às etapas iniciais da vida (infância e juventude) correspondem ao processo de disciplinamento, instrução e civilização, que significam a capacidade de se adequar à sociedade por meio do comportamento e das ideias, da disciplina e da cultura. Os termos menoridade e maioridade aparecem como reveladores do processo positivo de educação, e indicam o que deve ser transmitido ao homem em cada fase da vida.

Para Kant “não importa o que a natureza faz do ser humano, mas o que este faz de si mesmo” (KANT, 1999, p. 115). Este pressuposto de que o ser humano faz a si mesmo é o aspecto mais avançado do pensamento de Kant, por isso podemos entender que a educação neste pensador é uma tentativa de demonstrar que esta é um processo de auto formação do ser humano. A natureza dotou o homem de razão e esta tem necessidade de se desenvolver desde que acompanhada pela liberdade e tendo como mecanismo a educação (BRESOLIN, 2016). Inspirado pelas grandes transformações de sua época, Kant vê no ser humano uma força da natureza em constante aperfeiçoamento, e a educação entra nesse processo como o mecanismo transmissor para as novas gerações de uma perfectibilidade que será alcançada por toda a espécie humana.

Para Kant “não é suficiente treinar as crianças, urge que aprendam a pensar” (KANT, 1999, p. 27). Aqui onde Kant busca ser o mais avançado para sua época, transição do feudalismo para o capitalismo, é onde se revela os limites do seu pensamento educacional preso aos limites do novo tipo de sociedade de classes que está sendo constituída. A burguesia não abole o sistema de classes, tão-somente cria outra forma de relação entre as classes, o que torna necessária uma forma de dominação que acompanha a nova forma de exploração do proletariado.

Aprender a pensar significa introjetar o processo formativo rumo à moralidade, ao reconhecimento das leis universais como leis individuais. Naturalizar a sociedade para que esta seja reconhecida como produto da “vontade livre”, fazer com que o jovem pense que o que ele quer é produto de sua vontade, sendo que no fundo todo um processo formativo já foi iniciado desde a mais remota juventude, iniciado pela disciplina que expulsa do homem a animalidade e coloca em seu lugar a humanidade. Para Kant a educação tem essencialmente dois aspectos, de um lado um aspecto negativo, de repressão, disciplinamento e imposição ao indivíduo a comportar-se aos demais e, por outro lado, um aspecto positivo, que se caracteriza pela instrução e pela aquisição da cultura das gerações passadas. O que Kant defende é a repressão e a coerção, a primeira busca coibir certos aspectos indesejados, e a segunda trazer à tona a manifestação de aspectos desejados, formando o indivíduo a partir de um determinado conteúdo esperado pela sociedade. Kant espera colher um indivíduo formado pela “vontade livre”, só que desde o início essa vontade está contaminada pela repressão e coerção, únicas formas possíveis de fazer as leis universais tornarem-se consciência individual.

Outro aspecto de destaque no sistema filosófico de Kant que se expressa na sua abordagem da educação diz respeito às antinomias. Para Kant, o modo de pensar filosófico deve abordar as coisas em sua contradição, captando o lado negativo e o lado positivo de tudo o que existe. Para aprender a pensar por si mesmo “é preciso habituar ao educando a suportar que sua liberdade seja submetida ao constrangimento de outrem e que, ao mesmo tempo, dirija corretamente sua liberdade” (KANT apud BRESOLIN, 2011, p. 71). A escola passa a ser então o carro chefe da formação educacional das novas gerações para viverem em sociedade:

Kant concebe a escola como o lugar por excelência na qual se deve desenvolver o trabalho da e com a criança e chega mesmo a explicar, em seus exemplos, o quanto é importante para o senso disciplinar da criança o simples fato de ficar sentada em sala de aula, mesmo que não aprendesse nada aí, no entanto, e isso precisa ser novamente enfatizado, toda a formação disciplinar só adquire seu sentido quando está a serviço da cultura moral, a qual, ela mesma, não deve mais repousar sobre a disciplina, mas sim sobre as máximas (DALBOSCO, 2009, p. 174).

O objetivo da disciplina é a naturalização de determinadas formas de comportamentos e de ideias que surgem aos novos homens como produto da “vontade individual”. Assim, Kant separa o produto do processo e isola o indivíduo da sociedade, o que nada mais é que elaborações ideológicas convenientes com a ordem social capitalista.

A crítica que Marx e Engels fazem a Kant no livro A Ideologia Alemã é contribuição para entender do porquê desse posicionamento desse autor. Marx e Engels dizem que a transformação filosófica foi limitada pela limitação real da burguesia alemã, fragmentada e subjugada ora a interesse ingleses, ora a franceses, ora a holandeses, sendo a burguesia da sua região limitada, impotente e incapaz de agrupar os interesses de classe:

A forma característica que assumiu na Alemanha o liberalismo francês, que se baseia em reais interesses de classe, encontramos novamente em Kant. Nem ele, nem os burgueses alemães, de quem ele foi o porta-voz eufemístico, perceberam que na base dessas ideias teóricas estavam os interesses materiais dos burgueses e uma vontade condicionada e determinada pelas relações materiais de produção; por essa razão, ele separou essa expressão teórica dos interesses que ela expressa, fez das determinações materialmente motivadas da vontade dos burgueses franceses puras autodeterminações da “vontade livre”, da vontade em si e para si, da vontade humana, transformando-a, desse modo, em puras determinações conceituais ideológicas e postulados morais. Em consequência disso, os pequeno-burgueses alemães recuaram apavorados diante da práxis desse enérgico liberalismo burguês, assim que ele mostrou a sua face tanto no regime do Terror quanto na lucratividade burguesa descarada. (MARX & ENGELS, p. 194).

Kant fala da educação e da formação do homem, só que este homem de Kant está abstraído e isolado da sociedade em que vive. Tanto é que quando o autor remete à sociedade ele o faz considerando um pressuposto especulativo-abstrato que se resume ao que ele chama de insociável sociabilidade. Segundo Kant, a civilização é constituída pela sociabilidade, ao passo que o estado de selvageria se caracteriza pela insociabilidade. Convivem no ser humano duas tendências opostas, de um lado a inclinação para viver em sociedade, e do outro lado, a propensão ao isolamento gerado pelo conflito entre os planos e desejos individuais. No ensaio “Ideia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita” (1986) Kant apresenta a reflexão de que o equilíbrio entre a insociabilidade e a sociabilidade é que torna o ser humano capaz de evoluir progressivamente, ao tempo em que a constituição da sociedade moderna e esclarecida será produto de um acordo universalmente reconhecido pela razão humana. Assim, de um lado está a necessidade de sociabilidade, só que ao conviver com o outro o homem tem a “propensão de usá-lo para fins privados e egoístas” (DALBOSCO, 2011, p. 87), gerando a rejeição da sociabilidade.

Ainda que não reconheça na sua base os interesses materiais de classe que convergem no seu pensamento, ainda assim Kant é expressão dos interesses de classe que vão se formando e efetivamente esclarecendo. Na sua obra O Conflito das Faculdades (2008) Kant apresenta a relação entre saber e poder, concluindo que as ciências da Faculdade Superior alcançam maior destaque porque estão vinculadas com os governos e os objetivos de manutenção da ordem social, o que não ocorre com a filosofia e a Faculdade Inferior, que se baseiam na liberdade da razão. A defesa da autonomia da razão gera o elogio da especialização na divisão do trabalho a que se dedica cada ciência em particular. A divisão capitalista do trabalho, incluindo o intelectual, ganha aqui uma justificação ideal que a apresenta como necessária para o progresso da razão, sendo esta uma força capaz de julgar a si mesma.

Finalizando o exame crítico das ideias de Kant, se faz necessário um esclarecimento que devemos fazer, isto desde a perspectiva que adotamos nesse texto. Kant é identificado por estudiosos como um defensor da “pedagogia da autonomia”, da capacidade de aprender a pensar por si próprio (DALBOSCO, 2011). Como vimos esta autonomia do jovem é uma ilusão, posto que Kant é um grande intelectual na defesa da disciplina; no entanto, do ponto de vista da burguesia, sua autonomia é amplamente aceita posto que busca formar indivíduos que vão viver sob uma determinada ordem, que vão se inserir dentro de uma construção moral e da lei que devem ser universalmente aceitas.

No desenvolvimento das ideias que surgem e expressam a perspectiva do proletariado revolucionário, a educação possui um sentido universal que denota um processo de autoformação do ser humano. No entanto, quando ela ocorre nas sociedades de classes a educação passa a existir determinada pela luta de classes, e quando ocorre nas instituições burguesas (escola, família, etc.), ou mesmo na sociabilidade, reforça o poder ideológico da classe capitalista, posto que a educação é a socialização das novas gerações para a vida na sociedade em que se vive. Quando a classe proletária se associa para a ruptura radical da sociedade burguesa, os objetivos da educação se transformam radicalmente. Não mais abstrata, individualizada e repressiva, mas sim, fundada em interesses concretos, de associação e emancipação.

Na próxima e última parte deste texto, vamos refletir sobre como passado 300 anos da educação capitalista, novas limitações e avanços foram criados, e o exemplo será o da EAD. Nessa modalidade de ensino, todos os avanços do conhecimento ficam na palma da mão, ou na tela do computador, estão próximos dos seres humanos, mas não possibilitam uma verdadeira emancipação, ao contrário, criam novas prisões para a consciência e para a prática na vida em sociedade.

* Diego Marques dos Anjos é professor do Instituto Federal Goiano e militante do Movimento Autogestionário (MOVAUT/DF).


[1] Utilizamos a palavra ser humano por acreditar que este contempla o conjunto da nossa espécie, assim, quando no nosso texto nos referirmos à palavra homem é em referência direta à forma pela qual foi escrita por Kant.

Parte I

Parte III

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